Representando as classes básicas de D&D é uma série de artigos escrita pelo Newton “Tio Nitro” voltada para os jogadores e que continua atual. O primeiro artigo, sobre o Guerreiro (6.160 leituras) foi publicado no antigo portal em 25 de março de 2004. Confira a seguir.
O GUERREIRO
Estava pensando nos artigos que já li com dicas para RPGs e percebi que a maioria deles foi escrita visando principalmente o Mestre de Jogo. Existe uma certa carência de textos para auxiliarem os jogadores de RPG e fornecendo dicas para estes melhorarem a representação de seu personagem.
Pensando nisso, pensei em escrever uma série de textos curtos com algumas dicas sobre as classes básicas do Dungeons and Dragons, com algumas observações vindas da minha experiência nas sessões de jogo. Espero que esses textos ajudem aos jogadores iniciantes a entrarem mais em seus personagens e inspirar os jogadores experientes a terem mais idéias de melhorar a representação das classes básicas e compartilhar com os demais. O RPG é um hobby onde estou sempre aprendendo coisas novas, e mesmo quando achamos que já vimos de tudo em uma mesa de jogo, aparece um jogador iniciante que nos mostra uma nova forma de representar os seus personagens.
Vou começar pela classe mais básica de todas, a primeira classe por onde a maioria dos jogadores iniciantes começam: o Guerreiro.
Representar a classe do Guerreiro é como tocar violão: com um pouco de treino e decorando as posições, o violão é um dos instrumentos onde se aprende a tocar mais rapidamente; porém é um dos mais difíceis de se dominar completamente, requerendo muitos anos de prática (qualquer um que já ouviu o violão clássico sabe a enorme diferença entre o som cristalino e complexo do famoso “arranhar” ouvido em acampamentos, viagens de ônibus de galera e “luaus” na praia). Guardada as devidas proporções, a classe do Guerreiro também é assim; é uma das classes mais rápidas de se jogar (para o iniciante basta apenas saber atacar o seu inimigo usando a enorme espada que carrega) porém uma das mais difíceis de se dominar . Repare em personagens complexos como Gatz do fabuloso anime “Berserk”, Caramon de Dragonlance (leia a trilogia dos gêmeos “Twins Trilogy” que vocês verão como o enorme irmão de Raislin é um personagem fascinante) , Cloud de Final Fantasy VII, Maximus do filme “Gladiador”, etc, que demonstram que mesmo sendo da classe aparentemente simples dos guerreiros, demonstram muitas nuances e motivações, se tornando personagens fascinantes.
O Guerreiro é a classe mais básica do herói aventureiro de mundos de fantasia. A clássica imagem do herói que parte em busca de aventuras é a ligação direta para com o guerreiro. Mas vamos analisar cada parte do guerreiro tendo como base a ficha do personagem. Como esse artigo visa mais o Dungeons and Dragons D20, vou usar as características desse sistema que podem ser facilmente adaptadas para outros sistemas.
Essa abordagem desse texto, tirando as características da classe a partir da ficha de personagens, simula o trabalho que será feito pelo Jogador, ao passar todos aqueles números e anotações de sua ficha para a representação em si do personagem. Mas vamos começar com uma coisa muito importante que não aparece na ficha, a biografia do personagem!
A BIOGRAFIA DO GUERREIRO
Uma boa biografia de um personagem ajuda muito em sua representação em uma mesa de jogo. Os grandes guerreiros dos filmes e livros possuem histórias fascinantes, que colocam as bases de sua psicologia e de seus objetivos em seguir uma vida de aventuras.
Um guerreiro tem que ter tido motivações para seguir o estilo de vida marcial. È interessante, ao criar a biografia do seu guerreiro, que o Jogador pense nas seguintes perguntas:
1) Porque o meu personagem decidiu ser um guerreiro?
2) Ele teve alguém ou alguma organização para se espelhar?
3) Porque ele não preferiu uma vida mais pacata, de fazendeiro ou mercador?
4) Quais foram as suas primeiras impressões sobre os guerreiros que vivem no seu local de nascimento/crescimento?
Os personagens de jogo, normalmente definem a carreira que irão seguir com base em experiências na sua infância. A profissão do pai, por exemplo, pode incentivar o personagem a se tornar um guerreiro de duas formas: como forma de seguir a tradição da família (caso o pai também tenha sido um guerreiro) ou como forma de ir contra a tradição da família (caso o pai não tenha sido um guerreiro). Um outro fator que pode influenciar é alguma forma de contato e admiração do personagem para com um guerreiro, talvez um visitante em sua vila, ou um exército que tenha libertado o seu povo de algum tirano ou monstro.
