Um investigador acaba de entrar em uma masmorra medieval. Ele acende sua lanterna, e o cheiro de mofo e umidade o envolvem. Desconfiado, ele volta seu olhar, que brilha com o fanatismo da descoberta, para seu guarda-costas, que, dando de ombros, engatilha sua pistola militar… bem a tempo de ver ALGO… algo disforme, como uma névoa semi-sólida, se materializando em pleno ar, de onde sai algo similar à cabeça de um cão ao avesso engolindo a lanterna e a mão que a empunhavam, arrancando ambas, junto a um grito de dor, de seu contratante.
“Eu dou um passo de ajuste e faço um Ataque Total, dando um tiro extra com meu Talento de Tiro Rápido.” diz o jogador acostumado às porradarias do Sistema D20, e pensando com prazer nos 3d10 de dano por tiro que sua Desert Eagle vai dar no… seja lá o que for.
“Ok”, responde o Mestre, sorrindo, sem se incomodar com a falta de imersão do jogador. “Role seus ataques contra CA 15”.
“Chupa essa! Dois acertos! 6D10 + 4 por causa da minha Especialização… dá 42 de dano”
“A cabeça da criatura explode em uma confusão de matéria estranha e fluídos escuros, que acabam espirrando em você… mas sem causar dano. No entanto, assim que a criatura cai, os pedaços da cabeça dela se reformam, pouco a pouso montando novamente a cabeça… cuja língua se projeta ameaçadoramente na sua direção. Role Sanidade.”
“Eita!”
“Falha? Tudo bem, você perdeu (rola 1d20) 16 pontos de Sanidade… se você sobreviver, a gente vê que tipo de problema mental você acabou de desenvolver…”
“Caceta…”
Para quem acha que Call of Cthulhu não combina com D&D… questão de estilo.
Call of Cthulhu D20 é um RPG de horror cósmico que utilizou o famoso/infame sistema Open Game D20 para trazer sua própria roupagem ao clássico de Lovecraft. O livro, em primeiro lugar, é um show em si. Impresso em uma maneira que lembra o Necronomicon de clássicos como The Evil Dead (A Morte do Demônio), ele deixa bem claro que é um jogo, no fundo, mais pulp… no entanto, cheio de possibilidades de terror clássico.
O SISTEMA
Muitos aqui estão familiarizados com o sistema D20: progressão nível a nível, Pontos de Vida, Perícias e Talentos. Aqui, no entanto, não há “classes de personagem”… todos os personagens são Investigadores, que serão montados de acordo com uma progressão sugerida (Ofensiva/Defensiva, onde uma tem melhores Bônus Base Ataque e uso de armas, e a outra tem melhores Testes de Resistência, bônus de defesa e uso de Perícias). O sistema de Perícias é mais fluído, com o jogador podendo adotar um modelo de profissão (Policial, Professor, etc) e customizando sua árvore de Perícias desta forma. Até aí, tudo bem.
Uma das maiores críticas ao jogo é o sistema de nível e a relação com aprendizado e evolução. Com 1d6 Pontos de Vida + Bônus de Constituição a cada nível, um Investigador experiente poderia sobreviver, em teoria, ao disparo descrito lá em cima, o que tira MUITO da verossimilhança do jogo, e poderia fazer dos Investigadores aqui seres mais propensos a “chutar bundas” do que se preparar e fugir. Ledo engano… A regra de dano massivo torna a vida de um Investigador uma roleta russa em combate, exigindo um teste de Fortitude a cada vez que ele tomar 10 pontos de dano ou mais. Embora um jogador sortudo possa sobreviver bastante ainda assim, isso acaba sendo realista, pois ele não sobrevive por ser forte, mas por sorte. Além disso, vários monstros possuem ataques especiais que matam ou debilitam, e a adição de um Atributo extra, a Sanidade, dá ao jogo aquele sabor especial de que subir de nível é pior que se aposentar… já que um mero olhar para a criatura errada, ou o uso de um poder (como psiquismo, na forma de Talentos, e Magia) podem drenar sua Sanidade a níveis irrecuperáveis e lançá-lo diretamente a uma cela acolchoada.
O CENÁRIO
O jogo permite bastante customização de cenário, apresentando armas e equipamentos de várias épocas, e monstros adaptados. Um fator interessante é que os próprios deuses recebem estatísticas (que os deixam muuuuuuito além de qualquer esperança de mesmo um Investigador de nível 20 ter qualquer chance de sobreviver a um combate sério… com poderes e habilidades que os mais atentos viriam a reconhecer, posteriormente, no Divindades e Semideuses, suplemento com regras para divindades de D20), e que um dos apêndices oferece um sistema de conversão para o sistema clássico – os apêndices, inclusive, mostram um quê de Book of Vile Darkness (não coincidentemente, graças à presença do Mr. Cook na criação dos dois jogos), com dicas de como montar uma campanha no lado “mau”, como seria uma aventura Lovecraftiana em D&D (carro chefe do D20, para quem é da época… afinal, lá se vão mais de dez anos), além de uma lista bastante interessante de leitura sugerida. Pode não ser muito atraente para os jogadores mais adeptos dos sistema clássico, mas para quem joga D&D e gosta de uma diversidade de temas, (inclusive os atuais adeptos do Pathfinder, que tem os Mythos nos últimos Bestiários), o livro definitivamente tem um apelo bastante interessante. A mera sugestão de um grupo de aventureiros onde o mago vai certamente enlouquecer, o clérigo é sempre um antagonista, e a única fonte de cura seria o druida… já é mais que o bastante para assustar.
O LIVRO
Com uma capa dura estilizada e páginas impressas em papel revista de boa qualidade, feito no estilo Livro do Mestre/Jogador, e com um bestiário estilo Livro dos Monstros de D&D, é bem patente que o CoC D20 teve uma grande pegada em tentar ser atraente para o público deste jogo… mas para os detratores, novamente, ele não perde a essência. Sanidade, loucura, distúrbios mentais… decadência, perda de saúde… tudo está lá. Por mais que se suba de nível, mesmo os monstros mais fracos terão sua parcela de horror – que é bem ilustrada no livro, com figuras de personagens solitários cercados por criaturas, monstros com restos mortais de vítimas ao seu redor. O estilo mais cartunesco dos livros D20 simplesmente não está aqui, com uma pegada mais quadrinhos pulp, ou mesmo algo mais surreal. As aventuras prontas no final do livro, mais uma vez, não desapontam, fazendo bom uso de premissas simples e aterrorizantes para criar cenários altamente claustrofóbicos e assustadores (uma clássica aventura em um hospital… e outra com um clímax em um teatro em chamas, com um monstro não-Euclidiano para turbinar a mistura.)
Por Rafael Ramos Blanco
Equipe REDERPG
NOTAS (de 1 a 6)
Layout/Arte: 5 (Bonito, com figuras estranhas e tabelas nos lugares certos. Padrão, sem ser chato.)
Texto: 4 (Peca um pouco nas regras, que ocasionalmente são confusas, mas isso é mais um demérito do sistema do que do texto em si…)
Conteúdo: 5 (Seja para uma aventura de terror gótico, um épico pulp ou uma tentativa clássica de horror cósmico, o jogo se presta a ele.)
NOTA FINAL: 5 (Um jogo que não merece ser vítima do preconceito que costuma sofrer.)