“Também são usadas hoje em dia, assim como nas escolas, como nos torneios, duas Espadas ou Rapieiras, admitidas e aprovadas ambas por Príncipes, e por Professores desta Arte, como armas honradas e cavalheirescas, embora elas não sejam de uso nas guerras.”
– Mestre Giacomo di Grassi. Traduzido por mim do His True Arte of Defence (1594), por sua vez traduzido para o inglês do original em italiano, Ragione di adoprar sicuramente l’Arme (1570).
Todos nós estamos familiarizados com esgrima: dois caras vestidos de branco lutando com alfinetes gigantes nas Olimpíadas. “Esgrima” como a conhecemos atualmente é um esporte, mas houve um tempo em que esgrima era algo tão complexo e sistemático quanto as formas de luta exóticas da Ásia às quais costumamos associar o termo “arte marcial”. Todo tipo de luta foi parte disso: espadas de todos os tamanhos e formatos, martelos e bastões, corpo a corpo contra alguém coberto em placa, a pé contra cavaleiros e tantos outros contextos. E dentro destas artes marciais europeias existem golpes e estilos que parecem exclusivos da fantasia. Um destes é lutar com uma arma em cada mão.
De acordo com manuais de esgrima como os de Agrippa, di Grassi e Marozzo, muitas combinações eram usadas: espada e adaga, espada e manopla, adaga e capa etc. Algumas armas inclusive foram criadas especificamente para serem usadas em conjunto com uma espada. Por exemplo:
A adaga “quebra-espada” tem fendas em que o usuário busca prender a lâmina do adversário, impedindo de usá-la, desarmando-o e, com sorte ou habilidade, até quebrá-la. É um propósito semelhante às sai japonesas usadas por personagens como o Rafael das Tartarugas Ninjas. Mas basta ver a arma para perceber que tem esse propósito. Se quisermos pegar o oponente de surpresa, que tal…
Chega a ser traiçoeira. Parece uma adaga normal, mas basta apertar um botão para ativar um mecanismo movido com molas, subitamente exibindo duas extensões que podem trancar a arma inimiga. Imagine só, você acha que conseguiu passar sua espada logo abaixo da adaga de seu oponente, apenas para ouvir um clique e pensar: ué, não consigo mais mover a minha espada? E nesse momento de distração uma rapieira fica íntima do seu fígado.
Eu sei o que alguns de vocês estão pensando: já para por aí. Isso é um escudo, e eu não podia nem usá-lo para bater em alguém na terceira edição de D&D. Para isso eu respondo com algo escrito por di Grassi: “…para que cada homem entenda que o broquel e outras armas (que são ditas como armas apenas de proteção) também possam ser entendidas como armas de ataque, como eu declararei aqui como é apropriado.” Na realidade, o broquel é um pequeno escudo que você segura com a mão e de nenhuma outra forma.
Dessa forma, enquanto tecnicamente um escudo, ele é muito mais móvel, uma proteção ativa onde outros escudos são uma proteção passiva. O manuscrito I.33 mostra o broquel acompanhando e protegendo o braço da espada; no estilo bolonhês ensinado por di Grassi o broquel não espera para ser atingido pela arma inimiga, mas a encontra no meio, defletindo o futuro golpe antes que atinja o alvo. E por ser um escudo leve usado com a mão, é excelente para desferir golpes que são na prática socos.
Di Grassi recomenda que ele seja usado com o braço estendido, distante do corpo para que bloqueie o mínimo da visão do usuário e ao mesmo tempo, esconda o máximo de seu corpo do ponto de vista do oponente, como visto na imagem acima. Também recomenda broquéis com um espigão de ferro no centro, para apunhalar quando surgir a oportunidade. Que tal conferir com o seu mestre se ele aceita um ladino usando esta “arma”?
Ok, até é legal, mas você começou o artigo com um cara falando de duas espadas. E cadê elas?