A motivação para seguir a carreira é muito importante para definir o tipo de guerreiro que o personagem será. Por exemplo, se quando criança o personagem viu os soldados do reino libertarem sua terra da escravidão de um monstro, certamente ele tentará entrar para a milícia ou para o exército do reino quando crescer. Mas, se por acaso ele viu a sua vila ser destruída por um exército inimigo, ele certamente irá seguir um caminho mais independente, podendo virar até mesmo um mercenário. Abaixo seguem cinco sugestões de motivações com o respectivo tipo de guerreiro que o personagem poderia se tornar. Fica a cargo do jogador criar outras de acordo com sua criatividade ou usar algumas idéias como inspiração:
1) O PdJ (personagem do jogador) é neto de um lendário guerreiro e se revolta por seu pai ter se tornado um fazendeiro. Ele passa a infância vendo a velha armadura e a velha espada de seu avô no sótão da fazenda e treinando com espadas de madeira com seu melhor amigo(a). RESULTADO: O PdJ se transforma em um guerreiro independente porém com muita ética, procurando seguir os passos do seu avô e sonhando em criar sua própria lenda.
2) O PdJ é uma mulher que sempre se revoltou com a discriminação contra o seu sexo. Desde criança procurava provar para todo mundo que podia fazer tudo que os meninos faziam. Um belo dia, seu pai a encontrou treinando com uma espada de madeira e a puniu severamente por isso, dizendo que uma mulher jamais seria uma guerreira. RESULTADO: O PdJ se transforma em uma guerreira extremamente letal e completamente cínica com os homens. Ela pode agir como justiceira, punindo homens que maltratam mulheres e lutando contra todas as formas de machismo. Seguiria facilmente a carreira de Corsária, Mercenária, ou até mesmo Capitã da Milícia, como uma forma de provar ao seu pai (que pode já estar morto nessa época) que ele estava errado.
3) O PdJ nasceu dotado de uma força extraordinária e era chamado desde pequeno para fazer trabalhos pesados, como carregar muita lenha ou trabalhar no campo. Certa vez, cercado por uma gange de desordeiros, usou de sua força para se defender e percebeu que tinha talento para bater em seres humanos. Cresceu procurando desenvolver esse talento e acabou entrando para uma companhia de mercenários.
4) O PdJ era um pacato filho de mercador quando viu a sua casa ser invadida por ladrões que mataram seus pais e seus irmãos. Ele conseguira fugir milagrosamente, e depois de se ver herdeiro da fortuna do pai, dedicou todos os seus recursos para treinar e se transformar em um guerreiro imbatível. Anos depois, já um guerreiro invejável, ele parte em uma jornada de vingança contra todos os malfeitores da região.
5) O PdJ nasceu dentro de uma sociedade marcial, onde os fracos morrem cedo e os fortes vão sobrevivendo. Apesar de ter índole boa, o guerreiro aprende a matar desde cêdo, e apenas a sua habilidade com as espadas o mantêm vivo no lugar. Quando fica adulto, ele consegue sair da sua terra natal para conhecer outros povos, jurando nunca mais voltar.
Após feita a biografia, o jogador deve tirar dela as armas favoritas do guerreiro, suas técnicas de lutas mais usadas, o modo como ele encara as batalhas, o modo de tratar o derrotado, a sua visão da honra e o seu código de conduta. Depois de pensar em tudo isso é que se deve montar a ficha. Este guerreiro com certeza será um personagem interessante e fascinante. Vamos agora dar uma olhada em como interpretar diversos tipos de guerreiros com base nas características básicas da ficha de personagens.
OS ATRIBUTOS E OS DIVERSOS TIPOS DE GUERREIROS
Normalmente, quando um jogador cria um personagem guerreiro, ele coloca os maiores números no “binômio do poder”, Força e Destreza, para depois completar com Constituição, criando o “armário” que será a “máquina de bater” do grupo. Apesar dessa estratégia ser recomendada, depois de algum tempo o jogador acaba cansando de criar personagens fortes e burros. Nem todos os guerreiros tem que seguir o arquétipo do “Rambo”. No meu grupo de jogo, normalmente, ao invés de rolarmos os dados para ter os atributos básicos, eu uso o sistema de pontos do Neverwinter Nights (e que está no SDR do Sistema D20) ou seja:
“Todos os personagens começam com 8 pontos em seus atributos. O mestre dá para cada um deles pontos para distribuir (22 pontos para campanhas desafiadoras, 28 pontos para campanhas difíceis ou 32 pontos para campanhas heróicas). Até o atributo 14, os jogadores compram pontos de atributos na razão de 1 para 1. Para passar de 14 para 15 o custo sobe para 2 pontos para 1 ponto de atributo. De 15 para 16 o custo é também de 2 para 1. De 16 para 17 o custo vai para 3 pontos por ponto de atributo. De 17 para 18 o custo também é de 3 para 1, de 18 para 19, o custo aumenta de 4 pontos para 1 ponto de atributo”.
