A lenda de Altair e Dracel

Além do tempo e do espaço, existem locais desconhecidos por nossa patética ciência; um deles é o mundo fantástico de Verian, repleto de locais perigosos, moradas de feiticeiros diabólicos e tocas de bestas terríveis devoradoras de homens. Nobres cavaleiros constantemente se lançavam contra tais lugares, com o objetivo de matar ou pelo menos desalojar as feras perigosas para os cidadãos. Contudo, existia um local tão terrível que há séculos nenhum herói ousava entrar: a toca do grande dragão vermelho. Todos os cavaleiros do passado que ousaram entrar encontraram a morte nas garras afiadas ou poderosas presas do réptil colossal (incluindo Thorgul Silverhelm II, poderoso guerreiro que certa vez derrotou sozinho dez assassinos enviados pela guilda negra!). Como a fera passava a maior parte do tempo dormindo (só acordando ocasionalmente para devorar rebanhos de vilarejos próximos), os humanos resolveram ignorá-lo. Felizmente, nas últimas décadas o dragão parece ter ficado ainda mais sonolento; nunca mais foi visto sobrevoando as vilas. Ao que parece, a besta está tirando uma grande soneca que pode durar séculos…todos os moradores das áreas vizinhas estão em paz. Os heróis voltaram seus esforços para ameaças mais próximas e imediatas. Todos os nobres cavaleiros  se esqueceram do dragão.

Todos, menos Altair Fireshield.

O jovem Altair botou na cabeça que iria matar o grande dragão. Os outros cavaleiros (e até os jovens escudeiros)  zombavam dele, e tentavam desestimulá-lo; afinal, se a besta vermelha era um terrível rival para os cavaleiros mais poderosos, o quê ele faria com o pobre Altair? O rapaz era péssimo em qualquer tipo de combate ( na época em foi escudeiro, seu mestre-cavaleiro costumava dizer que Altair era mortal em combate… para si mesmo! ) e só tinha algum talento para montar cavalos. Na verdade, só conseguiu tornar-se  cavaleiro porque herdou o título de seu pai, como era costume naquelas terras.

Um dia, quando a determinação (ou tolice) inflamou seu coração, o jovem partiu a cavalo para a maldita montanha.

-Um cavaleiro não deve temer nenhum inimigo, seja grande ou pequeno!- bradou para seus amigos (na verdade, meros companheiros de libação, conhecidos nas tavernas ) , antes de sumir no horizonte.

Enquanto observavam o rapaz se afastar, um amigo voltou-se para os outros e indagou:

-Ele deixou alguma viúva?

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Infelizmente, a Sorte ( essa dama temperamental e volúvel!) não sorriu para Altair durante sua viagem. Um dia, ao acordar, descobriu que seu cavalo havia fugido durante a noite.

-Os infortúnios só afastam os fracos de espírito da trilha do bem; os fortes ficam ainda mais fortes!- gritou aos quatros ventos o herói, ignorando que ele cooperou com o azar ao esquecer-se de amarrar o cavalo antes de dormir…

E assim prosseguiu. Ao chegar à um vilarejo próximo da montanha maldita, teve que correr para não ser linchado! O povo achava que a intromissão de um cavaleiro iria acordar o dragão, enfurecendo-o. A besta estava adormecida à anos, tudo está tão calmo…ninguém queria que os anos difíceis retornassem. As pessoas fariam qualquer coisa para preservar o sono do dragão…

Correndo da multidão ameaçadora,  Altair gritava:

-Eu não enfrentarei vocês… (arf)… porquê o dever de um cavaleiro…é defender o povo…ai! Essas pedras machucam!… Eu sou um guerreiro mortal… mas não matarei ninguém…

O jovem correu tanto que o povo logo desistiu de persegui-lo. Deixariam sua morte à cargo do dragão, e rezariam, pedindo aos Céus e às Divindades da Luz para que o dragão não se enfurecesse muito ao ser acordado.

