“Um homem constrói seu próprio destino. Cada onda que deixa sua marca sobre a praia demonstra isso.”
– Kitsune Diro
A terra tremia a cada onda de choque e as altas torres de Kyuden Gotei eram como mastros de uma galera. Abaixo deles, camponeses afobados lutavam para defender seus inestimáveis tesouros da fúria da terra e seus rogos e preces às Sete Fortunas elevavam-se até o sol. Então, com um terrível estrondo, um dos pilares da porta do castelo soltou-se, caindo ao chão e espatifando-se em mil pedaços ante a fúria do terremoto.
Tão rápido quanto veio, foi-se. O solo voltou a firmar-se e um chiado elevou-se das fendas abertas, ao escapar de um gás venenoso e vapores amargos. O Clã do Louva-a-Deus levantou-se, contou seus mortos e iniciou o árduo processo de reconstruir o que havia sido perdido. Incêndios ardiam nas aldeias à beira-mar e os pescadores lutavam no oceano turbulento, desesperados para retornarem ao lar. Nos campos próximos ao palácio, um menino estava parado diante de uma árvore tombada, observando a propagação das últimas ondas de choque pelos campos de arroz de seu pai. Tinha dez anos, era tão alto e delgado quanto qualquer adolescente e tinha uma expressão amarga em suas feições infantis. Descuidadamente, tirou a mecha de cabelo que caíra sobre seus olhos, jurando novamente que iria amarrá-lo para trás, como seu pai fazia. Olhou furiosamente a enorme árvore caída e voltou-se para continuar seu caminho até o dojo dos Louva-a-Deus. Dez anos de idade e tão cheio de fúria.
Cada golpe do boken do sensei contra o seu era uma ofensa. Cada movimento, cada piscadela de seus olhos enfurecia o garoto, fazendo-o golpear mais forte. Finalmente, com um último esforço, sua espada quebrou a guarda de seu instrutor e ele golpeou o corpo do sensei com o boken de madeira. O homem caiu, com um grito de dor, e o filho do daimyo dos Louva-a-Deus parou diante dele, com a espada apontada para a sua garganta.
– Yoritomo! – soou a voz de seu pai atrás dele, mas o menino não se moveu. Seus olhos perigosos e selvagens penetraram na alma deformada do sensei. – Yoritomo! – desta vez era uma ordem, e o garoto recuou. Com um gemido trêmulo, o sensei pôs-se de pé, quase se vergando de dor por conta das costelas quebradas. – Não precisamos mais de você, Tokui-san. – apoiando-se na bengala, o daimyo dos Louva-a-Deus aproximou-se de seu filho, colocando-lhe a mão no ombro.
– Guarde a espada, filho. – disse rudemente, apesar dos olhos estarem cheios de orgulho. – Já não é hora para infantilidades.
Yoritomo assentiu, afastando o cabelo suado da testa. Enquanto saíam do dojo, os outros alunos curvavam-se, rendendo homenagem a seu jovem senhor.
Enquanto passavam pela porta, Yoshitsune lançou de relance um olhar para seu filho. Alto para a idade, com atraentes olhos verdes – incrivelmente raros em Rokugan – engastados em um rosto de feições angulosas. Numa das faces, descendo-lhe pelo queixo, uma traiçoeira cicatriz cortava a pele morena, deixando um traço branco. Quando chegaram aos rochedos que rodeavam a baía dos Louva-a-Deus, o daimyo soltou o ombro de seu filho.
– Você fica muito parecido comigo quando se enfurece. – Yoshitsune fitou o rosto rígido como pedra – Sente-se, menino.
Brusco, mas obediente, o garoto sentou-se nas rochas, olhando as altas torres das fortalezas de seu clã. Diante delas, camponeses corriam e atarefavam-se, tentando reparar a porta que se partira durante o terremoto da manhã.
– Faz sete anos hoje, Yoritomo. – começou Yoshitsune – Sua mãe e seus irmãos foram assassinados. Isso eu nunca lhe contei. Sua cicatriz, minha perna, esses são os remanescentes do passado.
