Dicas de Mestre: Construção de personagem (parte II)

Como o background do seu personagem influencia na sua diversão

O primeiro artigo serviu para mostrar como um personagem faz parte de uma história, que ele não está sozinho, e que certas condições especiais o afetam, simplesmente por ser o protagonista da campanha. Na continuação de hoje eu vou procurar mostrar qual o impacto que um personagem bem ou mal construído pode ter sobre a criação dos outros aspectos, aqueles que o narrador controla (tempo, espaço, enredo, coadjuvantes, antagonistas e oponentes, etc.). Achei importante iniciar a elaboração dessa idéia pela questão da narrativa, para mostrar a você caro leitor e jogador de RPG, que um personagem não é somente uma planilha de estatísticas, é algo que vai além e que tem uma importância muito grande.

Como um personagem bem construído ajuda o narrador a criar uma história melhor? Um personagem mais rico em detalhes, que tenha limitações, problemas, que tenha emoções, inimigos, com certeza é um personagem muito mais interessante do que um personagem sem defeitos, excelente em tudo, perfeito moralmente. Um personagem que tenha conteúdo terá um conjunto de informações muito importante, e essas informações servem para o narrador usar para montar novas aventuras, e melhor, aventuras que tenham haver com o seu personagem, e com o grupo. Uma aventura criada sob medida para o seu herói é mais interessante do uma aventura genérica, porque os desafios serão adequados e quando superados, trarão uma satisfação muito maior. Se o seu personagem, por exemplo, é um caçador de orcs, o mais lógico seria que o seu personagem tivesse uma boa quantidade de encontros, ao longo da campanha, contra orcs, para favorecer o seu personagem.

Pense por um momento em dois filmes de aventura que você goste (não vale dois filmes da mesma série, como dois filmes do Harry Potter). Agora troque os heróis de um filme com o do outro. Vê como as coisas ficam estranhas? Isso acontece porque esses personagens não foram construídos para esse cenário, ou seja, suas habilidades e motivações ficam completamente sem sentido num lugar estranho. Em uma narrativa devemos pensar dessa maneira, e construindo um personagem interessante, o seu narrador vai poder montar um cenário de campanha que comporte adequadamente o seu personagem, e as aventuras serão ajustadas para ele (ou no caso, o grupo de heróis).

É preciso haver bom senso, no entanto. Procure pensar no conceito de um personagem que se encaixaria dentro do cenário e da proposta de jogo. Não faz muito sentido querer fazer um domador de chocobos num mundo que não possui esse tipo de animal. O narrador sempre tem a palavra final a respeito do que é válido ou não, tanto em termos de mecânica quanto em termos de conceito. Portanto, seja flexível para aceitar sugestões do narrador e entenda que, se ele limitar alguma coisa, é para que você se encaixe melhor dentro do jogo.

Quando se está construindo um personagem, primeiro você pensa no conceito dele e então começa colocar essas idéias no papel. Na linguagem do RPG isso se chama background (base de fundo) do personagem. É o conjunto de informações sobre ele que são descritivas, explicando como ele é, de onde ele veio, para onde ele vai, descrição física, psicológica, etc. São essas informações que o narrador irá utilizar posteriormente para montar a história. Lembra quando eu disse que a crônica tem os personagens como pilar principal de sustentação? Então, a crônica vai mostrar nada menos do que a evolução dos personagens principais, o crescimento daquele personagem que começou em um background até se tornar um lendário herói.

Um background é:

  • A descrição completa do seu personagem;
  • A base de informações que servirá de ponto de partida para fazer o seu personagem evoluir;
  • O instrumento que o narrador tem para entender como o seu personagem é e porque ele é assim;
  • Todas as idéias do seu personagem que não são números e informações mecânicas;
  • O ponto de partida para a criação da parte mecânica da ficha de personagem;

Esse material deve ser o primeiro passo na criação de um personagem. Costuma ter alguns parágrafos de tamanho. Menos do que isso é praticamente impossível fazer um background descente. Mais do que isso, provavelmente terá muitas informações inúteis ou redundantes. Note que um personagem não deve ter um conceito extremamente detalhado e longo, porque ele é um personagem que estará começando as aventuras a partir de agora (o início da campanha), então, essas informações serão apenas um ponto de partida para o personagem, é interessante que algumas delas fiquem em aberto.

Deixar informações em aberto? Na linguagem do RPG, isso se chama ganchos de aventura (plot hooks). São informações que o narrador poderá utilizar para eventualmente montar uma aventura em cima. Alguns exemplos de ganchos que um background pode ter:

“Karmog, durante sua infância, presenciou sua tribo sendo atacada por um bando de centauros. Ele jurou vingança”. Nesse exemplo, o personagem mostra que tem um oponente e que está disposto a enfrentá-lo quando surgir à oportunidade. Isso é algo que o narrador pode usar para montar uma aventura, quando o personagem já tiver o nível de poder relativamente adequado para enfrentar esse desafio que o narrador imaginou. Isso desenvolverá esse pedaço do seu background. Naturalmente que um fato assim teria consequências, como por exemplo, o personagem descobrir que o bando atacou porque foi ordenado por um sanguinário general por motivos misteriosos, ou poderia simplesmente ter terminado ali, colocando um fim no sentimento de vingança do personagem. Ambas as consequências teriam efeitos diferentes sobre a personagem, e isso é o mais interessante.

