Ideias, detalhes e temperos para as suas aventuras a partir do folclore africano

1. TEMAS CENTRAIS

As pessoas são o foco, não os deuses, animais ou a terra. Os mitos contam mais sobre como o primeiro ser humano viveu do que sobre deuses brigando ou monstros antigos. O “Bem” é aquilo que garante o bem-estar e felicidade dos outros, contribuindo para as boas relações entre as pessoas e a boa fortuna da comunidade. O “Mal” é o que ameaça a harmonia social, o comportamento sociopata e as coisas inumanas.

A aldeia (cidade, reino, etc) é segura porque é um espaço humano e comunitário. A “Selva” lá fora não é algo bom: são regiões desabitadas, inexploradas e perigosas, abrigando coisas inumanas e selvagens como cobras, doenças, loucura, caos e bruxos. É uma ideia parecida com os “Pontos de Luz” de D&D. A morte de um chefe ou rei pode ser catastrófica não porque haverá intriga, mas porque uma comunidade sem líder é como um animal ferido que a Selva pode sentir e predar. Em algumas línguas africanas, a palavra “pesadelo” significa algo como “a Selva está vindo”. Esse conceito de “Selva” não tem a ver com o bioma: desertos, savanas, matagais e oceanos podem fazer parte da “Selva”.

1A. TOTEMISMO

A maioria dos clãs africanos tinha um totem animal. Isto era porque: este último era o seu ancestral; salvou o ancestral; ou o ancestral salvou o animal. Isto criava uma afinidade com a criatura.

As pessoas teriam uma segunda alma, a “Alma Selvagem”. Era quase sempre um animal, maior e mais forte do que o bicho verdadeiro, e costumava ter algum traço marcante como albinismo. Podia-se projetar a sua Alma Selvagem no totem do clã para criar algum vínculo ou conversar com o totem. Matar esta “Alma Selvagem” também mata a pessoa vinculada à mesma. Mas se o indivíduo for morto fisicamente enquanto projeta a sua Alma Selvagem, esta entra em frenesi e se torna um espírito maligno. Bruxos são capazes de roubar, escravizar e até vender as Almas Selvagens de outras pessoas.

Existiram cultos de assassinos baseados em animais selvagens, predadores como leopardos, cobras ou crocodilos. Esses são diferentes do guerreiro ou caçador e seus respectivos totens porque agem contra pessoas em vez de a favor delas. Traidores da humanidade que servem à natureza, assumindo o comportamento (matando e devorando pessoas) ou até a forma de animais (licantropia). Também podem ser capangas de um bruxo, conseguindo partes de pessoas que o mesmo usa para atormentar e dominar a comunidade.

1B. CHEFES E REIS SAGRADOS

Isto era uma ideia comum, embora cada grupo tivesse rituais e noções diferentes do que torna um líder sagrado. Por exemplo, pode ser que ele não possa tocar o chão. Se o fizer vai descarregar o seu poder no solo, impedindo que plantas cresçam. Ou talvez a saúde do rei e da terra sejam um só. Ele deve ser robusto e sem marcas, pois quaisquer cicatriz e doença afeta os seus domínios. Se isto acontecer, deve-se matá-lo para salvar a região e então coroar outro rei.

2. PJs e PdMs

Lembra como a Selva é perigosa? Isso torna o caçador um grande herói, disposto a buscar o que os outros precisam, seja comida ou ajuda em outra aldeia. Heróis africanos costumam ter poderes sobrenaturais e terem sido influenciados pela “Selva” de alguma forma. Uma lenda ashanti conta de uma mulher em trabalho de parto encontrada por um espírito selvagem. O recém-nascido a defende, transformando-se em um gigante de fogo que destrói o espírito. É comum que heróis sejam bebês ou crianças precoces, nascendo com uma inteligência e até um corpo adulto. A história do seu personagem pode até incluir conversas que ele teve com a mãe antes de nascer! Um herói assim costuma ser uma criança tinhosa até mudar. Geralmente é porque o seu pai perturba a comunidade ou é morto pela Selva. A partir daí elas crescem, enfrentando monstros, cumprindo jornadas e passando por testes de humanidade. Algumas têm um destino a cumprir, outras demonstram a superioridade dos humanos sobre a Selva.

N’golo (ou Engolo) é a arte marcial africana da qual a capoeira talvez seja derivada. São bem parecidas. Os seus praticantes dizem que ela foi baseada em como zebras lutam umas com as outras. Em vez de aprender o estilo do louva-deus ou do macaco, que tal a zebra? Imagine uma tribo com esse animal como totem, usando uma mistura de dança e luta para celebrar os ancestrais ao redor da fogueira.