-Af… minhas habilidades de esquiva… adquiridas após terríveis treinamentos…impediram que acertassem meus pontos vitais!- Altair disse para si mesmo,ofegante, enquanto acariciava distraidamente o galo provocado por uma pedra; infelizmente o seu elmo metálico havia caído durante sua “ retirada estratégica”, mas graças aos Céus, sua cabeça era bem dura!

E assim, o heróico guerreiro chegou à montanha. Olhou para o alto, e viu o quanto o local era magnífico: um verdadeiro colosso de pedra tocando o céu, o pico envolto por nuvens brancas como o algodão. Uma trilha larga ( e misteriosamente bem conservada) conduzia às perigosas alturas.

-Acautele-se dragão! Altair Fireshield está à caminho!- bradou, como de costume ( o jovem adorava “entradas triunfais”).

Enquanto subia, o cavaleiro teve devaneios grandiosos sobre seu retorno à Ordem de Cavalaria, carregando quilos de tesouros. O jovem estava tão inebriado que  quase caiu da larga trilha! Apoiado na beira do abismo, olhando para as pontiagudas pedras abaixo, fez um perspicaz comentário que demonstrava o quanto era sábio:

-Uma queda dessas pode matar!

E, após recuperar-se do susto, o valente herói continuou sua viagem épica para matar o dragão.

 

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Dracel observava a trilha, incrédulo: depois de anos, finalmente um corajoso cavaleiro ousou subir a  montanha.

-Um herói lendário se aproxima…-sussurrou, enquanto preparava sua  melhor postura.

Ele aguardou, aguardou e aguardou. Cansado, relaxou seu corpo, abandonando a pose que fazia, para caminhar até a trilha.

-Onde está meu poderoso cavaleiro?- disse, começando a sentir o frio toque da decepção.

Então Altair surgiu, para espanto de Dracel: o “ poderoso cavaleiro” estava curvado como um ancião, ofegante de cansaço!

-Oh, Céus!-sussurrou baixinho,lamentando- Que tipo de cavaleiro os Deuses me enviaram?

Nesse momento Altair, ( que costumava afirmar ser  possuidor de sentidos muito aguçados) finalmente percebeu a presença do grande corcel branco. Fascinado com a beleza do animal, aproximou-se.

-É melhor sair daqui amiguinho; um dragão muito perverso está para despertar…ufa! Que cansaço!… Durante nossa peleja você pode se ferir. Xô! – disse, enquanto fazia gestos estranhos para tentar afastar o corcel.

“Chamou-me de amiguinho?”, pensou Dracel enquanto olhava para o cansado guerreiro. “Vejam só, eu, Dracel o Poderoso, rebaixado à categoria de amiguinho… que cavaleiro foi esse que os deuses enviaram?”

Recuperando-se do cansaço, o jovem teve um súbito surto de heroísmo e lançou-se para o interior da caverna escura, o lendário covil da besta.

-Morra, drag…aí!- Infelizmente seu grito de guerra foi interrompido por um tropeço causado por uma pedra. Altair achava que as pedras “insistiam” em cruzar o seu caminho…

Desolado, o corcel aproximou-se do rapaz e disse:

-Saudações, grande cavaleiro! Há muito tempo atrás os Deuses da Luz derrotaram o dragão cruel; você não precisa enfrentá-lo, pois a besta não mais existe- nesse momento Dracel fez uma pausa dramática.- Os Deuses, na sua infinita sabedoria, aproveitaram a fama do dragão e criaram um teste de coragem: aquele que subisse a montanha com o intuito de derrotar a fera, sem temer a morte iminente ( pois hoje em dia a coragem é um diamante que não costuma ser encontrado com facilidade nessa mina suja que é o coração humano; mesmo entre os cavaleiros), iria receber o mais valioso dos prêmios: eu, Dracel, o sábio corcel branco… o quê foi, cavaleiro? Sente-se mal?

-Você fala!-exclamou Altair, atônito.

