Rios e montanhas jamais mudarão seus caminhos
O mundo observa o ritmo das estações
Murchando com a neve, refazendo-se com o sol.
Mas o homem nisso não é seu igual
Em um lampejo do tempo nasce
Vive e passa para o Vazio.
Não há meios de se transcender a vida
Se assim deve ser, então que assim seja.
Viva seu tempo enquanto puder
E quando lhe oferecerem vinho, não recuse.
– Kakita Toshimoko.
Não há sentido na vida se não houver para o que se viver.
Somos como fogos de artifício na eternidade. Breves, efêmeros, mas belos, inspiradores, valiosos. A vida do homem não é medida pelo tempo que dura, mas pelo que move, pelas obras que realiza, pelas vidas que modifica. Da mesma forma que um jardim reflete a alma de seu jardineiro, as realizações de uma vida refletem a alma de um homem. Obras grandiosas são resultados de uma alma grandiosa.
Os Filhos de Lady Doji e Lorde Kakita são os maiores defensores no Império das grandes belezas da vida. Enquanto Akodo, o fiel protetor de Hantei, ensinou aos homens o valor moral de suas atitudes e o conceito de honra e servidão, Doji, sua mais querida e próxima irmã, ensinou ao homem o valor de suas almas, a darem expressão às suas aspirações e sentimentos, a serem civilizados e a viverem em harmonia e paz. O legado do Clã da Garça é o espírito do Império, sua cultura e educação são suas maneiras de expressar a identidade singular de toda Rokugan, algo que ele mesmo ajudou a desenvolver.
Um esmero tão profundo e uma sensibilidade tão refinada requerem uma atenção especial aos detalhes. Tudo na Garça é feito buscando-se a perfeição e, para isso, tudo é treinado à exaustão. Um artesão da pintura treina tão avidamente e é tão concentrado em seu trabalho quanto um contador de histórias ou um espadachim. Um cortesão progride na corte como um dançarino de kabuki evolui em um palco: atento ao seu redor, primoroso em suas posturas, preciso em seus movimentos. Alcançada a perfeição, obra e artista se imortalizam. O homem reencontra seu sentido. A vida se proclama.
O preço da perfeição é uma vida de dedicação absoluta. Para a Garça, é um preço pequeno a se pagar.
Lady Doji e o Mendigo
Do Tao de Shinsei.
O Império havia acabado de nascer quando o palácio do primeiro Hantei foi construído e, com ele, a primeira cidade. Sempre junto ao seu irmão e Imperador, Lady Doji ajudou seu Império a crescer. Da janela de seu palácio, a bela Doji via a cidade abaixo – que futuramente seria chamada de Otosan Uchi, a cidade do Imperador – dar seus primeiros passos, mostrar suas primeiras feições. Um forte inverno caía sobre as casas ainda em construção e a temperatura baixíssima obrigou seus habitantes a interromperem seus trabalhos e se confortarem em seus lares com suas famílias.
As estradas da cidade-criança estavam desertas, exceto por um mendigo que se encontrava longe do aconchegante calor das lareiras. Suas posses se resumiam a roupas rotas, uma bengala caída ao seu lado e um pote de esmolas vazio. Não havia ninguém para lhe fazer companhia, exceto a neve e o vento incessante.
Lady Doji se compadeceu do mendigo exposto ao frio e pediu aos seus guardas que o chamassem para dentro do palácio, onde certamente haveria um cômodo para abrigá-lo e aquecê-lo. Os guardas foram cumprir imediatamente a requisição de sua senhora, mas retornaram tempos depois dizendo que o mendigo havia recusado o convite e se negava a ouvir o que diziam. Intrigada, Doji solicitou às suas damas de companhia que levassem arroz e peixe ao mendigo para alimentá-lo e insistissem no convite, e elas assim o fizeram. Pouco depois retornaram, contando que o mendigo havia aceitado a comida, mas novamente se recusava a se abrigar.
Por fim, a despeito da discordância das damas, a própria Doji pôs-se a sair do palácio e ter com o mendigo. Segurando apenas um grosso cobertor de lã, Doji sentou-se ao lado do homem e, com uma voz suave, perguntou: “Disseram-me que se recusa a entrar e acomodar-se no palácio. Por que não aceita ao menos esse cobertor quente?”
“E por que eu faria isso?” A pergunta do mendigo era rude e inculta, mas não desrespeitosa.
“Para poder viver. O dia está ficando cada vez mais escuro e a noite trará geada e neve. Você quer ficar aqui, congelar e morrer?”