Já outro exemplo seria: “Darik é um jovem e sedutor artesão que aprendeu desde cedo com seu pai a trabalhar na confecção de esculturas”. O narrador poderia utilizar essas idéias para elaborar desafios sociais, envolvendo de preferência personagens do sexo feminino, para que ele tivesse a oportunidade de trabalhar com esse lado sedutor do personagem. Poderia também incluir desafios associados ao trabalho com esculturas, ou mesmo a relação dele com seu pai, que me parece ser uma relação bem próxima. Todas as idéias, mesmo as de uma simples frase, podem servir como ganchos para aventuras. É interessante que o narrador incentive os jogadores a desenvolverem em seus backgrounds esse tipo de informação, deixar algumas idéias em aberto, podendo servir de oportunidades para que sejam desenvolvidas ou resolvidas posteriormente, ao longo da crônica.

A ausência de um bom background acaba implicando diretamente na qualidade do personagem de maneira geral. Se o personagem tiver um background fraco, ele será um personagem sem conteúdo, e as histórias contadas para ele serão ruins. É interessante que um personagem seja verossímil, ou seja, que pareça real. Nós, seres humanos do planeta Terra, temos limitações, problemas, pensamos de maneiras diferentes e tentamos resolver problemas de formas específicas. Não podemos resolver tudo e nem somos amigos de todo mundo. Alguns são religiosos, outros não. Nascemos, crescemos em um lugar, convivemos com certas pessoas, gostamos mais de umas do que de outras. O seu personagem numa campanha de RPG pode ser exatamente assim. E se for, será mais interessante.

As narrativas serão contadas para os personagens, não para seus blocos de estatísticas. O RPG é essa mistura, de contar histórias com jogo de tabuleiro. Dessa forma, a ficha com as estatísticas são importantes pelo lado mecânico do jogo, mas, o background com o conceito também são igualmente importantes pelo lado da história que estará sendo contada por todos. Fica muito mais fácil na verdade, montar a parte mecânica do personagem, uma vez que a parte conceitual já esteja bem construída. Isso te poupará tempo, e facilitará sua vida na hora de interpretar o mesmo. Você olha para o background e tem uma ótima noção de como seu personagem se comportaria, que tipo de coisa ele falaria em determinada situação e se ele teria razões ou não para se envolver em determinado conflito.

Como foi possível perceber, as aventuras que vão acontecer ao longo da campanha vão desenvolver o personagem, de pouco em pouco. Isso significa que o seu personagem vai mudar ao longo do tempo. Ele era alguém que acabou de ficar pronto para iniciar suas aventuras, e provavelmente terminará a história de uma maneira diferente. Geralmente, no final da história ele terá resolvido todos os nós que tinha no background. A história acaba porque já não tem mais o que mostrar de interessante sobre aquele indivíduo. É bom que os jogadores tenham essa noção, de que o seu personagem vai sofrer mudanças. Portanto, é bom evitar pensar no personagem no início como se ele já fosse uma lenda vida. Na verdade, é o contrário. Seu personagem vai começar a se aventurar justamente por ter acabado de se preparar para ir começar a se aventurar, ou seja, ele não sabe muitas coisas e nem pode fazer tantas coisas assim por enquanto.

Portanto é sempre bom ter em mente:

  • Deixe idéias em aberto no seu background para que o narrador utilize para montar aventuras;
  • Seu personagem sofrerá mudanças com o tempo, não tente ser imutável;
  • A história provavelmente acabará para o seu personagem se ele não tiver mais nada para resolver;
  • Um bom background ajuda você a montar sua ficha e a interpretar o personagem;
  • Quanto melhor o conceito do seu personagem, melhores serão as aventuras para você;

Os personagens ficam bons quando são verossímeis, isso é, procuram ser o mais reais possíveis. Quando for construir um novo personagem, procure se espelhar em personagens de bons filmes, em pessoas reais, procure pensar em um personagem que poderia existir de verdade. Essa pessoa não seria perfeita, teria medos, inseguranças, problemas, amigos e inimigos, uma visão política, uma visão religiosa, valores morais, preferências, etc. Note, no entanto que não precisa ser muito detalhado e nem precisa desenvolver um personagem com informações muito complicadas ou com assuntos delicados demais, porque será um personagem de um jogo de fantasia, e a idéia é se divertir com ele.

Procure adequar essas idéias do conceito segundo os parâmetros do cenário em que você estiver jogando, converse com o narrador durante a criação do background para saber se está montando algo adequado ou não, eventualmente converse com seus colegas de mesa para que possa cruzar uma ou outra informação (lembre-se que você estará junto de outros heróis, algumas coisas em comum vocês terão que ter). O narrador costuma dar o limite do que é aceitável ou não dentro da história, e é importante ter isso em mente para não ultrapassar os limites. Quando mais adequado seu conceito estiver, melhor para você. Não adiantaria muito criar um personagem detalhado como o de um romance de Shakespeare sendo que o cenário é de comédia e ficção científica japonesa… bom senso nessas horas é bem vindo.


Leonardo “Mammoth” Zarpellon é um estudante de Administração que, ao longo de vários anos jogando RPG, constatou que contar histórias não é um ponto forte da sua sociedade. Insatisfeito com as campanhas que começam e terminam poucas semanas depois, e com a ajuda de Diego “Baldwin Ironheart” Nascentes Branco e Eduardo “edthere” Gimenes, ele decidiu compartilhar suas idéias com os que já tiveram experiências parecidas e para os que estão no começo da carreira dentro do hobbie, para que encontrem uma solução para seus problemas. Ele espera que aqueles que se sintam ajudados pelas dicas, enviem quantias generosas de dinheiro para sua conta nas Bahamas.

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