Escarificação é quando cria-se cicatrizes em certos padrões e desenhos, semelhante à tatuagem. Tinha muitos propósitos: para embelezar; demonstrar o(s) grupo(s) a que alguém pertence; e status social. Outro exemplo é que se alguém criar um padrão de escamas nos braços, pode ser que o seu totem ou Alma Selvagem seja um lagarto.

Pensando em um swashbuckler? Ele pode usar um shotel e um broquel feito de couro de rinoceronte que serve de chapéu quando não está lutando. Vá descobrir os segredos do Oceano Índico, trocando ouro e marfim por aço damasco e pimentas.

Shotel é uma espada feita para ferir oponentes com escudo,
com a lâmina curva “dando a volta”.

Em relação a Pdms…

Xamãs também são juízes. Uma tradição judicial oral é mais fácil quando você pode invocar os ancestrais para perguntá-los sobre precedentes, a vítima pode ser chamada do além para testemunhar e talvez até os espíritos que existem no local do crime.

Interessado em um harém de amazonas virgens? “Dahomey é conhecida como uma Esparta Negra… O som dizia a cada homem para sair do caminho delas, ficar longe e olhar em outra direção… Escalar arbustos espinhosos servia para estimular uma aceitação estoica da dor… Ela então tirou o sangue da sua arma e o bebeu.”

Indo de um a dez, a riqueza de Mansa Musa está em onze: “…Passou pela cidade durante a sua peregrinação a Meca com milhares de escravos e soldados, esposas e oficiais. Uma centena de camelos carregavam cem libras de ouro cada um. Musa fez muitos atos de caridade… Tanto ouro gasto nos mercados de Cairo que prejudicou a economia até o século seguinte… Na Alta Idade Média, a África ocidental produzia quase dois terços do ouro no mundo! Mali também supria outras mercadorias – marfim, penas-de-avestruz, noz-de-cola, peles e escravos. Não é de se estranhar que se falava do Reino de Mali e das suas riquezas!”

Até o clichê da tribo canibal é válido: “Sultão Mansa Sulayman foi visitado por um grupo de… Canibais negros, incluindo um de seus príncipes. Eles tem uma tradição de usar grandes pendentes nas orelhas… Vestem-se em mantos de seda, e na sua terra há uma mina de ouro. O sultão os recebeu com honra, e lhes deu uma serva como um presente de hospitalidade. Eles a mataram e comeram, e tendo manchado os seus rostos e mãos com o seu sangue foram ao sultão e o agradeceram. Eu fui informado de que esta é uma tradição sempre que visitam esta corte. Alguém me contou que eles dizem que as melhores partes da carne de uma mulher são a palma da mão e o seio.”

Druidas das savanas gostam de queimadas. Eles entendem que elas são fundamentais no ciclo de vida de seus biomas. E assim como é feito na vida real moderna, eles criam pequenas queimadas controladas para evitar uma grande acidental. Eles podem ou não se importar se os nativos e/ou nômades sobrevivem a isso. Por sua vez, estes últimos podem ou não entender porque, quando o druida faz isso é “certo”, mas quando eles queimam o mato para criar pastagens ou fazendas é “errado”.

Outra inspiração para personagens é como os chefes de certas tribos tinham guarda-costas leais até a morte. Se alguém assassinasse o chefe, eles tinham um ano e um dia para vingá-lo e então cometerem suicídio. E se todos os jogadores fossem guarda-costas com esse objetivo?

E falando de personagens jogadores, tem algumas pessoas interessantes na história da África.

Nzinga Mbande perdeu o seu reino, criou um novo no sul e conquistou a infame tribo canibal chamada Jaga. Ela ofereceu santuário para escravos fugitivos e soldados desertores, então lutou contra os portugueses durante trinta e cinco anos. Ah, também tinha um harém de sessenta homens vestidos em roupas de mulher. Isso tudo me parece coisa de jogador.

Muitos aventureiros simpatizariam com Ibn Battuta: “Viajar – lhe concede um lar em mil lugares estranhos, e então te faz um estranho na sua própria terra… Os malabaristas do Khan estavam presentes no banquete, o chefe deles foi ordenado a mostrar algumas de suas maravilhas… Com tanta morte ao seu redor, talvez ele tenha sentido necessidade de voltar para casa. Tinha quarenta e cinco anos de idade e tinha ficado longe durante vinte e quatro anos.”