“Morrer?” A face do mendigo era branca como a neve ao seu redor. “Você diz essa palavra com temor, minha Senhora.”
“Você não tem medo de morrer?” perguntou a dama.
“Na verdade, minha senhora, eu não tenho medo de viver.” Doji olhou intrigada para o homem, notando que poderia haver sabedoria em suas palavras. “Olhe ao seu redor, minha senhora. O que vê?”
Doji virou seu rosto e observou os enormes muros do palácio, a crescente cidade de Otosan Uchi, o futuro do Império. “Eu vejo… o mundo.”
“Isso é tudo que vê? Você não enxerga o que está diante de seu rosto.” O mendigo riu e Doji se enrubesceu de raiva. “Gentil Doji, por favor, eu não quis insultá-la. Diga-me…” neste momento ele pegou um punhado de neve que já cobria seus pés. “… não vê a neve que cai?”
“A neve?” ela indagou. “É claro que eu vejo a neve. Ela está em todo lugar.”
“Ah, mas você vê a neve?” Enquanto Doji o olhava perplexa, o mendigo apontou para um grande floco que caía perto de seu nariz. “Esse aqui, o que você vê nesse floco?”
Ela olhava o suave floco de neve que passou bem em perto de seus olhos, tentou segurá-lo em seus dedos, até que ele escorregou e caiu no chão aos seus pés. “Ele tem sete pontas que saem de um único centro.”
“E esse aqui?” apontou um novo floco o mendigo. “Três pontas,” disse ela, “parece-se com uma pomba em voo.” Ela parou. “Eu nunca tinha percebido…”
“Em todos os milhares de flocos de todas as milhares de vezes em que caiu neve, nenhum é igual ao outro.” O homem sorriu alegremente. “E nenhum o será em toda a eternidade. Se tivesse aceitado seu convite para entrar, jamais teria visto esse floco de neve. Sua forma jamais aparecerá de novo.” Ele apontou para um floco com uma ponta singular que diferia de todas as outras.
“Mas é apenas um bocado de água.”
“Como a vida é apenas um simples dia, um após o outro, até que os anos passem, fiquemos velhos e nos indaguemos: Para onde foram todos os dias?” Subitamente, ele riu: “Ah! Seis pontas! Como a roda de uma carroça!” e perguntou novamente “O que fez na manhã de hoje?”
“Nesta manhã?” a dama indagou surpresa. “Eu… costurei um quimono novo para meu irmão Hantei.” Depois de rir novamente para outro floco de neve, o mendigo fez outra pergunta “Você se lembra de cada fio de seda que moveu na costura do seu quimono?”
“Claro que não!” exclamou Doji.
“E por que não?” questionou o mendigo.
“Porque são milhares de fios entrelaçados que usamos para fazer um quimono. Como eu poderia me lembrar de cada um?”
“Mas tenho certeza de que se lembra de cada erro que cometeu durante a costura, bem como o tempo que levou para corrigir cada um, não se lembra?”
“´É claro que sim!” respondeu aflita Doji.
“Talvez, se tivesse por um momento estudado cada fio de seda e compreendido cada trama, não tivesse cometido tantos erros, né? Da mesma forma que não viu a neve caindo, você ignora o que está ao seu redor.” Ele prosseguiu. “Não podemos interromper a passagem dos anos, mas podemos alterar a passagem das horas – e o que fazemos enquanto o tempo passa. Serão momentos para serem lembrados, ou serão dias que passarão como se nada fossem, como a neblina sobre a neve?”
“Você é mais do que um mendigo, pequenino.” Um novo floco caiu sobre seu rosto e escorregou, juntando-se ao monte de neve aos seus pés, mais um entre milhões.
“E você, é mais do que uma vida entre muitas?” A voz do homem tornou-se mais austera. “E quando morrer, sua vida será lembrada, ou será mais um fio na tapeçaria, incontável e insignificante? A neve irá se mesclar, Lady Doji, e em alguns dias irá acabar, estando perdida para sempre. Quem irá se lembrar dela?” Ele parou e virou o rosto novamente para a neve que caía. “Quem irá se lembrar de você?”
Após um tempo em silêncio, Lady Doji se acomodou ao lado do homem e ambos passaram, juntos, a observar os flocos de neve que caíam, um por um.
O Cortejo das Garças: os Doji e a Corte
– Isawa Uona.
