Arquivo REDERPG: Little Fears (resenha)

Enquanto aguardamos o lançamento em português pela RetroPunk, vocês podem conferir a resenha da 1ª edição original em inglês de Little Fears feita por Haroudo Xavier Filho, e publicada no antigo portal em 1 de junho de 2003 (1.216 leituras). Confiram a seguir.

 


 

Little Fears

RPG de horror, Little Fears coloca os jogadores no papel de crianças de até 12 anos combatendo bichos-papões. A premissa parece idiota, até o RPG ser analisado de perto e se entender todo o horror no qual ele se baseia. Little Fears trata de medos reais e ficcionais, com um tratamento cuidadoso para não ofender ao jogador e mestre comum, mas ainda assim o horror ao qual ele almeja é absoluto.

“Acording to the Federal Bureau of Investigation, over 2,000 children are reported missing every day. In the year 2000 alone, there were 685,617 cases involving missing children entered into the FBI´s databases. The two major categories under wich they are filed are Involuntary (defined as “missing under circumstances indicating that the disappearance was not voluntary;i.e.: abduction or kidnapping”) and Endangered (defined as “missing and in the company of another person under circumstances indicating that his/her phisical safety is in danger.”). It is estimated that every year over 28.000 children are taken involuntary from the safety of the ones they love; over 108.000 children are listed as endangered.” Jason L Blair, Little Fears.


Sara havia brincado o dia todo. Lucy, sua boneca preferida, com seus cabelos coloridos, que poderiam fazê-la passar por qualquer adolescente punk, entre mexas de azul e rosa, olhava com vazio desinteresse para a porta do armário, deixada entreaberta por Paula, a mãe de Sara.

Sara não estava cansada. Crianças de 7 anos devem ser movidas a fusão nuclear. Elas não cansam, até que queiram, e muitos teorizam que uma criança, se não tivesse incutido nela o desejo de descansar, poderia mesmo chegar a um estado crítico e explodir toda sua vizinhança. Pelo menos é o que Sil vive dizendo.

Mas vamos falar de Sara. Que não conseguia dormir aquela noite. Não que Sara tivesse medo do escuro. Corajosa, ela mesma apagou pela primeira vez a luz de seu quarto aos 5 anos. No entanto, essa noite ela não conseguia dormir. Ela o pressentiu espreitando o quarto mesmo antes que eu me desse conta. Eu também o aguardava, fazia mesmo dias, e claro, tremia como nunca, apesar de estar com meu chaveiro do Homem-Aranha.”

Background

Existem crianças e existem coisas além da escuridão de seus guarda-roupas, armários ou da sombra sob suas camas. Adultos não as podem ver, ouvir, tocar, mas para as crianças, os bichos-papões são um perigo bem real, com dentes, tentáculos, garras, que podem verdadeiramente dilacerá-las.

Little Fears é um RPG ambientado no nosso universo, no qual se joga com crianças de 6 a 12 anos. No universo de Little Fears, o inferno, ou Closetland, se encontra logo além da porta do closet (aqui no Brasil, um guarda-roupa é um conceito suficientemente similar). Dele vem hordas, milhares de bichos-papões todas as noites, para criar medo nas crianças, medo que alimenta o reino de Closetland. Algumas vezes eles carregam as próprias crianças para esse inferno ou destroem lentamente suas almas.

Blair foi particularmente engenhoso em um aspecto de Little Fears que faz o jogo realmente funcionar: após os 13 anos, nenhuma criança/jovem pode enxergar os monstros de Closetland, e começam a racionalizar os efeitos que as criaturas desses reinos tem sobre as pessoas. Sendo assim, as crianças dependem exclusivamente de si e de amigos da mesma idade.