– O sensei… – o garoto começou a retrucar.
– Iye! – cortou o pai, e o garoto calou-se – Não se trata aqui da sua falta de compostura. – o oceano rugia abaixo deles, no silêncio que se fez quando o daimyo dos Louva-a-Deus interrompeu-se, com o rosto marcado pelo ódio e a tristeza há tanto tempo reprimida – Devo falar-lhe sobre a noite em que nossa família foi morta. Quero contar-lhe a história somente uma vez, meu filho, estão preste bastante atenção. Isso é tudo o que você terá.
– Você disse que minha família morreu em uma batalha…
– Silêncio, criança!
Aborrecido e confuso, o garoto fitou seu velho pai, mas os pensamentos do homem estavam distantes.
– Na noite em que você nasceu, meu filho, as tempestades rugiam pelo céu e os gritos de sua mãe encontravam eco nos trovões dos kami. Você sempre tem sido forte, como ela era, embora eu possa ver a astúcia de seu pai através de seus olhos. Três anos depois, seu irmão mais velho veio a mim, falando de traição e perfídia.
– Traição? – os olhos do jovem Yoritomo apertaram-se.
– Quieto, garoto. – as palavras eram cruéis, cortantes – Há muito a contar e pouco tempo. – ao longe, os sinais de uma tempestade começavam a surgir e os pássaros circulavam no mortal céu azul – Era tarde da noite e os criados tinham-se retirado para seus quartos, deixando-os sozinhos nos aposentos do daimyo em Kyuden Gotei. Seu irmão falou-me a respeito dos armazéns de seda perto do nosso palácio, e de gaijin – estrangeiros vindos de terras distantes – que desejavam adquirir nossas mercadorias. Disse que estavam dispostos a fazê-lo, desde que não barganhássemos como medíocres mercadores.
– Esses gaijin contaram-lhe de batalhas e de perigosas travessias, pedindo-lhe que falasse a seu pai de sua oferta. – o velho sorriu e seu rosto enrugado cobriu-se de linhas em todas as direções – Seu irmão era um Louva-a-Deus e sabia qual seria a resposta: nenhum acordo, não importa o preço. O Decreto Imperial havia sido obedecido há quinhentos anos e os Louva-a-Deus não queriam ser mencionados como o clã que o desobedeceu – à distância, um relâmpago cintilou levemente sobre o mar agitado. O tsunami, maldição lendária das Ilhas dos Louva-a-Deus, aproximava-se à distância. Cada terremoto que destroçava a terra fazia ferver o mar até que as Fortunas mandassem seu poder e as ondas movessem-se como se fossem uma só. Camponeses percorriam o caminho ascendente até Kyuden Gotei, levando suas poucas posses sobre os ombros. Auxiliavam-se entre si enquanto abandonavam sua pobre aldeia, sabendo que esta sucumbiria ante a ferocidade da onda. Reconstruí-la-iam quando passasse a tormenta. Práticos como seus ancestrais Caranguejos; valentes e leais como os Leões – este era o sangue dos Louva-a-Deus.
– Ainda assim, seu irmão o fez. – sua voz estava exausta e tensa, mesmo assim Yoshitsune continuou – Ele procurou um traidor pelo palácio e instigou-o a assassinar seu pai. Queria que ele ‘o substituísse em tudo’. O traidor recebeu 50 koku de ouro e firmou o acordo com sua espada. Antes o falso daimyo tivesse quebrado o decreto do Imperador e seu irmão pretendesse resgatar a honra da família matando-o, seguindo depois com o comércio. – vendo a expressão chocada do garoto, Yoshitsune concordou tristemente – Há aqueles que poderiam ter feito pior.
– Meu irmão era um traidor?
– Sim, mas ainda há mais. Se você for um Louva-a-Deus, poderá ouvir. – o velho esperou pelo arrogante consentimento do garoto antes de continuar. – Seu irmão não sabia que os gaijin nunca haviam planejado comprar a seda, mas tomá-la. Mandaram espiões – estranhos homens desatinados, com facas retorcidas e faces pintadas de vermelho – para matar a família do daimyo enquanto dormíamos.