Os modos da corte, bem como as maneiras sociais de se vestir, dirigir-se aos outros, dar e receber presentes, visitar pessoas em posições mais altas e baixas, enfim, os atos e formalidades de Rokugan foram criados e desenvolvidos por Lady Doji e seus filhos. O Clã da Garça não apenas segue a etiqueta do Império, ele a determina. Por isso, é natural para um membro da Casa Doji lidar com os protocolos sociais com maestria, usando-os para atingir os objetivos de seu senhor e clã enquanto, ao mesmo tempo, melhora sua própria reputação.
Diferente de um cortesão Bayushi, que cerca seus alvos de artimanhas e chantagens que o forçam a agir segundo os desejos e objetivos do clã, um cortesão Doji cria e aproveita oportunidades para aumentar prestígios, não vendo problemas em, por exemplo, elogiar publicamente um aliado de seu interesse. É notória a fama da família de dar presentes, especialmente os que serão de grande estima aos presenteados, lhe resolverão problemas e, principalmente, criarão um alto débito de seus alvos com a Garça. Através de um jogo de favores e compromissos, os Doji aumentam sua influência e seu número de aliados, criando uma proteção social que pode ser convocada em situações de crise.
Para o Clã da Garça, mais importante que manter exércitos no campo de batalha é manter seus cortesãos influentes e cheios de recursos. Um clã que domina o jogo político prefere que seus cortesãos resolvam as situações de guerra ao invés de seus generais.
Agir como um cortesão não é fácil e não é sempre que se pode colocá-los em jogo. Mas o cortesão pode ser a diferença entre a vitória e a derrota em muitas situações. Em Rokugan, é praticamente impossível conseguir uma audiência com um daimyo sem a presença de um cortesão. Em contrapartida, é extremamente desonroso mesmo para um daimyo tratar mal ou ignorar um cortesão de outro clã. Em uma situação de guerra, diplomatas costumam ser enviados entre os clãs inimigos para tentar resolver disputas com o mínimo derramamento de sangue.
Rokugan é repleto de dias religiosos importantes e eventos sociais tradicionais: nascimentos, casamentos, funerais, motivos e motivos para se reunir e celebrar. As mudanças naturais são apreciadas e são marcados eventos para celebrá-las, como o florescer das flores de cerejeira, a passagem das estações, a primeira lua cheia do ano. Essas celebrações acabam servindo de pretexto para que reuniões sejam feitas, acordos sejam selados e decisões sejam tomadas referentes a vidas, famílias e clãs. Em um simples contemplar do desabrochar das flores das cerejeiras do Palácio Doji, quando grandes daimyo de clãs e famílias são chamados a assistir, vidas podem ser decididas. Enquanto flores desabrocham e árvores enchem-se de rosa e branco, em salas privadas casamentos são arranjados, alianças entre clãs afirmadas ou destruídas, guerras são resolvidas e pessoas podem ser ordenadas a morrer. Todos em Rokugan conhecem o poder decisório de uma corte. Em conversas políticas, o destino de um homem, de uma família ou mesmo de um clã podem ser determinados; esse é o campo de batalha de um cortesão.
A arte do cortesão é a arte de dizer sem dizer, de tratar os piores inimigos com polidez e gentileza, de saber esquivar-se de insinuações e acusações sem perder a compostura enquanto engendra artimanhas e escaramuças com suas próprias palavras. Na corte é que se evidencia a máxima aplicável em qualquer relacionamento social de Rokugan: a aparência é mais importante do que a verdade. A discrição é uma forma de respeito e ninguém se importará com os atos de alguém desde que sejam discretos. Em contrapartida, apontar publicamente a fraqueza de outros atrai a desonra para o outro e para quem apontou. Transitar pela tênue fronteira entre a honra e a desonra é uma habilidade desenvolvida por anos de estudo, política e jogos de palavras. O cortesão diz o que quer dizer de modo indireto, mas muito bem construído, para provocar um efeito devastador sem atrair desonra para si e seu clã.
A Arte do Duelo: os Kakita e a Excelência
Trecho de A Espada, de Kakita.
Kakita era o marido e campeão de Lady Doji, seu guarda-costas e general de seu exército. Antes mesmo de seu casamento, Kakita venceu uma disputa que colocou ao chão ninguém menos que a própria Lady Matsu. Isso o tornou o Duelista do Imperador, o primeiro Campeão Esmeralda. Apesar de sua origem humilde, a habilidade com a espada e a polidez que demonstrava para cada adversário eram notáveis. Kakita comprovava naturalmente atributos que serviriam de inspiração para todas as Garças depois dele: a cortesia e a excelência. Seu legado está no conhecimento que passou aos seus filhos – especialmente Kakita Shimizu, o segundo Campeão Esmeralda – e que registrou em seu livro “A Espada”.