O tema do jogo vem carregado de uma dupla dose de horror. Afinal, não bastam os monstros de Closetland (e tenha em mente que os “bicho-papões” podem ser desde bolas com tentáculos até lobisomens e vampiros, e toda uma gama absurda de horrores), horrores bem reais podem (e dependendo do mestre, até DEVEM) ser adicionados a campanha, sendo desde pais violentos e bêbados, até molestadores de crianças, uma ferramenta a mais que pode ser usada pelos mestres. O livro, no entanto, é ciente das implicações desse elemento e contei pelo menos quatro ou cinco avisos sobre como “isso é apenas um jogo e se você não se sentir à vontade com esses elementos, não inclua em sua crônica”.

Era ele mesmo. Chunurab, o mesmo que levou Charles e que espancou Débora. Meu chaveiro do Homem-Aranha esquenta na minha mão, mas ele não me vê. Ufa!

Sara se agarra a Lucy. Eu seguro com força o Monster Smasher que era de Charles e espero. Chunurab vai saindo devagar do guarda-roupa. Ele fede a peido-de-ovo, é horrível! Mas eu trouxe um pegador-de-roupa justamente pra isso. Eu estou preparado.

Mas não Sara, que começa a chorar baixinho, e dá um gritinho quando o bicho-papão arreganha os lábios, mostrando seus dentes e boca, no qual passeiam lacraias e baratas. Eu mordo minha língua para não gritar. Ok, não estou tão preparado assim. Pôxa, Sil, cadê você?”

O Jogador

O livro reforça algo que é fundamental na criação do personagem: é muito difícil de interpretar uma criança. Sendo assim, não apenas há uma série de dicas que ajudam o jogador como a própria linguagem e o abuso de letras em caixa baixa quando deviam ser maiúsculas.

Em Little Fears, a criação de personagem é principalmente conceitual, o que eu particularmente acho bem positivo. Nesse caso, diferente de outros RPGs (Vampire, Shadowrun, etc) é muito importante pensar na vida da sua personagem e responder com cuidado e de forma extensa o questionário que é apresentado inclusive na própria ficha (no verso dela).

Em seguida, o jogador distribui 6 Playaround Points entre seus atributos, que já começam com nível 2 e podem chegar até nível 5. Smarts (inteligência, conhecimento), Muscle (força física e resistência), Hands (destreza manual e combate corpo-a-corpo), Feet (velocidade e agilidade) e Spirit (Força de Vontade, percepção e mesmo uma maior ligação com sua alma). Os playaround points podem ser adquiridos também ao se reduzir um dos atributos (mínimo de 1).

Além desses atributos, a personagem também tem Virtudes (virtues) e Qualidades (qualities). Os playaround points não podem ser gastos em Virtudes (Soul, Fear e Innocence), mas em qualidade Positivas.

Virtudes são pré-definidas. A personagem começa com 10 em Soul (alma), 0 em Fear (Medo), e sua Innocence (Inocência) é determinada pela sua idade. 8 para crianças de 6 anos, e apenas 2 para crianças com 12 anos. Soul é um atributo secundário, similar ao estado físico (que é definido pelo número final de pontos em “muscle” x 5 e quebrado em cinco diferentes estados de “bem estar/mal estar”). Em ambos os casos, eles servem para definir o quão bem está a criança, seja fisicamente ou espiritualmente. Fear mede o quanto permanente sob a influência de Closetland está à personagem. Innocence, define o quão tola e fantasiosa é a criança, assim como a facilidade com que os adultos – seres divinos – terão consciência dela como algo a ser protegido.

As qualidades podem ser compradas em uma extensa lista, ou mesmo criadas pelos jogadores sob o escrutínio do mestre de jogo. Qualidades negativas podem gerar playaround points que podem ser usados exclusivamente para comprar qualities positivos. A lista de qualidades inclui coisas como “I have a HONEST FACE”, ou “I´m FORTUNATE” ou ainda o “I´m a BOOKWORM”, dando bônus em situações em que ele tenha de parecer honesto, dando a ele um histórico de riqueza na família ou dando bônus no momento em que um conhecimento que se conseguiria em livros viria a calhar, respectivamente.