3. LUGARES

O já mencionado reino de Mali dá a impressão de ter tanto ouro que nem tem porquê ser ladino: “Há completa segurança em seu país. Viajantes ou nativos não precisam temer nada de ladrões ou homens de violência…” E fugindo do estereótipo islâmico da burca: “As servas, escravas e donzelas andam nuas na frente de todos, sem uma costura de tecido sequer sobre elas. Mulheres vão à presença do sultão nuas e sem quaisquer tecidos, e as filhas dele também andam nuas. E há o costume de colocar terra e cinzas em suas cabeças, como uma marca de respeito, e as cerimônias grotescas que descrevemos quando os poetas recitam os seus versos. Outra prática repreensível entre muitos deles é comer carniça, cães e burros.”

Longe dali, podemos encontrar fortalezas no topo de mesetas. Os defensores incluem arqueiros deitados no chão, usando tanto braços quanto pernas para disparar flechas grandes como azagaias de seus arcos longos feitos para caçar elefantes. Esta guarnição busca impedir que alguém sequestre ou socorra o irmão exilado do rei.

4. ANÕES AFRICANOS

Não, não estou falando dos pigmeus. Mmoatia são anões com qualidades feéricas no folclore da África Ocidental: gostam de cavernas e montanhas em Mali, mas preferem florestas em Ghana. Os anões negros raptam pessoas para ensinar-lhes magia. Mestre: “E qual a razão do seu personagem ser um mago?” Você: “Boa pergunta. Ele quer achar os anões para descobrir porque foi escolhido contra a sua vontade.”

Já os anões vermelhos e brancos são uns desgraçados que adoram roubar e aterrorizar pessoas. O seu líder é o deus selvagem maligno Sasanbosam. Você pode conseguir poder se seguir as regras muito específicas que eles estabelecem. Se não seguir, vira a próxima refeição.

Falando em anões, a África tem umas ideias barbudas, sabe? Como clavas de arremesso.

Ou, em vez de erguer templos, talhá-lo direto da rocha sob os pés.

Ainda por cima, ferreiros tinham um status místico como magos, pois sabiam como transformar pedra em pás e espadas e escondiam as suas técnicas. Uma delas era usar argila de cupinzeiros para criar fornalhas, criando aço-carbono muito antes do resto do mundo. Em um mundo de fantasia africana, pode-se considerar que os usuários arcanos mais valorizados são artífices. Ou talvez alguns anões devessem ter um tom de pele mais escuro.

5. EQUIPAMENTO

Couraças de escamas de pangolim eram raras mas reais. Manuais de guerra chineses diziam que elas eram muito resistentes e reservadas para oficiais de alto escalão. Aproveito para negar a minha culpa sobre a uma hora a menos da sessão porque ficaram discutindo se armadura de pangolim conta como de couro ou de escamas.

5A. MÁSCARAS

Difícil ver imagens da África sem máscaras, então vamos ver maneiras que elas poderiam importar para fantasia.

A máscara do xamã é um símbolo de autoridade assim como a toga preta do juiz. Outras máscaras servem para ele deixar de ser si mesmo e se tornar o hospedeiro do espírito invocado para testemunho.

Máscaras tribais também podem ser o equivalente a varinhas arcanas e símbolos de pactos com o sinistro, natureza e o divino: formas de acessar e usar poderes maiores. O mago deixa de ser invisível à magia ambiente como o são pessoas comuns; enquanto o bruxo, bárbaro ou o clérigo tornam-se representantes ou extensões da entidade representada pela máscara, seja um espírito, totem, demônio ou divindade. É possível que um clérigo assim tenha poderes mesmo sem acreditar na divindade, pois está servindo à mesma como punição por um crime ou pecado. Já imaginou interpretar alguém condenado a ser um clérigo mascarado devido a um crime ou tabu que pode ter sido cometido por um parente?

5B. FETICHES

Objetos encantados africanos são chamados “fetiches”, designação que tem origem na palavra “feitiço”, usada pelos antigos portugueses quando exploraram a África.

Máscaras e outros fetiches podem funcionar como lares para espíritos. Os benefícios, poderes e habilidades do item ao herói ou comunidade vão depender do tipo de espírito que se abrigou ali. Isto pode variar desde o espírito de um antílope concedendo grande velocidade, até a alma de um xamã antigo que torna os aldeões mais sábios. Fazer esses objetos de uma maneira ou outra pode determinar o tipo de espírito que se hospeda ali. Em um cenário de fantasia africana, a origem de raças como elfos ou anões pode ter sido através de um espírito bem cuidado influenciando uma aldeia ou região durante muito tempo. Não é por nada que os elfos protegem aquele baobá gigante em que as ranhuras do tronco formam um rosto, ou que os anões protegem a sua montanha com tanto afinco. Se tais fetiches fossem danificados, estas raças poderiam deixar de ser si mesmas!