A técnica de Kakita passou a ser compartilhada e desenvolvida dentro do Clã da Garça até constituir não apenas uma escola, mas o maior e mais respeitado dojo do Império. A Academia Kakita de Esgrima tem ensinado e aperfeiçoado suas técnicas desde seu fundador, o primeiro Kakita. Da mesma forma que seu fundador buscava a perfeição em tudo que fazia, os duelistas que estudam sua antiga técnica tratam o iaijutsu como o ápice do manejo com a espada: velocidade, força, coragem, perícia e clareza mental, tudo expresso em uma única ação instantânea.
Os kenshinzen, a elite dos duelistas Kakita, são respeitados e temidos por todo o Império, mesmo por aqueles que não gostam da Garça. Aqueles que concluem o treinamento na Academia requerem a oportunidade de se provarem capazes de se tornar kenshinzen. Os que passam em seus difíceis testes são aclamados por todos os bushi da Garça, afinal, eles reúnem em si mesmos todos os atributos valorizados pelo clã.
A arte do duelo é a forma como todo samurai da Garça enfrenta um desafio, mesmo um cortesão. Toda perícia aprendida na escola é treinada exaustivamente e todo confronto é uma competição pessoal. Mesmo um cortesão sabe que um único momento decide o duelo: ele deve ser perfeito desde a primeira ação, não existe uma segunda chance. Por isso, todos os da Garça são ensinados a analisar muito bem o adversário, descobrir suas fraquezas e hesitações, determinar a melhor técnica para sobrepujá-lo e, assim, agir com bastante perícia para conquistar a vitória. Diferentemente dos táticos Akodo, que aprendem a se adaptar às condições da batalha para sobrepujar seus inimigos, os samurais da Garça confiam em um único golpe para derrotá-los. “Um homem, uma espada, um golpe”, essas são as palavras de Kakita. Basta um único instante para se alcançar a perfeição.
A Academia também é palco para o treinamento de diversas perícias artísticas. Seus alunos estão entre os mais talentosos artistas do Império. Um artesão da Academia vive sua arte constantemente: seus anos de escola são passados em quase completo claustro, tendo apenas seu sensei, seus colegas e sua arte como companhia. Essa dedicação obsessiva eleva seu talento ao nível quase sobrenatural. Um artesão do origami praticamente consegue dar vida a suas criações, da mesma forma como um arranjador de ikebana inegavelmente transforma um ambiente de qualquer cômodo em um local de paz e harmonia.
Além de se apresentarem em eventos e para pessoas importantes, os artesãos Kakita também têm o costume de atuar como artistas e professores itinerantes. Para eles, todas as portas estão abertas e toda família, de qualquer clã, receberia de bom grado um artesão que lhe demonstrasse um pouco de sua famosa técnica. De fato, os artesãos passeiam por todo tipo de cidades e vilas, ensinando desde os mais refinados samurais até os camponeses mais modestos um pouco da arte, história e cultura rokugani.
Muito devido aos esforços dos artesãos, não é raro encontrar entre os camponeses da Garça os mais instruídos e refinados. Há casos de damas de companhia de cortesãs Doji que são capazes de manter uma conversa agradável e respeitosa mesmo com os samurais mais eruditos, entretendo-os, enquanto sua senhora se dedica a atingir os seus verdadeiros objetivos.
A Arte da Paz: os Asahina
“Pelo menos dez anos,” o shugenja respondeu.
“E se eu estudar duas vezes mais que qualquer um de seus estudantes?”
“Vinte anos,” respondeu o mestre.
“Vinte anos? E se eu praticar dia e noite com todo meu esforço?”
“Trinta anos,” foi a resposta do daimyo.
“Por que a cada vez que eu digo que vou me esforçar mais, você me diz que vai tomar mais tempo?” o rapaz perguntou, surpreso.
“A resposta é simples. Quando se tem um olho fixo no seu destino, resta apenas um olho para se concentrar no Caminho.”
Mensagem encravada nos portões do Templo Asahina.
Há muito tempo, na juventude do Império, havia um shugenja muito respeitado chamado Isawa Asahina. Sua competência com o elemento Ar o capacitou a se tornar um Mestre do Ar. Entretanto, era também inegável seu talento como adepto do Fogo. Diferentemente de seus pares do pacífico Clã da Fênix, Asahina era um guerreiro feroz e temível, que desenvolvia sua técnica muito mais no campo de batalha que nos estudos das bibliotecas Isawa. Sua presença era sempre requisitada quando a Fênix entrava em conflito com as forças do Leão ou do Escorpião. Asahina também se tornou o maior artífice de seu tempo, criando armas valiosas para a Fênix e sendo renomado tanto pela sua capacidade criativa quanto destrutiva.