“Chunurab vem cantando baixinho uma música… Acho que é Babe I Got You Bad. Minha irmã tem um disco desse cara feio, que parece meio caveira meio vampiro. Nick Cave acho. E vem de vagar e sorrindo mais, enquanto se aproxima de Sara. Meu anjo da guarda, Sil, cadê você?

-Iáááááá! Grito e ataco Chunurab com o Monster Smasher, que agora parece sair coberto de chamas! Sara grita. Não sei se um grito preso antes, ou assustada comigo. Não importa. Bato uma, duas vezes em Churunab. Ele arrota alho no meu rosto e me deixa tonto por um momento, e quase toma o Monster Smasher de minhas mãos…

Mas aí surge Sil! Ela brilha forte no quarto de Sara e por um momento não há mais sombras. Churunab esbulha os olhos e corre rápido de volta para o Closet. Eu estou ensopado de suor e mal consigo agradecer a Sil, que pisca pra mim e vai embora. Agora eu tenho de conversar com Sara…”

Mestre de Jogo

Little Fears dá um suporte interessante para mestres, mas de uma forma a torná-lo, antes de tudo. um antagonista, o que não é de todo positivo. De maneira geral, o que é apresentado especificamente para mestres é uma seção sobre como explorar as fraquezas das crianças, especialmente usando os questionários que os jogadores respondem e uma seção sobre os monstros de Closetland, no qual fala do Demagogo e os vários Aspectos ou Sete Reis (cada um representando um pecado capital), e outros monstros menores.

No livro também vem uma seção sobre o processo que o autor teve de percorrer para criar o livro, desde uma pequena aventura que fez com amigos. Algumas aventuras, ou melhor, esqueletos de aventuras são apresentados, mas são fechadas demais, já que apresentam destinos pré-definidos para os poucos NPCs descritos.

O maior problema para o mestre é fazer o jogo funcionar de forma balanceada. Não há muitas regras para monstros, apenas uma idéia de como tratá-los e, basicamente, tudo depende de testes simples (quiz). O que torna um pouco confuso quando você vê monstros com atributos, afinal, como devemos tratá-los nesse caso? O fato deles não tornarem possível a destruição dos Seven Kings, Demagogo ou Abranxis, torna o jogo limitado a campanhas de horror sem possibilidades épicas, que poderiam ter sido idealizadas sem essa barreira.

Eu abracei Sara e expliquei pra ela o que aconteceu com Charles. Só de ouvir a história ela chorou mais ainda, mas como previra Sil, ela se mostrou corajosa, e concordou em ir comigo.

Vanessa me ligou no dia seguinte. Eu falei baixinho com ela enquanto mamãe me olhava esquisito (será que ela percebeu que eu não dormi a noite inteira em casa?). Vanessa ficou de ir com a gente, e na verdade só ela sabe como entrar no closet de Charles, ou pelo menos é o que ela diz.

Durante o dia eu me preparei. Sem mamãe ou vovó perceberem, coloquei na minha mochila dos X-Men dois pacotes de biscoitos e fiz alguns sanduíches de queijo e presunto. Peguei também a lanterna de papai e algumas pilhas. Pensei em pegar uma faca na cozinha, mas o Monster Smasher me pareceu tão melhor… Só precisava de pilhas pequenas para ele, que comprei com o seu João e deixei na conta de mamãe. Agora era só esperar a noite cair, me encontrar com Vanessa, pegar Sara, e irmos para o closet na casa de Charles, de onde partiríamos para salvá-lo…”

Sistema

O sistema de Little Fears nada tem de assustador. Ele é dividido em “quiz” e “test”. Um quiz é um teste que não é feito contra outra personagem e o jogador rola 1D6 para tentar tirar um valor abaixo do atributo envolvido no teste. Se ele tiver uma qualidade positiva que se aplique, ele lança um dado extra por qualidade e mantém o resultado menor. Se ele tiver uma qualidade negativa, ele lança um dado extra e mantém o resultado maior. Os “test” são sempre contra o atributo do adversário e são simultâneos: o adversário, se realizar uma ação, lança contra um atributo da personagem. A idéia aqui é que o número seja superior ao atributo do adversário envolvido. Novamente qualidades positivas e negativas entram em jogo, mantendo o maior resultado (no caso das positivas) ou o menor (no caso das negativas).