“Os gaijin andaram cautelosamente pelos corredores do castelo, silenciosos e mortíferos. Onde tocaram as paredes, deixaram marcas do suor de suas mãos. Eram animais estranhos e seus olhos eram brilhantes e claros como os seus.”
– Vi as marcas – interrompeu o menino – nas paredes do castelo.
O pai levantou a mão e o garoto calou-se.
– São os sinais dos feiticeiros gaijin, que matam à noite, sem piedade nem honra. Lembre-se, quando eu tiver partido. – com a fúria em seus olhos, o menino assentiu seriamente, a cicatriz branquejando ao sol poente. À distância, a tempestade se aproximava e os mares começavam a agitar-se com a chegada da Grande Onda – Assassinaram sua mãe enquanto dormia. Suas mãos só deixavam ossos nus onde tocavam, e ao tocar sua pele deixaram grandes queimaduras em sua carne. Ela nem sequer gritou, pois a agarraram pela garganta, tirando todo o som de seu corpo.
Fúria e ódio alternavam-se na expressão do menino, refletindo-se nas rugas do homem.
– Seu segundo irmão saltou da cama, tendo-os ouvido no corredor. Tentou dar o alarme, mas as paredes de papel do palácio romperam-se ao toque dos gaijin e arrancaram-lhe os olhos com os dedos. E devo contar a história de seu tolo irmão mais velho – o homem observou o cenho do garoto se fechar com a raiva – O traidor foi morto por sua própria katana, enquanto os olhos vermelhos olhavam e riam. As marcas de seus pés cavaram sulcos nas pedras, que o sangue de seu irmão encheu durante dias. Nem os eta mais baixos queriam limpá-lo.
– Mas os gaijin não o mataram, pai.
– Não, meu filho. Eles não o fizeram. – apoiou-se sobre a bengala, a madeira manchada arranhando a pedra do rochedo – Os criados tinham começado a gritar e os guardas acorreram rapidamente, encontrando os gaijin enquanto estes entravam em seu quarto – o filho caçula de Yoshitsune e Kirei. Ali, lutei contra eles, detendo-os com a espada de meus ancestrais até que os outros chegassem. Mas deixaram-nos, a ambos, com nossas cicatrizes. – quase sem sentir, o daimyo dos Louva-a-Deus passou a mão pela perna onde as velhas cicatrizes cruzavam-se como teias de aranha.
– Meu rosto. – a mão do garoto tocou o traço branco no queixo.
– Sim. Não pude detê-los inteiramente. – o pesar na voz do daimyo dos Louva-a-Deus era eloquente – Ainda assim, salvei sua vida, como era o dever de um pai, e a linhagem familiar continuará.
Atrás deles, a Grande Onda crescia no horizonte, correndo para praia com a fúria de todos os elementos. Sua crista erguia-se à altura de cinquenta homens sob a tempestade negra, e dentro de segundos a aldeiazinha seria esmagada sob a maciça parede d’água.
– Era meu dever contar-lhe isso, como é meu dever dar-lhe seu gemppuku. Meu último dever para com você, no lugar de seu pai. – o menino estacou sob a chuva, surpreendido, enquanto Yoshitsune sacava a espada ancestral.
– No seu… lugar. – sussurrou o garoto, compreendendo – Os gaijin não mataram meu pai. – o tsunami caiu sobre a terra, atirando casas e árvores para cima como lascas de madeira, e o jovem daimyo dos Louva-a-Deus fechou o punho sobre a espada de seu pai. – Você o matou.
– Cinquenta koku de ouro e minha honra. Este foi o preço de sua vida. – sussurrou o homem, dando um passo para trás, enquanto a bengala caía no chão. – Mas você sempre será… meu filho.
A onda golpeou as barricadas de Kyuden Gotei, quando o homem lançou o próprio corpo ao mar. Acima dele, a tempestade agitava os cabelos de Yoritomo e o trovão abafou seu grito de raiva.
Autor: Ree Soesbee
Tradução: Fábio Firmino
Equipe REDERPG