Legacy: Life Among the Ruins 2nd Edition (resenha)

Legacy: Life Among the Ruins é um RPG que desafia uma descrição concisa. Qualquer escolha de definição parece cruel em relação as possibilidades que o livro apresenta. Evitando então limitar por possíveis rótulos como Ficção Científica, Fantasia ou mesmo Horror, o que se depreende da leitura do livro é que Legacy se trata de esperança, quando tudo o mais deu errado.

É um RPG pós-apocalíptico, mas o que trouxe a Queda da humanidade, é uma incógnita que está para ser revelada pelos jogadores e Mestre, ainda na escolha e construção das personagens e suas famílias, assim como ao longo do jogo. Não estamos falando de um Eclipse Phase ou qualquer outro RPG em que a Queda já foi definida, assim como seus possíveis temas e gêneros narrativos, mas um em que cenários estão abertos mesmo quando existem alguns indicadores de que caminhos possam ser seguidos. Por exemplo, a escolha das famílias, pode definir que existam seres sintéticos ou um grupo de pessoas que voltou no tempo e, ainda assim, os meios pelos quais essas famílias são o que são ficam a cargo da imaginação dos participantes do jogo.

Esse grau de narratividade conduzida, não deve ser estranho a quem experimentou os RPGs de quem ele tomou emprestado o seu sistema, como o Apocalipse World. Assim como ele, Legacy utiliza playbooks: um conjunto de arquétipos e estereótipos que se adequa a seu universo narrativo. Aliado aos playbooks de personagens, em Legacy há também playbooks para as famílias, outro elemento singular nesse RPG. Em Legacy, você não joga com uma personagem apenas, mas com uma personagem que pertence a uma família que é também controlada pelo jogador. O objetivo das várias famílias – ou pelo menos o que deixarão na história da narrativa – é o seu legado, que pode até mesmo ser a reconstrução de um mundo antes arruinado.

Os eixos de tempo e elenco em Legacy, se expandem bem além de um RPG comum. Imagine, para falar de um RPG conhecido no Brasil e na tentativa de deixar tudo mais claro, que o jogador controle, por exemplo, um clã de vampiros que veio para uma cidade brasileira no século 15. Nesse primeiro tempo do jogo, no século 15, ele controla as ações desse clã e de um vampiro específico, o que normalmente em outro RPG, seria o personagem do jogador. Em Legacy, porém, o objetivo é construir uma infraestrutura a longo prazo, que garanta a sobrevivência e segurança de sua família. Algumas sessões ocorrem no século 15, duas ou três, em que o jogador continuamente controla ações da família e da personagem alternadamente (ou concomitantemente, dependendo da situação). Já, nas sessões seguintes, o tempo avança: vamos para o século 17, em que as ações previamente realizadas tem impacto na família/clã e cenário. O jogador escolhe outra personagem (ou, caso o vampiro esteja ainda vivo, possa até jogar com o mesmo) e voltamos ao contínuo trabalho de luta pela sobrevivência de sua família, novamente, por algumas sessões, antes do próximo salto temporal, que pode ser de alguns meses, anos, gerações, séculos, como melhor acertado entre os participantes da campanha. O jogo não prevê algo como nesse exemplo, pois tem um forte tema de sobrevivência após uma queda da humanidade, mas a tentativa aqui é de dar clareza sobre sua estrutura e abrangência (e também nada impede que alguém jogue ele dessa forma).

Sistema

O sistema e sua filosofia, é baseado no Apocalipse World, mantendo simples de rolamento de dados e muitas da características da personagem sedimentadas em um playbook, que determina seus elementos arquetípicos ou estereotípicos, assim como faz parte do sistema a ideia de que a sessão de jogo é uma conversação – algo natural em sistemas narrativistas. Mas isso não quer dizer que seja a mesma coisa: os elementos distintos em Legacy tornam ele indisputadamente único e alinhado ao cenário e sua proposição de construção de mundo e transformação do universo em etapas. Sua simplicidade é, de fato, muitas vezes elusiva, como vamos ver a seguir.

