Bestiário Sul-Americano (Parte 3 de 3)

Pintura de Ricardo Celma

Como que vocês vão? Eu decidi reunir e mostrar algumas das criaturas encontradas em folclores e mitologias da América do Sul. A lista tem 92 seres, então eu a dividi em três partes. Também excluí monstros brasileiros populares como o Boto e o Curupira, mas ainda assim a lista tem diversas criaturas brasileiras. Esta é a terceira parte, no final há os links para as duas anteriores.

63) Okpe – Monstro do folclore indígena Tehuelche. Imagine um porco gigante feito de pedra. Ele não tem pontos fracos. O Okpe devora crianças, usando carne assada como isca e carregando-as em uma engenhoca no dorso selva adentro.

64) Omar – Espírito aquático com o corpo de um caranguejo e peixe gigantes. Os Omars gostam de comer madeira podre, mas afundam barcos quando os confundem com troncos flutuantes. A lenda conta que um “Peaiman” (xamã ou feiticeiro) cuidadosamente enrolou dois pedaços da madeira usada para acender fogueiras, para que não ficassem úmidos. Então ele se deixou ser engolido por um Omar. O Peaiman achou muita madeira dentro da barriga do monstro, e pôs fogo nela. O Omar sentiu muita dor, subiu à superfície, arrotou o xamã e morreu. Do folclore das Guianas.

65) Onça Celeste – Mitologia Tupi-Guarani. Acredita-se que os eclipses são causados por uma onça de coloração azulada comendo o sol e a lua. Quando o mundo acabar, ela descerá ao mundo e devorará as pessoas. Até lá, ela descansa abaixo da rede de dormir de Nhanderuvuçu, o deus supremo.

66) Oroli – Uma serpente gigante das tradições das tribos Arawak, Carib e Akawais. Ela se estende entre árvores como se fosse uma ponte viva. O monstro faz com que pedaços da sua carne caiam no chão, onde eles se tornam pedaços de madeira seca, boa para fogueiras. Quem passa por baixo da Oroli, catando a madeira, é atacado. Um bando de guerreiros matou a Oroli com zarabatanas e flechas envenenadas. Em seguida incendiaram a carcaça. Das cinzas cresceram plantas, e destas eles colheram muitas “binas” (fetiches ou amuletos). As tais binas podem ser usadas para atrair todo tipo de animal, trovão, chuva e até relâmpagos.

67) Peuchen – Mitologia Mapuche. A maioria das descrições concorda que o Peuchen se parece com uma enorme serpente voadora que produz assovios estranhos, e que o seu olhar pode paralisar a presa para que ela lhe sugue o sangue.

68) Peuquen – Folclore chileno. Gnomos que se vestem em folhas da árvore “Gevuina avellana”. Eles também usam um chapéu feita da casca e um machado cuja empunhadura é da madeira desta árvore. É perigoso encontrar um Peuquen, pois quem o faz tem a sua cabeça virada pelo resto da vida. Estes gnomos gostam de ter relações com mulheres humanas. Crianças nascidas destas relações tem a pele parecida com a casca da árvore avellana.

69) Pishtaco – Folclore andino. Não me ficou claro se é um monstro parecido com um homem, ou simplesmente um homem maligno. Seja como for, quase sempre é um estranho e também um homem branco, que busca indígenas para matá-los, coletar a sua gordura e vender a sua carne. Parece haver uma relação com uma crença da época da conquista espanhola, de que certos espanhóis teriam usado a gordura extraída de índios para lubrificar as suas armas de fogo e canhões. Pishtaco é um nome que deriva da palavra quechua “pishtay”, que significa “decapitar, cortar a garganta, cortar em pedaços”.

70) Pururauca – Lenda Inca. Durante uma grande batalha decisiva, os Incas estavam em menor número e encaravam um inimigo terrível. Eles pediram a ajuda da sua maior divindade. O deus Viracocha respondeu, transformando pedras em soldados que ajudaram os Incas a defender a sua cidade.

71) Roraima – Mitologia indígena venezuelana. Esse é o nome da mãe de Makunaíma e Pia, que são heróis ou deuses que matam monstros. Eles deixam a mãe deles no topo do tepui (que significa “casa dos deuses”), que devido a isso também se chama Roraima. Isso faz ela chorar, e as suas lágrimas são tão numerosas que criam cataratas nos flancos do monte. Existem lendas que falam que os montes Roraima e Kukenam tem mares cheios de peixes e golfinhos, mas águias brancas gigantes impedem que as pessoas escalem estas montanhas. Uma outra lenda sobre o monte Roraima conta que ele é guardado por uma jiboia tão imensa que ela poderia esmagar cem pessoas de uma vez.