Sim, existiram europeus que lutaram assim. Estes espadachins foram raros, porque, enquanto manusear uma espada requer uma certa quantidade de treinamento, duas espadas precisam três ou quatro vezes mais: alguém precisaria aprender com uma mão, depois treinar a outra até ser tão boa quanto a primeira, e finalmente aprender a usar ambas em conjunto para que uma espada não atrapalhe a outra.
O mestre di Grassi alerta sobre usar este estilo apenas em duelos e torneios, não em guerras, porque há a exigência de um alto grau de concentração individual que prejudica a coordenação em grupo que diferencia um exército de um bando de guerreiros. Parece-me que só um guerreiro fantástico seria capaz desta façanha de manejar dois raciocínios assim como duas espadas, seja um personagem jogador ou uma criatura de duas cabeças, como um ogre bicéfalo que é o general e o campeão do general ao mesmo tempo.
A outra precaução é de que só se deve enfrentar oponentes com pouca ou nenhuma armadura. Uma única espada usando as duas mãos traz o poder e precisão necessários para encontrar os vãos, juntas e pontos fracos de uma armadura, seja uma placa completa ou um jaquetão. Novamente, nada que impeça alguém que encara aranhas gigantes com um bocejo.
Tá, mas então qual é a vantagem?
Tudo o que a espada na mão direita faz, a da mão esquerda também pode, especialmente na questão do alcance maior que outras armas secundárias não tem. Ataque e defesa podem vir da mesma mão em momentos alternados, confundindo o oponente. Um espadachim já costuma ter dificuldade enfrentando um canhoto. Um oponente com duas espadas é como enfrentar tanto o canhoto como o destro ao mesmo tempo, mas você nunca tem certeza de qual deles vai desferir o verdadeiro golpe fatal.
Além disso, a extrema dificuldade em dominar o manejo de duas espadas garantiria um lugar de destaque em qualquer torneio em que participasse, mas ninguém aqui faria questão de chamar a atenção e impressionar o público local, não é? ;-)
Adendo: Caso não tenha ficado claro, este artigo se limita a práticas e técnicas europeias. Embora tenham existido equivalentes orientais, não as incluí porque não poderia exibir o mesmo grau de embasamento histórico e reconstrução prática atual.
Bibliografia
Coleção de tratados sobre combate e manuais de esgrima digitalizados:
http://www.umass.edu/renaissance/lord/
Autor do tratado de combate Opera Nova, presente na mesma página em inglês e italiano:
http://wiktenauer.com/wiki/Achille_Marozzo
Autor do tratado de combate Ragione di adoprar sicuramente l’Arme, presente na mesma página em inglês e italiano:
http://wiktenauer.com/wiki/Giacomo_di_Grassi
Aplicações práticas de espada-e-broquel e duas espadas segundo o tratado de Marozzo, por Phil Marshall e Oliver Barker:
http://www.schoolofthesword.com/Twos%20Company%20PartIII.pdf
http://www.schoolofthesword.com/Twos%20Company%20PartIV.pdf
Inclui informações sobre as adagas “tridente” e “quebra-espadas”:
http://myarmoury.com/feature_spot_combo.html
Páginas sobre o manuscrito I33, incluindo tradução para o inglês:
http://www.thearma.org/Manuals/i33/i33.htm
http://schwertfechten.ch/html/i33/i33en.html
Digitalização do tratado de combate de Camillo Agrippa:
https://archive.org/details/bub_gb_p8OnsLhUQBMC
Sobre o jaquetão e outras armaduras acolchoadas:
http://myarmoury.com/feature_spot_quilted.html
Organizações dedicadas ao estudo, prática e restauração das artes marciais europeias:
http://sword.school/
http://www.hemaalliance.com/
http://www.thearma.org/
Vídeos sobre luta com duas espadas:
Autor
Bruno Kopte é membro da equipe REDERPG, e acredita que realismo e fantasia épica não são mutuamente exclusivos. Junto com Felipe Salvador, desenvolve o cenário de fantasia Atma, encontrado aqui.