Eu tive muitas dificuldades quando comecei a narrar Mutant: Ano Zero, quase todas ligadas a proposta indie do jogo. Não é fácil sequer definir o que é indie, o termo é difuso, mas gosto muito do artigo escrito por Brega Presley. Já li faz um bom tempo e de lá para cá encontrei poucos autores que vão tão direto ao ponto de maneira tão leve e didática. Eu sugiro a leitura do artigo acima antes de prosseguirmos, mas aos incautos que se deixarem abater pela preguiça da leitura, o autor aponta alguns critérios para pensarmos o que seria esse tal de indie, termo que podemos definir como alternativo, ou seja, se RPG já é um passatempo alternativo, os indies radicalizam a proposta. Vamos pensando as ideias de Brega Presley e tentando encontrar o lugar de Mutant dentro desse contexto.
A primeira abordagem é quanto ao formato. Um RPG indie tende a ter um número bem menor de páginas do que um RPG old school (guarde esse conceito porque vamos sempre opor o indie ao Old School ou RPG de velha guarda, tradicional, do qual sempre vou citar nosso velho e bom D&D como melhor exemplo). Um indie além de poucas páginas investe muito pouco também em tabelas, ilustrações e afins, bem como não faz exigência de muitos suplementos para ser jogado.
Calma, respira, um passo de cada vez…
De fato, Mutant tem suplementos, alguns chegando agora ao Brasil, mas você joga legal sem eles, não é uma exigência, você não terá que comprar um livro dos jogadores, um livro do mestre, um livro de monstros e um livro de ambientação para curtir 100% do jogo, dá para fazer tudo com o livro base (que nem tem tantas páginas). Ponto para o lado indie da Força.Tabelas você tem muitas, tabela para ferimento, para artefatos (itens mais poderosos que contribuem na evolução da arca) e sucatas (itens que garantem a diversão, mas são mais úteis nas mãos de um engenhoqueiro) e por aí vai. Mas, ao meu ver, o jogo te dá opções para lançar mãos de todas essas tabelas, inclusive propondo uma pegada de transformar tudo em cartas colocadas sobre a mesa e que são utilizadas aos poucos durante a narrativa (eu mesmo construí as tais cartas por minha conta e não é que ficou até bonitinho além de útil?). Então este ponto contaria para o indie, mas como as tabelas existem aos montes aqui talvez esteja um lado mais Old School de Mutant. Além disso, transformar todas essas tabelinhas em cartas vai nos jogar direto em um outro quesito, os gadgets.
Pense em todas aquelas traquitanas que você é obrigado a ter sobre a mesa para aproveitar o jogo, grid, miniaturas, dentre outros, isso são gadgets. Definitivamente, ponto para o indie, você até precisa ter um bom mapa da zona (região externa da arca, do “lar” dos mutantes, ermo onde os jogadores vão explorar o mundo devastado e passar os maiores sufocos), mas é só. No mais, as ferramentas narrativas e a mecânica permitem um jogo “limpo”. Não que gadgets sejam péssimos, nada disso, são divertidos, mas cansam se forem uma obrigação constante. Vamos ao próximo passo, o sistema.
Nesse quesito, confesso que tenho bastante dificuldade em pensar Mutant como indie, tanto quanto tenho muitas dificuldades ainda em narrar como tal (eu venho da escola da D&D, narrando Old School por mais de vinte anos, então essa dificuldade é bastante esperada), isso porque o próprio Brega Presley é muito feliz ao deixar claro que não basta que um jogo diga “você pode fazer do seu jeito”, mas precisa dar ferramentas para que realmente o sistema seja mais aberto e para que leve a sério a “regra de ouro”, permitindo ao narrador quebrar as regras sempre que necessário para garantir a diversão.
Em sistema entra também a questão dos dados utilizados, quase sempre dados de seis faces nos jogos indie, caso de Mutant, que utiliza kits diferenciados de dados para perícias, atributos e bônus fornecidos pelos equipamentos. No entanto, mesmo utilizando D6 há ainda muito pouco no sistema que relacione o uso dos dados e a liberdade interpretativa.
É desse modo que Mutant fica bem nesse espaço entre insistir o tempo todo para ser um sistema aberto – e as mutações são o forte nesse sentido (não espere nada fechadinho com milhões de cálculos e afins, o jogo coloca tudo na conta da interpretação e diversão) – e não dar tantas ferramentas para tal, de modo que poderia investir um pouco nesse ponto, bem como no próximo: a horizontalidade da narrativa.
Faço um grande esforço (e falho muitas vezes) em garantir aos jogadores a horizontalidade da narrativa, principalmente quando o batedor vai utilizar suas habilidades para identificar inimigos e artefatos no cenário, mas também na descrição do ambiente e na forma como usam suas mutações. Mas quando você pensa a ousadia de jogos como Blood & Honor, onde o resultado dos dados não define o que acontece, mas quem narra aquela cena entre Mestre de Jogo ou o próprio jogador, fica de novo uma sensação de que Mutant poderia ousar um pouco mais. Então assim como na questão do sistema, entre old school e indie, vou apostar de novo na coluna do meio.
Por último, vem a ambientação. Em jogos indie há uma tendência ao incomum na ambientação, ou seja, uma abordagem diferenciada. Por exemplo, quanto aos personagens no sentido do herói tradicional, forte e vigoroso, invencível e belo. Os mutantes em Ano Zero são criaturas muito feias (pelo menos aos olhos do nosso conceito de belo) e extremamente frágeis, que estão morrendo aos poucos, contraditoriamente destruídos pelas próprias mutações que garantem a eles sua melhor chance de sobrevierem em um mundo tão hostil. No mundo de Mutant, inanição é uma possibilidade muito real, não há água ou comida suficiente, e quando você tem algo valioso, você certamente será o alvo da vez para aqueles que nada possuem. É um jogo de profundos contrastes e isso é muito indie e é fantástico: “Mutant: Ano Zero não é só sobre dor e sofrimento. A escuridão precisa ser contrastada com a esperança de nova vida, uma vida melhor. Ameace os sonhos dos PJs, mas não os destrua. Mesmo na noite escura da Zona, sempre tem uma luzinha no horizonte.”
Por fim, entre um RPG alternativo e um RPG velha guarda, Mutant é um perfeito ponto equilíbrio, diversão garantida, além do fato de que nada disso é regra absoluta ou norma inviolável. No jogo e na vida, o bom é a contradição, a mistura de cores e estilos, ferramentas e conceitos existem para que possamos deixar as coisas mais organizadas, cada vez melhores, mas o que importa depois de tudo isso é a diversão. Então eis uma boa dica para quem deseja trilhar os caminhos do old school ao indie sem grandes sustos.
É isso, nos encontraremos em breve, em algum lugar desse ermo sem fim. Que a podridão não nos destrua até lá!
Por A.F. Silva
Equipe REDERPG
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