O sistema é simples e seu único ponto negativo é a confusão quanto aos monstros. Nesse caso, o livro indica que o jogador jogue apenas “Quiz”, mas alguns monstros têm também alguns atributos (mas só alguns), o que torna essa regra confusa.

O sistema de magia é interessante, no qual a personagem em teoria, pode fazer o que quiser contanto que seja aplicado a crianças. Ela pode, por exemplo, ficar invisível se cobrindo com seu “cobertor mágico de estrelas”, ou fazer com que seu ursinho fique com 2 metros de altura e ataque o monstro do armário, fazendo apenas um “quiz” de espírito para isso. O problema é que coisas como “se eu deixar meu sapato emborcado, mamãe morre”, se tornam também reais. Outro ponto negativo para o jogador é que se o “quiz” falha mesmo que seja uma única vez e não há uma boa explicação que uma criança poderia criar para isso, não apenas o objeto ou ritual permanentemente deixa de funcionar, como a criança perde um ponto de Innocence.

Recuperar Soul e diminuir Fear são possíveis, mas desbalanceadas, já que dependem muito da qualidade “Eu tenho FÉ” e quase que exclusivamente dela. Não é possível recuperar Innocence. De uma forma geral as Virtues tornam o jogo mais interessante e próximo de um Call of Cthulhu que é jogado com crianças, mas seu sistema de loucura e como recuperar suas virtues deixam um pouco a desejar. Ele é vago, e nada elegante como o sistema de Unknown Armies.

Nós estávamos juntos na entrada da casa de Charles. O pai dele ainda não tinha chegado e Charles tinha me falado de um jeito de entrar no quarto dele sem a gente ser percebido. A janela dele tinha um defeito, que se empurrada pra cima, destravava.

Vanessa veio também equipada (trouxe umas 6 Barbies, que ela me confessou, são mestres em vários estilos de artes-marciais) e trazendo muita comida. Não sabemos como é o lugar além do armário, mas com certeza podem ser dias antes de acharmos Charles.

Mas quando íamos dar a volta na casa e entrar pela Janela, Sara de repente ficou parado e branca como um fantasma! Eu liguei a lanterna assustado esperando o pior e meu coração também gelou. Eram nossos pais.

“- Afinal, o que vocês planejavam fazer a essa hora na casa do nosso vizinho, Bruno? – perguntou meu pai com seus óculos de aro de tartaruga. Acho que vamos ter de salvar Charles outro dia…”

Conclusão

Little Fears é um RPG excelente mas que precisa de um polimento. Filmes como Monsters S.A. e Cidade das Crianças Perdidas, me vêm a mente como ótimas referências, se adicionados a eles a dose certa de horror. Livros como IT parecem também interessantes para se chegar ao clima adequado.

O livro, apesar de pertencer a uma editora pequena, tem uma boa apresentação gráfica, inclusive com o uso de fotos que dão um clima mais interessante a livros de horror urbano do que os tão batidos desenhos que muitas vezes não saem muito do típico feijão com arroz que vemos nos livros de fantasia e no qual nada ajuda a um gênero que precisa de um suporte gráfico mais forte para se criar o clima adequado. A capa é simplesmente maravilhosa.

O grande problema de Litle Fears é a forma vaga como são apresentadas suas regras e o desbalanceamento que se dá quando a qualidade “eu tenho FÉ” se torna tão essencial para a longevidade da personagem. Eu fracamente espero por uma segunda edição que corrija esses erros.

Nome: Little Fears
Autor: Jason L Blair
Editora: Key20 Publishing
Edição Analisada: 1st Ed.
Número de Páginas: 146
ISBN: 0-9708689-0-1
Preço de capa: $20
Dados utilizados: D6

Por Haroudo Xavier
Equipe REDE RPG

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