Diferente de RPGs que apresentam um sistema de dados que são roladas de forma generalista, em Legacy os dados são usados quando o contexto pede pela realização de um Move (sua maneira de se referir as ações), tornando a rolagem mais específica, situacional. Como o jogador joga com dois playbooks, um da família e outro da sua personagem naquela era, existem Moves específicos para as famílias e para as personagens. Esses Moves são também divididos em gerais e particulares de cada família/personagem (cada playbook dá opções únicas de Moves).

As personagens possuem 4 diferentes stats e as famílias 3. O valor desses Stats são somados aos dados (2D6) e o valor conjunto, comparado ao que diz na descrição do Move, dá um resultado que deve ser narrado pelo Mestre – muitas vezes após escolhas feitas pelo mestre ou jogador, também guiadas pela descrição do resultado no Move.

Por exemplo, Raoul é um Sentinela e um membro dos Patrulheiros (uma família criada usando o playbook dos Lawgivers of the Wasteland). Raoul terá acesso aos Moves gerais e periféricos de Personagens, além dos Moves específicos do Playbook de Sentinel e para a família, terá também Moves gerais e aqueles escolhidos no Playbook dos Lawgivers. Vamos assumir que, nesse exemplo de jogo, as personagens dos jogadores, incluindo Raoul, estão buscando o caminho pra o local onde havia uma antiga base militar antes da Queda. O jogador que controla Raoul decide que sua personagem deve ir à frente do grupo, verificando se não há nenhum perigo eminente. Ele segue algumas centenas de metros e avista um bando inimigo indo em sua direção. Para evitar que o grupo seja emboscado, ele declara o Move Defuse e descreve para o Mestre o que deseja fazer: correr na frente dos inimigos, levando eles em outra direção. Por ser uma atividade física, o Mestre indica que ele deve usar seu Stat de Force. Ele joga os dados e soma ao Stat e o resultado é 8, um sucesso moderado. Na descrição do Move, existem três opções com esse resultado: para ser bem sucedido a personagem terá de sacrificar algo, o sucesso é apenas temporário e por fim, o perigo está presente, mas ameaça outra pessoa ou grupo. O Mestre então diz que ele será bem-sucedido, mas deve deixar para trás sua arma, uma espada comprida e pesada. O jogador aceita e o Mestre descreve que Raoul correu gritando em direção aos bandidos e brandindo sua espada, que lança em direção a eles e então faz uma curva, levando eles para longe do grupo.

Como havia antecipado, o sistema é aparentemente simples (Stat+2D6), mas as escolhas dos jogadores entre os vários playbooks de famílias e personagens, dão a ele profundida e variedade.

Personagens

Diferente de muitos jogos, o personagem principal de um jogador em Legacy não é um indivíduo, mas um coletivo. O que o jogo chama de Família pode ser, de fato, uma família, mas também um grupo ideológico, étnico, uma guilda, etc. O que importa é que os membros desse grupo tem uma história e cultura comum, formando um laço que durará gerações, e a cada geração o jogador irá também interpretar um membro desse grupo, sua personagem individual.

Todas as Famílias podem ser moldadas pelo jogador. Uma Família de Tyrant Kings, pode ser desde os restos do exército que se organiza para manter as ameaças do mundo pós-apocalíptico em cheque ou um grupo de bárbaros do asfalto que aterroriza as vilas que não tem ainda um acordo de proteção com eles.

Para os jogadores, Legacy cria uma relação de co-participação na construção do mundo através da criação de suas famílias. Ele faz isso através de um sistema de gradação, dividindo os playbooks de famílias em três gêneros: Ruins, Echoes e Mirrors.

As três Famílias agrupadas em Ruins representam grupos bem comuns em cenários pós-apocalípticos. Nesse gênero, temos as Famílias de Mercadores, de Vigilantes e de Tiranos. Nenhuma delas implica, necessariamente, em algum grau de tecnologia ou magia, além de qualquer coisa existente hoje, não levando a narrativa para um outro gênero (Fantasia, Ficção Científica).