72) Romŝiwamnari – Mitologia do povo Xerênte. Estes são demônios que habitam florestas e cavernas. Eles se parecem com grandes pássaros com pequenas asas de morcegos. Os seus bicos são como tesouras. Os Romŝiwamnari não apenas atacam os vivos, eles também devoram as almas dos mortos. Um xamã poderoso pode matá-los no reino dos mortos.

73) Sachamama (“Mãe da Floresta”) – Uma das três serpentes matriarcas da Amazônia peruana. Ela tem quarenta metros de comprimento e dois de largura, uma cabeça tal qual uma iguana e escamas semelhantes a placas de pedra. Há um bosque inteiro no seu dorso, com árvores, fungos, ervas, etc. Ela não precisa se mexer porque consegue hipnotizar qualquer animal que passe por perto, para que o mesmo venha até ela e seja comido. Sachamama consegue invocar tempestades, chuva e relâmpagos. Ela também causa febres e dores de cabeça em quem invade os seus domínios. Muitas das plantas nas suas costas têm usos medicinais. Tem até uma “árvore do trovão”, cuja casca, caso engolida, permite que uma pessoa possa invoca e parar tempestades.

74) Sapo Fuerzo – Folclore chileno. Um sapo com um casco semelhante ao de uma tartaruga. Ele também brilha no escuro, tal qual um vaga-lume. O nome é devido aos seus poderes sobrenaturais e resistência. O Sapo Fuerzo pode atrair ou repelir qualquer coisa através do poder do seu olhar. Ele também consegue regenerar qualquer ferimento. A única maneira de matá-lo é reduzindo-o a cinzas por completo.

75) Enxós de Pedra – Uma tribo de pessoas petrificadas. Eles estão assim porque foram punidas por alguém, ou algo. Outras tribos vem até eles porque os Enxós, como o nome indica, são uma ótima matéria-prima para se fazer instrumentos como enxós (usado por carpinteiros para desbastar a madeira) e machados. Folclore da Amazônia.

76) Supay – Esse é o nome tanto do deus da morte Inca, quanto de uma raça de demônios que o serve. Supays são associados aos rituais dos mineiros, talvez porque o deus em questão era o governante de Ukhu Pacha, o submundo da mitologia Inca. Após a conquista espanhola, ele foi associado ao Diabo.

77) Taquatu – Folclore da Terra do Fogo. Taquatu é um gigante invisível com uma canoa voadora igualmente invisível. Ele sequestra pessoas e as leva a lugares dos quais ninguém retorna. É dito que este monstro tem uma caverna cheia de restos humanos no topo de uma montanha que não pode ser escalada.

78) Teju Jagua – O primeiro filho de Tau e Kerana, um dos sete monstros lendários da mitologia Guarani. Um lagarto imenso com sete cabeças de cachorro e olhos que disparam fogo. Algumas versões do mito dizem que ele tem apenas uma cabeça. Mas todas concordam que a(s) cabeça(s) faz com que tenha dificuldades em se mover. A sua aparência é a mais horrível entre todos os seus irmãos. Apesar da ferocidade, ele come frutas e o mel trazido por seu irmão Yasy Yateré. Considerado o senhor das cavernas e protetor das frutas. Também dizem que ele protege tesouros enterrados. A sua pele é brilhante devido a se rolar no ouro e pedras preciosas de Itapé.

79) Tigtitig – Folclore das Guianas. Este é um pássaro gigante que tenta devorar as almas dos recém-mortos quando elas voam na direção de uma terra paradisíaca ao oeste. A alma deve então lutar com o pássaro para evitar isto. Este pássaro também pode causar deformidades em crianças recém-nascidas. Uma lenda parecida fala de almas indo a certos lagos onde são comidas por cobras monstruosas que então as levam até um paraíso de dança e bebida. Fico agora imaginando ambas as  criaturas lutando pelas almas dos mortos.

80) Trauco – Folclore do arquipélago Chiloé. Um goblin que vive nas profundezas da floresta. Ele tem um rosto feio e pernas sem pés. Também possui um magnetismo que atrai mulheres jovens e de meia idade. Apesar disto, ele tem uma esposa, a maliciosa e feia Fiura. O Trauco carrega consigo uma machadinha de pedra que ele usa para bater em árvores na floresta, um símbolo de sua potência sexual. Quem for escolhida pelo Trauco vai até ele, é impossível resistir, mesmo se estiver dormindo. Alguns homens de Chiloé tem medo do Trauco, pois o seu olhar pode matá-los. Esta criatura é usada para explicar uma gravidez súbita ou indesejada, especialmente quando se trata de mulheres solteiras.