Em uma disputa entre a Fênix e o Leão, a intervenção de um diplomata da Garça acabou mudando os rumos da guerra, permitindo uma trégua entre os dois clãs. Asahina ficou furioso. Em sua sede de sangue, ele achava que o poder dos shugenja da Fênix poderia massacrar o numeroso exército do Leão e, com isso, decidir a guerra, mas a intervenção da Garça frustrou seus planos. Como desforra, Asahina lançou-se sobre as vilas da Garça, iniciando uma verdadeira onda de terror sobre camponeses e animais. Casas eram queimadas, furacões arrasavam plantações inteiras, bois e pôneis eram despedaçados. Seus pares imploravam para que parasse, mas a ira de Asahina parecia não ter fim. “Vocês se esqueceram dos samurais da Fênix que caíram por causa do Leão! Suas vidas deverão ser vingadas com sangue! A Garça usurpou o significado da morte de meus irmãos e deverá pagar por isso!”
Não se encontrava formas de se impedir o shugenja furioso. Os Daidoji estavam ao sul para proteger o clã de um ataque do Caranguejo. Os poucos bushi que restaram lançavam-se contra o shugenja para serem rapidamente derrotados por um poder acima de sua compreensão.
Quando se dirigiu à vila de Kimura para acrescentar essa vila à extensa lista de comunidades da Garça destruídas, Asahina encontrou uma jovem bloqueando o seu caminho. Seus longos cabelos negros caíam como uma cauda pelas suas costas, por sobre uma bela armadura azul. Seu rosto não era especialmente bonito, mas seus olhos transmitiam uma serenidade que surpreendeu o grande Mestre do Ar.
“Como pretende me parar, garota? Irá me atacar com a sua katana? Ou talvez você tenha vinte homens escondidos apenas esperando para saltar em minhas costas?” A samurai-ko nada disse, apenas deixou seu kabuto no chão aos seus pés. Não sacou sua espada, sequer lançou um grito de guerra para amedrontar o shugenja. Apenas ficou entre o Mestre e a vila, bloqueando a estrada e protegendo os camponeses aterrorizados.
O shugenja levantou os braços e evocou os elementos que conhecia tão bem. Os kamis prontamente responderam ao seu chamado e uma onda de vento e chamas se irrompeu das mãos do Mestre dos Elementos em direção às casas. A samurai-ko, com a velocidade de um raio, saltou e colocou seu corpo no caminho dos elementos, recebendo todo o impacto da fúria dos kamis evocados pelo shugenja. Asahina urrou de fúria e mandou nova carga de fogo e vento, mas novamente a jovem usou seu corpo como escudo para proteger os camponeses. As roupas da jovem fumegavam e seu lindo cabelo queimava. Sem resistir às dores, a corajosa samurai caiu sobre os joelhos. Mas a vila e os camponeses estavam intactos.
Em uma última tentativa, o shugenja cobriu com uma chama azul seus dedos das mãos e se preparou para lançar uma nova onda infernal. Com todas as forças que ainda possuía, a samurai-ko ficou tropegamente de pé, jogando novamente seu corpo a frente do shugenja. “Por quê?” ele perguntou. “Por que você está fazendo isso?”
Sua voz soluçava de agonia e seus olhos se reduziram a pequenas fendas. “Não posso permitir que você continue a trazer tal vergonha… à memória de seu povo.” Ela tossiu, quase incapaz de respirar. “A Garça entrou nesta guerra para trazer a paz…” A voz da jovem começou a hesitar e ela novamente caiu com um dos joelhos ao chão. “Eu… não vou… lutar… com você.”
Isawa Asahina permanecia atônito em frente a ela. Suas mãos se abaixaram e o fogo em seus dedos começou a diminuir. “Você dará sua vida tão desnecessariamente?” ele murmurou.
“Inocentes não podem morrer. Ninguém mais pode morrer em nome da paz.” O shugenja olhou horrorizado para si mesmo, tomando consciência do dano que havia feito às vilas e camponeses através dos ferimentos que se espalhavam pela carne da jovem. “O que foi que eu fiz? Como pude ir tão longe? Você está certa. Já houve guerra o suficiente.”