Echoes já implica em narrativas com algum elemento de gênero adicional. Se alguém escolher fazer uma família nos moldes dos Cultivators of the New Flesh, estaria introduzindo no cenário a capacidade de criar genética (ou magicamente), novas plantas e animais, ou mesmo especificando que o apocalipse foi responsável por mutações. Similarmente, cada um dos playbooks de Famílias de Echoes implica nessas escolhas. The Enclave of the Bygone Lore traz a ideia implícita de que tecnologia miraculosa se perdeu, daí a criação dessa família, que peneira o mundo devastado atrás de seus resquícios. The Pioneers of the Depths garante que exista água (ou elemento similar), em que essa Família tenha afinidade natural.

Mirrors, não apenas apresenta um desvio para outros gêneros, mas também uma especificação maior. The Order of the Titan traz para o jogo criaturas gigantescas, The Servants of the One True Faith é uma Família em que a religião tem efeitos palpáveis e imediatos, The Stranded Starfarers coloca alienígenas no cenário, The Synthetic Hive seres artificiais e, por fim, The Uplifted Children of Mankind inclui no cenário animais com inteligência similar a humana.

Mestre

Para o Mestre, o jogo é um grande “sandbox” cooperativo. Se atendo ou não (como no exemplo que dei acima, sobre vampiros) ao universo pós-apocalítico, o livro dá ampla possibilidade de alterar o sistema e cenário. Assumir a construção coletiva do cenário é também uma grande diversão e desafio, e poucos jogos dão também aos jogadores essas ferramentas.

O livro pode ser adquirido facilmente pelo DriveThru RPG, assim como suplementos. Vale dizer que os suplementos, em sua maior parte, são reconstruções quase totais do cenário e tema. Atualmente existem 5 deles, que podem ser adquiridos em um pacote mais econômico que cada um individualmente, no mesmo site. Alguns deles não são tão diferentes de Legacy, mas outros modificam bastante o tipo de RPG. Em Worldfall, por exemplo, é um jogo de política, em que grupos moldam através de várias gerações, um novo mundo que acabaram de colonizar. Já em Rhapsody of Blood, um castelo de horror transdimensional chega ao nosso universo e apenas a sua família pode deter o mal que seu regente traz à humanidade.

Conclusão

Legacy: Life Among the Ruins foi um jogo que me surpreendeu bastante. Não apenas pelo caráter inovador de controlar um coletivo na maneira como ele o faz (N.E.: Muito antes dele, existiu Aria: Canticle of the Monomyth, de 1994), mas por dar certo na mesa. As sessões que tive fluíram muito bem, inclusive com jogadores iniciantes no RPG. O mais difícil, talvez, é que os jogadores queiram participar da construção coletiva se não estão acostumados com isso. É de fato um esforço conjunto, algo raro em nossa sociedade como um todo, em que esforços coletivos se resumem em grande maioria a aplicação individual do esforço de alguém em uma etapa de um trabalho.

O jogo também surpreende pela mensagem implícita de esperança. Legacy trata da sobrevivência humana após um desastre que pode muito bem ter acontecido graças a ação (ou apatia) humana. O objetivo é a criação de um legado, um esforço coletivo e que raramente pode ser realizado por um único grupo. É a força da união na adversidade, que contradiz muito da ficção pós-apocalíptica guiada por uma lógica suicida de “os direitos pertencem a quem tem a força”. Ele não elimina conflitos entre as Famílias, os legados podem ser pavimentados também em calçadas manchadas de sangue, mas as adversidades que o jogo apresenta são melhor resolvidas em conjunto.

Legacy acaba espelhando muito da literatura humanista e positiva de Ficção Científica. É um jogo que vale a pena ser experimentado, talvez apenas por esse motivo. Outros gêneros têm sua importância, mas em um momento em que somos engolidos por tantas distopias, fictícias e reais, Legacy apresenta um escapismo com um espírito de resiliência.

Em Legacy: Life Among the Ruins existe vida que vale a pena preservar e cuidar, mesmo entre as ruínas.

Legacy: Life Among the Ruins 2nd Edition
Autores: Jay Iles e Douglas Santana Mota
UFO Press, 2018

Resenha escrita por Haroudo Xavier

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