Se o conjurador ou lutador estão empunhado uma galhada de antílope como varinha ou uma lança de madeira sem lâmina metálica, não quer dizer que sejam druidas ou bárbaros. Os seus itens foram feitos com materiais dessa Natureza e, portanto, mágicos, tornando-se fetiches.

O ferreiro e o xamã podem criar os fetiches, sinônimo de itens mágicos: crânios de hiena que te permitem comer mortos-vivos sem ficar doente; bolsas cheias de sementes de baobá curativas; tambores que acalmam até hipopótamos; máscaras que enganam maldições ou magias e as fazem acertar o alvo errado; alijavas feitas de pequenos crocodilos empalhados cujas flechas mordem quem atingem.

6. BESTIÁRIO

O Grootslang seria uma criatura tão antiga quanto o mundo. Os deuses cometeram um engano quando fizeram o mundo, dando a certas criaturas muita força, inteligência e astúcia. Ao perceberem isto, dividiram-no nas primeiras cobras e nos primeiros elefantes. Mas uma das criaturas originais escapou e teve filhotes que assolam o mundo até hoje. O Grootslang vive em uma caverna chamada o “Fosso sem Fundo” que estaria ligada ao mar. Ele atrai elefantes até a sua toca para devorá-los. O monstro tem um grande tesouro de diamantes, mas cobiça gemas preciosas de tal forma que se pode escapar dele apenas oferecendo algumas. A sua forma depende de quem conta, mas é sempre um misto de serpente e elefante.

África tem muitos monstros que engolem pessoas, como o Ugungqu-kubantwana, basicamente uma ilha viva caminhando na terra. Aqui tem uma lista de monstros africanos.

Gosta de vampiros? Os vampiros africanos têm dentes metálicos e ganchos no lugar de pés.

Até mesmo um animal mundano como a hiena pode resultar em um encontro memorável. Imagine o grupo caminhando quando um deles avista um elefante caído. A perspectiva de marfins que valem o seu peso em ouro os aproxima do corpo. Eles estão discutindo quem vai se aproximar do cadáver fétido quando um par de hienas sai do rombo na barriga. As duas encaram os jogadores por alguns segundos enquanto trituram pedaços de costela com os dentes marrons, como se perguntassem “vocês vão enfrentar um animal com uma mandíbula cheia de bactérias que faz todo esse dano de concussão?” Se quiser, mude as hienas por gnolls ou licantropos. Mas mantenha a mordida.

Aliás, tenha medo do hipopótamo. É o animal que mais mata pessoas por ano em toda a África. Sim, mais do que elefantes, crocodilos e leões. Apesar de herbívoros, são muito agressivos e territoriais, correndo atrás de pessoas apenas porque chegaram perto demais. E ele corre mais rápido do que humanos. Este vídeo com cenas fortes demonstra isto.

Mas o maior perigo são os bruxos e bruxas, tão terríveis e poderosos quanto dragões e diabos na cultura europeia. As muitas lendas contam de poderes como: causar tempestades, epidemias e maldições; criar e controlar zumbis e monstros; que um bruxo morto se torna um espírito maligno; que bruxos podem ser identificados pelas pequenas bocas de dentes afiados em suas costas; podem se transformar ou cavalgar criaturas noturnas; são canibais; usam corujas, hienas e babuínos falantes como mensageiros; fazem que pessoas dormindo sofram pesadelos com demônios que matam de puro terror. Mas talvez a pior parte é que bruxos e bruxas vendem os seus serviços a qualquer um que possa pagar.

SOBRE O AUTOR

Bruno Kopte é membro da equipe REDERPG e espera que você fique tão interessado quanto ele pelo tema deste artigo. Junto com Felipe Salvador, desenvolve o cenário de fantasia Atma, encontrado aqui.

Primeiro adendo: Eu me foquei no folclore ao sul do deserto do Saara, justamente porque é menos conhecido. O Egito também é parte do continente africano, mas até na fantasia parece receber mais atenção do que o resto do continente combinado.

Segundo adendo: Muitas informações aqui carecem de fontes porque vieram diretamente de conversas com africanos pela internet, sendo perspectivas pessoais e talvez sem fontes que possam ser consultadas. E assim como o boitatá tem características diferentes dependendo da região, ideias e monstros apresentados aqui podem ter encarnações distintas. No final das contas, o que reuni neste artigo é genérico e superficial se comparado ao folclore de todo um continente.

Todas as imagens foram adquiridas no wikimedia commons.

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