Algumas semanas se passaram para que a jovem Doji Kiriko se recuperasse, mas a dedicação constante do Isawa a fez sobreviver. As cicatrizes de seu sacrifício, entretanto, ficaram marcadas em sua pele para sempre. Pouco depois, o shugenja casou-se com a samurai-ko e dedicou o restante de sua vida a buscar a paz, abandonando todo o caminho de violência a que havia se dedicado anteriormente. O Mestre do Ar entrou para o Clã da Garça trazendo seus mais pacíficos irmãos e irmãs, bem como o conhecimento sobre magia e a técnica de artífice de Asahina, enchendo pela primeira vez a biblioteca da Garça de pergaminhos shugenja. Juntos, eles se tornaram a primeira escola de shugenja da Garça e firmaram uma promessa para si e seus descendentes de serem sempre leais ao Clã… e a paz.
Os Asahina são os grandes artífices do clã que mais valoriza a beleza no Império. Sua capacidade mágica herdada dos Isawa, unida ao sangue Kakita e seu apreço pelas artes, os fez serem verdadeiros apaixonados por objetos mágicos, artefatos e fetiches que, muito mais que servirem de simples decoração, carregam propriedades mágicas muito úteis a cortesãos e mesmo bushi. Armas também estão incluídas entre os artefatos mágicos dos Asahina, mas, em geral, eles confiam essas armas à família Doji na esperança de que ela as proteja ou encontre a maneira mais justa de usá-las. Os templos Asahina são considerados lindos museus que preservam a história do Império através de suas obras de arte, muitas delas cheias de propriedades mágicas. Por decreto do primeiro daimyo dos Asahina e mantido pelos subsequentes, é totalmente proibido derramar sangue entre as paredes dos templos.
A Arte do Subterfúgio: os Daidoji
– Daidoji Shihei.
Por sua dedicação à política e às artes, a Garça é reconhecida como um dos clãs menos bélicos de Rokugan. Entretanto, seu histórico de guerras mostra que a Garça enfrentou (e venceu) batalhas terríveis contra forças como o Caranguejo e o Leão. Mesmo os melhores cortesãos falando diretamente ao ouvido do Imperador não seriam capazes sozinhos de fazer frente aos dois maiores exércitos do Império. Clãs que jamais lidaram com a Garça no campo de batalha podem perguntar: como um clã com um pequeno exército conseguiria resistir a companhias inteiras de Hida armados até os dentes ou legiões de Matsu ferozes e impiedosas, dando tempo aos seus cortesãos de reverter a guerra a favor do clã?
Clãs que já enfrentaram a Garça darão a resposta: eles têm os Daidoji.
Os Daidoji nasceram a partir de um desmembramento da família Doji. O filho de Lady Doji, Doji Hayaku, partiu para as Terras Sombrias à procura de sua irmã Konishiko, o primeiro Trovão da Garça. Ele retornou dias depois com os cabelos completamente descoloridos, apresentando apenas a espada de sua irmã. Sua mãe lhe entregou o comando dos exércitos ao sul das terras da Garça e lhes nomeou “Daidoji”, que significa “os defensores dos Doji”. Desde então, os descendentes de Hayaku têm prometido proteger e defender os Doji com todas as suas forças, não importando o quanto isso lhes custasse.
Em virtude dos oponentes que teriam de enfrentar, os Daidoji seguiram um caminho muito diferente das outras famílias do Clã da Garça, buscando meios bem mais pragmáticos – e algumas vezes, desonrosos – para fazer frente a exércitos muito maiores que eles em número e capacidade.
Durante seu treinamento, os Daidoji aprenderam a se esconder e lutar em terrenos impróprios (como lodaçais, rios ou mesmo ambientes urbanos), descobrir e sabotar os recursos dos inimigos, impedir ou ao menos dificultar sua logística e transporte de suprimentos, infiltrar-se em vilas e postos de comércio para monitorar seus movimentos e mesmo usar meios de destruição em massa (leia-se: pólvora ou, como é chamada em Rokugan, “pimenta gaijin”) para compensar a diferença numérica entre as suas tropas e as de seus adversários, pesando a balança da batalha a seu favor.
Além disso, cabe aos Daidoji a realização de qualquer tipo de missão que os outros da Garça considerem desagradável, ou mesmo desonrosa, mas que seja essencial para o sucesso do clã. Conta-se que há sempre um Daidoji por trás de toda ação bem-sucedida dos Doji, e talvez isso seja verdade em muitos dos casos.
Atuar tão próximo do limite da desonra poderia atribuir-lhes uma pecha de meros peões desonrados dos Doji, mas para a família Daidoji isso não é verdade. Para um Daidoji, a verdadeira honra é fazer aquilo que nenhum outro membro do seu clã seria capaz de fazer. Enquanto afastam a impureza das mãos dos Doji, Kakita e Asahina, os Daidoji cumprem seu grande dever de proteger o clã e é isso que os faz, de fato, verdadeiros samurais.