Surpreso com a inteligente dedução do humano, Dracel respondeu:

-Sim cavaleiro, eu posso falar, e melhor do que você, devo acrescentar. Saiba que possuo  muitos talentos, e reis pagariam fortunas pelos meus conselhos… mas você passou pelo teste de coragem. Você sacrificaria a sua vida para tentar derrotar o maligno dragão vermelho…os Deuses  me ordenaram que o servisse, pois você é um herói lendário; uma tocha ardente da justiça em um mundo repleto de cinzas frias e brasas mornas. De hoje em diante- nesse momento o corcel trincou  os dentes por um segundo- serei sua fiel e leal montaria.

Houve um silêncio estranho, Altair estava boquiaberto.

-Fale alguma coisa, cavaleiro!-ordenou o impaciente corcel.

-Um cavalo que fala! Ganhei um cavalo que fala! Deixa os outros cavaleiros saberem disso!-exclamou o jovem, esquecendo-se dos muitos tesouros que poderiam estar à sua espera no interior da caverna.

“Pelos Deuses!”-pensou o corcel-”Eu acabo de me revelar como um poderosos e sábio aliado e ele só consegue apreciar minha capacidade de falar! Eu merecia mais apreço! Mas já que  esse é o meu Destino imposto pelos Deuses, devo resignar-me. É melhor que passar a eternidade na caverna, esperando por um cavaleiro melhor…”

-Meu nome é Altair Fireshield. Vamos, Dracel! Quero te apresentar à alguns amigos.-e, sorrindo, o jovem conduziu o corcel pela larga trilha, sem perceber o olhar que Dracel lançou à caverna onde ficou aprisionado por anos.

Ali havia sido o seu covil, onde acumulava nas profundezas secretas ouro, prata e ossos de vários cavaleiros do passado. Eram tempos gloriosos aqueles; comer, dormir e matar. Sim, tempos de glória, hoje esquecidos graças às ações dos Deuses que ele tanto desprezou e ofendeu. Um dia as Divindades mais bondosas se enfureceram e resolveram dar-lhe uma lição: perderia sua forma gloriosa; seu aspecto reptiliano seria substituído por uma esguia forma de corcel falante, que nunca envelheceria, para sempre lembrar-se de tudo que perdeu. Nunca mais precisaria comer ou beber;  tudo que provasse teria gosto de cinzas, para sempre lembrar-se dos inocentes que carbonizou. Além disso, para completar sua humilhação, para ensinar-lhe a mais dura das lições- Humildade Verdadeira- seria obrigado a ser o fiel ajudante de um cavaleiro; seria obrigado a carregar um mortal desprezível, um desses que ele costumava despedaçar no passado! Como Dracel odiava o fato de ser uma reles montaria, tendo um inseto humano nas costas conduzindo-o! Ele, o lendário dragão, agora seria figurante das aventuras de um cavaleiro…e pior: seria a montaria de Altair Fireshield! Como os Deuses eram cruéis! Ó Deuses, porquê deveria servir à um cavaleiro tão jovem… tão  inocente… tão…tão…tão burro! Por quê? Dracel esperava um cavaleiro que pelo menos o conduzisse à guerras, onde o “dragão” poderia descarregar sua fúria contra os Deuses participando de combates sangrentos, vendo seu cavaleiro matar oponentes, divertindo-se com a tragédia humana. Mas esse tal Altair… ele precisa de ajuda até para matar um pequenino lagarto! Que desastrado!

Mas Dracel era o corcel de Altair, assim quiseram os Deuses e o Destino. O dragão não queria mais irritá-los, pois o próximo castigo poderia ser pior. Se os Deuses querem que jovem seja o seu “dono”, que assim seja. Enquanto o cavaleiro viver, Dracel o servirá. Parece que o rapaz não vai viver muito mesmo, tolo e desastrado como ele é…

E foi assim que (desafiando a lógica arrogante dos mortais)  um poderoso dragão lendário tornou-se montaria de Altair Fireshield, acompanhando-o em suas viagens.

Autor: Atailton Miranda

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