81) Trempulcahue – Mitologia Mapuche. Quatro anciãs se transformam em baleias a cada anoitecer, levando as almas dos mortos para “Ngill chenmaywe”, um lugar de onde as almas podem viajar até o seu local de descanso. As Trempulcahue recebiam pagamento na forma de “llancas”, pedras de turquesa.

82) Uakti – Segundo a lenda do povo Tucano, esta criatura tinha buracos no corpo que produziam música quando ele corria ou o vento passava através dele. A melodia seduziu as mulheres da tribo, então os homens queimaram e enterraram o corpo de Uakti. O mito conta que, do local onde ele foi enterrado, cresceram as palmeiras que os Tucanos usam para fazer flautas. As mulheres do povo Tucano não podem tocar nestas flautas, no entanto.

83) Warracabas – Também chamadas Waracrabas e Y’agamisheri, fazem parte do folclore das Guianas. Onças pequenas e ferozes que caçam em grupos de até cem animais. Diferente de onças comuns, não temem o fogo, embora tenham medo do latir de cachorros. Também tem aversão à água. Elas podem variar em tamanho e cor. É dito que vivem nas montanhas, indo às terras baixas quando famintas.

84) Water-mámmas – Mitologia da tribo Warrau. Um tipo de espírito que pode assumir múltiplas formas. No rio Demerara, mámmas assumem a forma de imensas araras rubras que emergem da água e carregam canoas inteiras consigo para dentro d’água, ocupantes dos barcos inclusos.

85) Onça d’Água – Mitologia Guarani. Apesar do nome, esta é uma criatura quadrúpede semelhante a um “macaco demoníaco”, com o pelo tendo a mesma pintura da onça. O monstro vive submerso, usando um imenso rabo para enroscar as pernas de pessoas que passam por perto e afogá-las. As mesmas não são devoradas, então parece que a Onça d’Água faz isto só por maldade.

86) Yaguareté-abá – Mitologia Guarani. Também chamado Capiango, é um xamã que se transforma em uma onça-pintada gigante. Vai então comer gado e cavalos, animais trazidos pelos colonizadores que invadem a sua terra. Também come carne humana. Para matar um Capiango, deve-se usar balas ou lâminas abençoadas por um sacerdote. Após a morte, a cabeça deve ser decapitada. Assim, a criatura se torna um humano sem cabeça novamente. Outra versão da lenda conta que o Capiango é uma onça possuída pela alma de um homem bom e justo que foi assassinado, podendo assim caçar a pessoa que o matou. Nesta forma animal, é tão inteligente quanto foi em vida, mas incapaz de falar.

87) Yaguarón – Um peixe verde gigante com dentes de sabre. Ele consegue escavar túneis sob as margens dos rios, causando deslizamentos que fazem pessoas e animais caírem na água. O Yaguarón então devora os pulmões deles.

88) Yacumama (“Mãe das Águas”) – Folclore do Equador e do Peru. Tem a forma de uma jibóia enorme, com escamas azuis e olhos brilhantes como os faróis de um barco. Ela consegue paralisar a sua presa apenas com o olhar. Quando está feliz, abençoa as pessoas com muita chuva e abundância de peixes. Quando fica furiosa, invoca tempestades, névoas e redemoinhos, além de usar os seus cinquenta metros de comprimento de maneira destrutiva. Yacumama também é capaz de engolir todos os peixes para que pescadores não consigam pegá-los, ou voar aos céus e causar chuvas torrenciais que arruinam plantações. Oferendas de comida e aguardente podem acalmá-la.

89) Yayá – Uma onça que se transforma em uma mulher. Ela vive em uma grande caverna chamada Olho d’Água. A sua presença é percebida devido ao seu canto e os tornados que surgem na região. Ela não aceita a presença de estrangeiros, deixando isto claro com um assovio que todos podem ouvir, podendo então abandonar a região ou atacar o(s) estrangeiro(s) em questão. Apenas xamãs podem acalmá-la. Ela também ataca gado. Líderes locais buscam o seu conselho em assuntos pessoais e comunitários. Yayá também pode dizer coisas sobre o passado, presente e futuro. Qualquer caverna na qual ela vive ou viveu se torna sagrada.

90) Yerupoho – Essas criaturas da mitologia Waujá tem um folclore complexo, que vou tentar resumir.