Entretanto, às vezes as atitudes dos Daidoji podem não ser bem vistas mesmo dentro do clã. Ao descobrir o modo de operação de um grupo de Daidoji chamados Sabotadores (Harriers, em inglês), a daimyo da Garça Doji Domotai ordenou ao seu comandante, Daidoji Kikaze, que encerrasse suas atividades e extinguisse o dojo imediatamente. Mesmo assim, mil anos de tradição em subterfúgios não são deixados de lado tão facilmente e muitos Daidoji, especialmente aqueles inseridos na rede de espiões do clã, mantiveram as mesmas funções e atividades, cientes de que são necessários para o bom andamento das atividades das outras famílias.
Joias do Império: as Garças Célebres
Doji Hoturi era o filho mais velho de Doji Teinko e Doji Satsume – o daimyo da Garça e Campeão Esmeralda do Imperador Hantei XXXVIII. Em muitos aspectos, era muito mais parecido com sua mãe que com seu pai: seu rosto apresentava as feições graciosas e alegres de sua mãe ao invés dos traços duros e robustos de seu pai, seu comportamento era muito mais jovial e ativo e suas inclinações sempre foram muito mais para a arte e o hedonismo que a vida rígida e marcial da caserna que seu pai tanto valorizava. Por esses motivos e por ter culpado seu pai pelo suicídio de sua mãe – que se jogou de um rochedo próximo ao Palácio Doji – Hoturi e Satsume jamais tiveram uma boa aproximação como pai e filho, ao ponto de Satsume confiar a criação e o treinamento de Hoturi ao seu cunhado, Kakita Toshimoko.
Como discípulo do maior espadachim de Rokugan, Doji Hoturi cresceu como um jovem atlético, habilidoso, belo, cortês e desejado por muitas mulheres do império. Ele era um diplomata excepcional e um dos maiores duelistas de seu tempo, sendo superado apenas pelo seu sensei. Em uma ocasião, durante uma Corte Imperial no Palácio Seppun, Hoturi se ofereceu para duelar pela honra do daimyo dos Shusuro por causa de sua filha, Kachiko, contra Hiruma Maruku. Kachiko havia sido prometida a Maruku desde a infância, mas o daimyo do Escorpião, Bayushi Shoju, a despeito disso a requisitou como esposa. O duelo foi rápido e mortal; quando perguntado sobre seu desfecho, Hoturi apenas disse polidamente: “O Caranguejo foi lento demais.”
Desde então, em diversas ocasiões, Hoturi e Kachiko se encontraram em cortes, fazendo uma espécie de jogo de gato-e-rato por meses até abruptamente pararem de se falar. Meses depois, já casada com Shoju, Kachiko dá a luz a uma bela criança de estranhos olhos azuis.
Muitos anos mais tarde, durante a Guerra dos Clãs, já no reinado de Hantei XXXIX, Hoturi reencontrou Kachiko no Palácio Imperial, em sua nova função como concubina do Imperador. Mandando seu tio Toshimoko voltar para as terras da Garça para trazer reforços enquanto defendia o Imperador e sua concubina, Hoturi acabou sendo capturado por Kachiko que queria vingar a morte de seu filho pela Garça. Munida de um artefato mágico chamado “Ovo de P´an Ku”, a concubina criou uma cópia de Hoturi que atendia aos seus comandos. Enquanto o Hoturi verdadeiro continuava cativo nas mãos da Mãe dos Escorpiões, o falso Hoturi voltou para as terras da Garça para comandar o clã em seu lugar.
Libertado por Akiyoshi, um ronin enviado por Togashi Yokuni, Hoturi pode se libertar e enfrentar seu sósia maligno cara-a-cara. Com um golpe certeiro de sua katana, Hoturi decepou sua cópia e retomou o comando do Clã da Garça.
No ano de 1128, enquanto as tropas demoníacas de Kuni Yori avançavam sobre a capital Otosan Uchi, Hoturi uniu-se às forças de seu amigo de infância, Toturi, unidas a exércitos sob as ordens de Shinjo Yokatsu e Hida Yakamo, já libertado do controle da mão de oni. Com a investida de 700 soldados Daidoji, comandados por Daidoji Uji, sobre as tropas demoníacas, Hoturi conseguiu fazê-las retrair, permitindo aos seus aliados concentrar-se no verdadeiro inimigo, Fu Leng, que possuía o corpo do Imperador.
