“3:16 Carnificina Entre as Estrelas” (doravante apenas 3:16) é um RPG de ficção científica militar, trazido ao Brasil pela editora Retropunk, com grande influência de obras como o livro (e filme) “Tropas Estelares” e o cenário do RPG “Warhammer 40,000”. O livro tem cerca de 100 páginas, uma (linda) capa colorida e interior P&B, com ilustrações simples, que refletem bem o clima do RPG. Ele utiliza o formato “paisagem”, o que torna a leitura no computador bastante agradável. O estilo da escrita é leve e divertido, e os erros de tradução são relativamente raros. Essa resenha foi baseada na versão em PDF.
3:16 representa uma proposta relativamente incomum nos RPGs: ao invés de propor um sistema universal ou mesmo dirigido a um gênero ou cenário para que o grupo crie suas próprias aventuras, o livro tem uma história bastante específica para contar – embora caiba ao grupo definir seu desenvolvimento e conclusão – e não perde esse foco em nenhum momento.
Por isso, é possível encarar 3:16 não como um sistema de RPG, mas sim uma campanha pronta, com um sistema criado especificamente para ela. Essa perspectiva esclarece muitas das escolhas adotadas pelo autor, como as regras minimalistas, que consistem apenas nos elementos indispensáveis para o desenvolvimento da narrativa proposta, sem complicações desnecessárias.
3:16 se passa num futuro distante, em que a Terra se tornou um paraíso onde a vida eterna é uma realidade e a violência é praticamente desconhecida. No entanto, muitas pessoas, atraídas por promessas de emoção e aventura, decidem se juntar às Forças Expedicionárias, e partem da Terra para explorar o universo. Os personagens dos jogadores (PJs) são militares da 16ª Brigada do 3º Exército da Força Expedicionária, e dedicados a conhecer novos planetas e destruir todos os alienígenas que encontrarem pelo caminho, supostamente para evitar que eles venham a ameaçar a humanidade. Os humanos aqui estão no topo da cadeia alimentar: são eles os invasores, e quando entram em conflito derrubam dezenas ou até centenas de inimigos para cada humano ferido ou morto.
Todas as missões em 3:16 tem a mesma estrutura básica: os PJs escolhem um planeta, vão até lá e, após muitos problemas, acabam por aniquilar todos os habitantes do local, ganhando armas novas e avançando na hierarquia. Mesmo nessa pequena moldura, no entanto, há muitas possibilidades de variedade, pois cada planeta tem suas próprias características, clima, inimigos (com várias poderes especiais e níveis de dificuldade diversos), e assim por diante. Embora não exista suporte para personagens não militares, nem guerras entre espaçonaves ou aventuras focadas em intriga ou ambientadas na terra, há bastante espaço para situações dramáticas, histórias comoventes e escolhas morais.
O sistema de 3:16, fiel à sua proposta, é extremamente simples. Os PJs tem apenas duas habilidades, Habilidade de combate (HC), que serve basicamente para matar inimigos, e Habilidade Fora de Combate (HFC), que serve para todo o resto (apesar do nome, a HFC é usada em algumas situações de combate, como trocar de armas ou posição durante um conflito). Os alienígenas tem apenas uma habilidade, a Habilidade Alienígena (HA), usada para todas situações. As habilidades variam de 1 a 10 e são testadas com um d10 – se o resultado do dado for igual ou menor do que a habilidade testada, a ação é um sucesso, e quanto maior o número obtido melhor o sucesso.
Além das Habilidades, cada PJ tem um posto, uma reputação, armas e outros equipamentos. O posto é um dos dados mais importantes do personagem, pois determina as armas a quem o PJ tem acesso e as ordens que devem seguir. As armas também são de vital importância pois definem quantos inimigos os PJs são capazes de matar, o que por sua vez pode aumentar sua HC, HFC, e disponibilizar mais Lembranças.
As Lembranças são recursos que os jogadores utilizam para alterar a narrativa independentemente do resultado dos dados. Elas são divididas em Forças, que permitem vitórias automáticas em conflitos, além de possibilidades de subir de hierarquia no futuro, e Fraquezas, que causam uma derrota a quem as utiliza podem gerar rebaixamentos, mas permitem que o Jogador narre como se deu tal derrota, potencialmente salvando sua vida numa situação de desespero. Embora os Jogadores devam inventar as Lembranças disponíveis conforme precisarem delas, a última Fraqueza de todos é a mesma: o Ódio de Casa, ou seja, da terra.