Dessa maneira, os jogadores podem montar o personagem que desejarem, e criar mais cores para o guerreiro em questão. Vamos agora ver como funcionam os atributos mais relacionados com a personalidade do guerreiro, a Inteligência, a Sabedoria e o Carisma. Colocarei dicas para a representação dos extremos desses atributos, para que o Jogador encontre a melhor descrição para o seu guerreiro. Considero atributos altos os que possuem valor 15 para cima e atributos baixos os que possuem valor 9 ou inferior (apesar de nunca permitir que os jogadores criem personagens com valores menores do que 8, salvo casos especiais).
Um guerreiro com alto valor em Inteligência com certeza recebeu educação formal de alguma forma , sabendo ler e escrever, e possuindo altos conhecimentos de cultura, arte ou política. Saberá se portar em relação aos nobres de seu mundo e estará sempre consciente da política e das maquinações que acontecem dentro da corte. Um alto grau de inteligência aumenta o número de línguas conhecidas e com isso a capacidade do guerreiro de adquirir conhecimentos em livros sobre geografia, história de um lugar, e até mesmo táticas de guerra e estratégia.
Um guerreiro que tenha um valor muito baixo de inteligência, será incapaz de falar corretamente, o que deverá influir na relação dos PdMs (Personagens do Mestre). Não saberá ler nem escrever, e será supersticioso em relação ao que não compreende, seja magia ou ciência.
Uma alta Sabedoria fará com que o guerreiro tenha “manha” de combate, que reaja instintivamente quando em perigo e perceba com seu instinto e experiência, a melhor estratégia para determinada situação. Sabedoria é um conhecimento prático, diferente do conhecimento representado pela Inteligência e pode ser vir para se adaptar a situações diferentes, mesmo que o guerreiro não a compreenda. Conan, por exemplo, apesar de nunca demonstrar muita inteligência (ele várias vezes descobre que foi usado para os interesses políticos de um nobre contra outro, ou acaba destruindo itens mágicos que desconhece) sempre conta com sua Sabedoria de Bárbaro para escapar dos perigos, seja uma malvada bruxa de poucas roupas que quer seduzi-lo para depois matá-lo ou seja para ficar de prontidão quando sente que algo está errado no lugar onde se encontra”. O Guerreiro sábio é o clássico herói experiente, que controla a sua impulsividade em favor da estratégia, e que sabe recuar de um perigo quando ele é maior do que suas forças (uma ação que é difícil de ensinar à maioria dos jogadores, porque sempre acham que todos os perigos que o mestre coloca na sua aventura são para ser exterminados, o que eu chamo do vício de “zerar a dungeon”).
A Sabedoria também regula a força de vontade e por conseguinte, a coragem do personagem. Um alto valor de Sabedoria criará um guerreiro perseverante, que não desistirá facilmente de seus objetivos.
Um Guerreiro de baixo valor de Sabedoria será impulsivo e prepotente, podendo ser vaidoso ou introvertido. Ele se lançará ao combate desesperadamente, sem pensar na sua própria segurança. Ele também terá dificuldade de reconhecer a seriedade e o perigo de uma situação, e se não se criarem mecanismos de contenção, irá colocar o grupo em perigo à todo momento. Além disso, terá pouca força de vontade e não será muito corajoso, sendo facilmente assustado com cenas que fujam da sua compreensão (é claro que uma pessoa assustada ainda pode ser perigosa, principalmente quando se é um “armário” de força 25 e Sabedoria 6 com medo de um singelo esqueleto ambulante de uma apresentação circense, o que acabou na destruição da arquibancada na morte vários inocentes expectadores, o que finalmente me fez evitar a criação de PdJs Trolls).