No Segundo Dia do Trovão, a concubina Kachiko liderou os novos trovões por corredores secretos do Palácio Imperial, permitindo a Hoturi e Toturi enfrentar Fu Leng cara-a-cara. Num momento de distração causado por Kachiko, Hoturi atingiu com um golpe certeiro o coração de Fu Leng, que lhe respondeu com um corte mortífero no meio do peito da Garça. Hoturi aguentou o golpe do kami negro apenas o suficiente pra ver seu amigo Toturi cortar a cabeça de Fu Leng com sua katana. Enquanto os Trovões comemoravam a derrota do pior mal de Rokugan, Hoturi não aguentou a gravidade do corte de Fu Leng e faleceu.
Em qualquer tratado histórico sobre a corte de Rokugan, dentre as personalidades mais famosas do Império, um nome se sobressai. O nome de um homem cuja habilidade com as palavras e com o jogo da corte tornou-o referência para qualquer cortesão de qualquer clã. Um homem que foi conselheiro de três imperadores, sendo considerado um verdadeiro mestre em diplomacia e política: Kakita Yoshi.
Yoshi era um homem esbelto, com cabelos brancos arrumados à moda da Garça e brilhantes olhos azuis acinzentados. Entretanto, sua voz era o que mais se destacava: bela, agradável, bem treinada, sempre dizendo palavras muito bem medidas e adequadas para cada ocasião.
Kakita Yoshi era o irmão mais novo de Kakita Toshimoko e, por abdicação voluntária deste, acabou tomando para si a administração da família. De fato, a reputação de Toshimoko pendia para o duelo e o ensino de kenjutsu na Academia Kakita, enquanto Yoshi pendia para os eventos sociais que Toshimoko preferia evitar. Sua escolha pela vida política, entretanto, não foi voluntária: Yoshi nasceu na Academia Kakita, como é costume entre os membros de sua família, mas, por causa de uma batalha contra o Leão no dia de seu nascimento, os soldados foram obrigados a fechar os portões da Academia no momento em que sua mãe lhe deu a luz. Uma antiga maldição, que ainda hoje assola a Academia Kakita, dizia que aquele que nascesse entre suas paredes enquanto seus portões estivessem fechados jamais poderia tocar o aço, ou traria a desgraça para a Garça. Yoshi jamais tocou em uma espada em toda sua vida.
Não que ele realmente precisasse. Kakita Yoshi era um dos homens mais poderosos do Império, sem nunca ter tirado a vida de ninguém. Sua rede de espiões o permitia ter conhecimento dos acontecimentos mais relevantes para a corte; era comum a Yoshi aparecer quando algo muito importante estivesse prestes a acontecer. Seu acesso aos recursos da Garça o permitia oferecer os mais variados tipos de presentes e benefícios, atraindo para si uma quantidade de aliados tão grande que o fazia transitar calmamente mesmo pelos domínios de clãs inimigos. Sua capacidade e reputação o elevaram ao posto de Conselheiro Imperial de Hantei XXXVIII e assim se manteve até o reinado do Imperador Toturi I.
A vida de um homem dedicado à corte não poderia se encerrar em outro lugar se não o palco em que sempre atuou. Durante uma invasão de samurais do Clã do Louva-a-Deus em terras da família Asako, Kakita Yoshi dirigiu-se ao então Imperador Toturi I e reclamou das ações dos homens do Louva-a-Deus, chamando-os de carniceiros, piratas e homens sem honra que pilhavam as terras da Fênix e arruinavam a família Asako. O Campeão Esmeralda de Toturi I, Seppun Toshiken, filho de Toshimoko e, portanto, sobrinho de Yoshi, via as ações do Louva-a-Deus de maneira diferente. Para ele, os Yoritomo eram invasores, sim, mas invasores que alimentavam os camponeses das terras dos Asako, lhes trazendo provisões de suas ilhas e impedindo-os de passar fome num momento em que o Clã da Fênix passava por uma terrível recessão.
O Imperador Toturi I, entretanto, estava enlouquecido pela influência da Escuridão Enganosa. Ao ouvir a opinião de Toshiken, convenceu o jovem Campeão Esmeralda de que a discordância entre seu Campeão e seu Conselheiro levava toda a corte a um impasse desagradável, um impasse que precisava ser solucionado. Mantendo os dois filhos pequenos de Toshiken como reféns, Toturi I obrigou seu Campeão Esmeralda a ‘silenciar’ a Corte Imperial. Em 1132, Kakita Yoshi foi brutalmente assassinado pelo seu próprio sobrinho dentro do palácio.
Por Fábio Firmino
Equipe REDERPG