A combinação desses elementos aponta para a criação de uma história de soldados que, enquanto combatem inimigos externos e encaram suas forças e fraquezas internas, se deparam cada vez mais com o horror da guerra e, ao final, com o terrível significado de seu próprio papel na sociedade humana: o de genocidas em escala cósmica sob ordens de terráqueos que os traíram e abandonaram.
Tal narrativa é talvez o ponto mais forte de 3:16 – e parece capaz de render uma campanha divertida, dramática e emocionante. Embora o livro forneça muitas ferramentas para uma campanha focada apenas em ação e combate (e o sistema simples e elegante possa ser facilmente adaptado para outras campanhas de guerra), seria um verdadeiro desperdício ignorar os outros temas apresentados. No entanto, o livro deixa essa narrativa em segundo plano – e, em muitos momentos, parece colocar o leitor dentro da cabeça dos soldados da 3:16, prometendo uma vida de aventuras, armas cada vez mais poderosas e medalhas sem nenhum valor real, se apenas ele aceitar o “genocídio preventivo” de espécies alienígenas como um comportamento desejável.
E isso nos leva a maior fraqueza de 3:16: as questões de que realmente importam acabam sendo tratadas de forma exageradamente sucinta ou totalmente ignoradas. Se às vezes o livro parece estar satirizando a guerra e a própria natureza circular de alguns RPGs (matamos monstros para ganhar mais armas para matar mais monstros), em outras ocasiões o livro parece adotar abertamente uma experiência superficial, quase um jogo de tabuleiro, em que as lembranças dos personagens devem ser descritas de forma breve para não atrapalhar a ação, os PJs são facilmente substituíveis e nada de realmente importante acontece sem relação direta com os combates, o que tira parte do impacto desejado.
O que fazer quando todos os alienígenas estiverem mortos (ou quando matar alienígenas se tornar tedioso)? Como lidar com o sentimento de ódio contra a terra? Haveria meio de comunicação pacífica com outras espécies? Porque arriscar vidas humanas quando existem armas capazes de destruir planetas inteiros à distância? Qual é, afinal, a justifica para a agressividade da Força Expedicionária? E o que acontece quando os personagens perceberem que os verdadeiros inimigos não são aqueles que eles estão aniquilando? O livro não explica. Talvez o autor tenha deliberadamente deixado tais perguntas em aberto para que os leitores descubram suas próprias respostas, ou, como foi dito, para que eles entrem na mentalidade militar dos personagens.
É claro que, em certa medida, cabe ao grupo decidir a profundidade com que vai tratar o jogo, mas não há muito suporte nas regras para lidar com as questões mais “complexas” mencionadas no parágrafo anterior. Fica a impressão de que o livro tem ideias valiosas que não foram integralmente exploradas. Mais algumas páginas trazendo detalhes sobre como desafiar o Brigadeiro, a própria Terra ou apenas a hierarquia militar seriam de extrema utilidade, assim como regras para cooperação e intriga.
Se você estiver procurando um RPG de ação rápido, divertido, com regras simples e elegantes, 3:16 é um jogo perfeito. Se você procura discutir as questões ética envolvidas no jogo ou mesmo criar personagens com maior profundidade, 3:16 vai apontar o caminho, e caberá ao leitor decidir se questiona as ordens, desafiando a autoridade das regras “oficiais” e a suposta simplicidade do livro, ou apenas cerra os dentes e atira sem pensar em tudo o que aparecer pela frente.
De um jeito ou de outro, 3:16 tem muito a oferecer, e certamente vale a leitura.
Notas (de 1 a 6)
Texto: 5. Direto e agradável, com pitadas de humor negro e um subtexto dramático que merecia ser explorado com mais profundidade.
Conteúdo: 5. Sistema simples e eficiente, que se encaixa perfeitamente ao tema proposto. Ao invés de tentar fazer tudo ao mesmo tempo, 3:16 trata de um tema bem específico, e o faz muito bem.
Arte/layout: 5. A arte é despretensiosa e não chega a impressionar, mas é adequada ao texto. Leva um 5 por causa da bela capa e do layout que facilita a leitura.
Nota Final: 5.
Por: Erik Drake
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