O que seriam esses “mecanismos de contenção”? Bem, isso é uma técnica que aprendi com o passar dos anos no AD&D e no D&D: quando no grupo existe um daqueles guerreiros impulsivos (com baixa sabedoria) que ficam caçando brigas e confusões em todos os lugares, para evitar o extermínio precoce dos aventureiros (minhas aventuras são sempre em nível de dificuldade hardcore) eu induzo um dos PdJs (personagens dos jogadores) a agir como um sistema de contenção do personagem impulsivo. Assim, toda a vez que o guerreiro impulsivo caçasse confusão, um dos outros personagens agem como se fosse a “consciência” inexistente do impulsivo, chamando-lhe a atenção e fazendo-o raciocinar. O interessante é que essa técnica parece funcionar melhor quando o personagem-consciência é uma criatura do sexo feminino, pois como diz aquele velho ditado ” a beleza acalma até as mais terríveis feras”. Assim como com personagens de baixa inteligência, personagens de baixa sabedoria, para não prejudicarem o grupo, precisam de ter um certo “apoio” dos demais personagens mais favorecidos nesse quesito. Ou então vai acontecer como quando eu mestrei “Web of Illusions” de Ravenloft e o bárbaro do grupo (que era mais burro que uma maçaneta de porta) destruiu a estátua que continha a arma para matar o chefão do módulo (o grande rakshasa Arijani) porque pensava que ela era a fonte das ilusões que ele estava vendo! Assim como na vida real, personagens com muitas deficiências nos atributos como inteligência e sabedoria, precisam de cuidados especiais!
Para terminar esse artigo, vou falar um pouco do atributo mais mal utilizado do D&D, o Carisma. Os meus jogadores sabem que nas minhas sessões, eu uso muito esse atributo tão mal avaliado, e quando montam os seus personagens, eles acabam colocando números razoáveis no atributo. Para mim, carisma regula tanto o poder social do personagem quanto a sua beleza física, apesar de separar essas duas características no jogo. Assim, quando um Jogador quer criar um personagem com cicatrizes na face, mas com alto carisma (um líder nato, por exemplo) não tem problema. Assim, quando surgem situações no jogo que reduzem o carisma (como desmembramentos, cicatrizes, magias, etc.) eu observo o modo como o personagem do jogador reage ao fato e vejo em que base está o seu carisma, se é na sua capacidade social ou na sua beleza física, para depois fazer a redução. Um exemplo disso é o Coisa do Quarteto Fantástico, que apesar de sua aparência de pedregulho, é muito carismático e brincalhão (apesar de ficar meio sorumbático de vez em quando). O Coisa, em termos de d20, teria um alto Carisma (por causa do modo como se relaciona com as pessoas) mas o Mestre teria que separar esse Carisma da reação que as pessoas que não o conhecem tem ao ver apenas a sua parte física. Fica aqui a sugestão.
Essa idéia também funciona para quando o personagem sofre um ataque que prejudica a sua reputação (acusações infundadas, fofocas, etc.) que fazem com que seu carisma social caia. Nesse caso é o contrário, apesar do seu Carisma de beleza física não ter mudado, o seu Carisma social foi abalado.
Bem, voltando ao Carisma no guerreiro, um alto valor nesse atributo indicaria que o personagem é um líder nato. Ele saberá inspirar seus companheiros e conduzir o grupo para cumprir os objetivos traçados. Um alto Carisma também indica uma pessoa com grande confiança em si mesmo e com a auto-estima em alta. O Guerreiro facilmente conseguirá aliados (algo que o Carisma ajuda e que é pouco utilizado por mestres e jogadores) para as suas missões e poderá sair de enrascadas utilizando sua lábia.
Um baixo valor de Carisma revela um personagem que tem dificuldade de se relacionar com os demais, sendo mal humorado e ranzinza. Nesse caso, o ideal é que o personagem fique pelo menos amigo de um dos membros do grupo, caso contrário, ele será rapidamente afastado dos demais. Se o personagem tiver baixo Carisma mas alta Sabedoria ele facilmente perceberá a necessidade de ter aliados no grupo, mas se for uma daquelas “máquinas demolidoras”, com baixo Carisma e baixa Sabedoria, aí nem Deus agüenta uma criatura dessas! Rapidamente os demais do grupo se perguntarão (o que a gente está fazendo com essa coisa aí?) e o largarão no meio da estrada ou em meio à uma batalha (eu já vi isso acontecer!).
Se o baixo valor de Carisma do Guerreiro estiver mais ligado a sua aparência física, é ideal o personagem andar com um manto com capuz para cobrir as suas deformações. A sua horrenda aparência física irá influenciar na sua personalidade, fazendo-o mal humorado e introvertido.
Espero que essas sugestões ajudem aos Jogadores criarem Guerreiros interessantes e que sejam lembrados por anos a fio. Para finalizar, fica uma dica: tente se lembrar dos guerreiros de filmes, quadrinhos e livros que mais te marcaram e tente ver o que você viu neles que ficou na sua memória. Coloque esses elementos no seu Guerreiro e você verá como terá muito mais diversão em sua mesa de jogo.
Por Newton “Nitro” Ribeiro Rocha Júnior
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