Em tempos primordiais, havia apenas escuridão. Existiam dois tipos de seres: os Yerupoho e humanos, estes últimos escondidos dentro de cupinzeiros. Em um certo dia, os Yerupoho descobriram que os heróis humanos despertariam o sol. Essa mudança súbita assustou-os, e eles passaram a criar “armaduras”: roupas, máscaras e pinturas corporais que os protegeriam do sol.  As “armaduras” eram baseadas em muitas coisas, como plantas, utensílios, animais, etc. Quando o Yerupoho vestia a “armadura”, ele assumia a identidade caracterizada pela mesma, tornando-se um Apapaatai. Essa nova categoria de criatura se tornava protetora e/ou dona das coisas usadas nas suas respectivas armaduras. Por exemplo, um Apapaatai cuja “armadura” incluía uma máscara de urubu, se tornava um monstro tal qual um abutre humanoide de duas cabeças. Outros exemplos de Apapaatai são: cobras-barcos, peixes-flauta, araras aquáticas, onças celestiais, etc. Inúmeras misturas e variações são possíveis. Os monstros são muito inteligentes, perigosos, criativos, maliciosos e muitos deles sabem usar magia. Além disso, um único Yerupoho pode usar muitas “armaduras” diferentes, adquirindo traços e poderes de acordo com o que está vestindo.

Eu escrevi acima que um certo Yerupoho é o dono e/ou protetor da coisa da qual a sua “armadura(s)” se baseia(m). Isso significa que, por exemplo, usar um certo tipo de madeira para um bote ou comer uma espécie específica de caranguejo resulta no humano invadindo o domínio de um Yerupoho. Quando isso acontece, o último causa doenças mágicas no invasor. Ou talvez tente simplesmente comer a alma do respectivo humano. As consequências práticas são a existência de muitos tabus sobre o que se pode comer ou usar da selva. O xamã é responsável por curar a doença ou salvar a alma da vítima.

Embora os Yerupoho estejam presentes em todo lugar, só podem ser vistos em sonhos, transes, quando alguém está doente ou morrendo. Máscaras, desenhos rituais e flautas são usadas para que se possa vê-los fora dessas ocasiões, porque, quando usam tais artifícios, os humanos se tornam algo similar aos Apapaatai. Xamãs são capazes de convencer Apapaatai a obedecê-los ou servi-los. Isso requer que o xamã fique doente de propósito, resistindo à doença mágica e incorporando-a. Ter servos Apapaatai traz uma série de poderes, por exemplo, divinação. Esse processo de ficar doente e absorver a doença parece ser necessário para que uma pessoa torne-se um xamã. Remover doenças ou resgatar almas requer o uso de canções secretas que apenas os xamãs conhecem.

Peço desculpas se isso é meio confuso, mas tentei resumir o que é uma cosmologia única. Uma interpretação pessoal, para propósitos de RPG, é que Yerupoho são espíritos feitos de escuridão que foram forçados a criar corpos físicos (talvez construtos feitos de materiais orgânicos/naturais como folhas, ossos e argila?), os ditos Apapaatai, para que os Yerupoho não fossem destruídos pelo sol. E eles disputam com humanos o controle sobre certas plantas, animais e objetos que usam como matéria-prima para os seus corpos, criando um conflito eterno. Os xamãs, além de defenderem os humanos, poderiam ser vistos como embaixadores sobrenaturais neste contexto.

91) Xiriminja – Mitologia do povo Waimiri Atroari. São homens-peixe, mas aprece que as únicas características que os distinguem dos humanos são as membranas entre os dedos. Vivem no fundo dos rios e ensinaram os Waimiri Atroari como fazer sexo e se casar, tecer cestas, cantar, dançar e como plantar.

92) Zaori – Folclore brasileiro. Uma pessoa abençoada. Zaoris se parecem com pessoas comuns, exceto que os seus olhos brilham. Eles podem ver através de pedras, terra e até montanhas inteiras, podendo localizar tesouros escondidos. Prata e ouro, cristais, armas raras, nada escapa do olhar deles. Mas tem um porém: um Zaori não pode usar o seu poder em benefício próprio, por exemplo, ficando rico. Pode apenas beneficiar outras pessoas.

Primeira parte: rederpg.com.br/2020/06/24/bestiario-sul-americano-parte-1-de-3/

Segunda parte: rederpg.com.br/2020/07/01/bestiario-sul-americano-parte-2-de-3/

Bruno Kopte é membro da equipe REDERPG. Junto com Felipe Salvador, desenvolve o cenário de fantasia Atma, encontrado aqui.

Pintura de Ricardo Celma

Leave a Reply