Dos pergaminhos do Castelo Togashi, uma história contada por Togashi Ueshiba*
Dos sonhos esplêndidos de guerreiros valentes
O resultado
– Basho
No coração das montanhas do Dragão, onde o vento sussurra segredos que nenhum homem deve conhecer, uma única samurai-ko escalava. Com suas mãos sangrando pelas pedras e seus cabelos caídos soltos pelos ombros, ela batalhava para subir a montanha. Eu era um jovem na época, um adolescente entre os ise zumi que guardavam os portões. Nós observávamos sua luta contra o terreno rochoso, arbustos espinhosos e as bordas do penhasco, tentando chegar até o piso de nosso lar ancestral. Nesta época, a nenhuma mulher era permitido estar entre as paredes do Castelo Togashi. Nenhuma mulher sequer havia recebido o laço que nos une ao Lorde Togashi Sakanoe, nosso Campeão. Quando a samurai-ko alcançou as paredes de nosso abrigo, ela olhou para o portal fechado e silencioso. Não sabíamos então o que sabemos agora e, por nossas tradições, não podíamos abrir os portões para ela. À medida que o dia passava, ela ficou sentada no chão em frente aos altos parapeitos com seus olhos fixos na entrada.
Por três dias e noites ela nos fitou. Nenhuma comida ou bebida lhe foi servida; em nenhum momento ela dormiu. Enfim, Tsuneyo, Mestre Tatuador, interrompeu sua meditação e pôs-se de pé sobre os grandes muros do Castelo Togashi olhando diretamente para ela. Sua beleza tocou seu coração e o ouvi murmurar: “Criatura tão gloriosa não pode ser deixada sozinha para morrer”. Nós o alertamos quanto a sua tolice, mas ele não ouviu. Ele foi até a beirada dos muros para falar com a mulher.
Ela lhe disse que era uma Garça, vinda das praias distantes, e que havia tido uma visão que a levou até ali. Ela falou de uma tatuagem magnífica, uma que consumia sua mente. Ninguém em Rokugan tinha a habilidade de fazê-la e a maioria sequer conseguia captar toda sua beleza. Apesar da simplicidade do desenho, o padrão perfeito do interior era mais estupendo do que qualquer um teria perícia para executar. Ela então procurou por todo o Império, e sua procura a conduziu até os muros dos Dragões Tatuados. A mulher lhe falou de seu sonho, tão colorido e brilhante que parecia ser iluminado por mil fogos. Ela disse que preferia morrer ali com aquela visão que viver sequer um dia sem ela. Tsuneyo sentou-se com ela por um tempo e seu sonho incendiou-o até chegar a seus pensamentos. Ele lhe ofereceu mingau e água, a livre passagem pelos portões e deixou-a com suas palavras martelando sua mente.
No quarto dia, Tsuneyo foi ter com a mulher novamente. “Não podemos ajudá-la,” ele disse a ela. “Nenhuma mulher é permitida entre esses muros e nossas tatuagens são concedidas apenas a ise zumi. Há outros artistas tatuadores, outros lugares que podem realizar sua visão. Procure por eles e deixe nossas terras.”
Mas a mulher não foi. “Minha visão requer o toque das mãos de um Mestre. Nenhum outro irá bastar. Apenas você, o Mestre de sua arte, pode capturar o meu sonho. Sem perfeição, é melhor nem começar. Se você não irá me ajudar, deixe-me aqui para morrer.”
O tatuador olhou para a mulher por um longo momento. Seu rosto era estranhamente pálido, seus olhos azuis brilhavam como uma tempestade no horizonte. O vento balançava seus cabelos brancos e sua beleza rebatia as trevas como o fogo, cuja simples sombra é capaz de aquecer as paredes mais frias. Tsuneyo disse “Eu contemplei sua visão pelas suas palavras. E sei ainda – se essa tatuagem for feita, se lhe for permitido existir, deverá acontecer pela pureza da morte. Você estaria disposta a pagar o preço?”
A mulher ficou em silêncio, mas apenas por um momento. “A morte é um preço pequeno demais a se pagar pela perfeição.”
No quinto dia, Tsuneyo trouxe seus pinceis e agulhas e colocou-os em um apoio ao lado da mulher. Eu permaneci na muralha, guardando nosso mosteiro, observando o tatuador iniciar o seu trabalho. A mulher da Garça removeu sua daisho, seu obi e seu quimono, sentando-se no chão aos seus pés. No sol poente, suas costas pálidas brilhavam como um pedaço de mármore branco e seus cabelos caíram sobre o chão.
Ele sentou-se ao seu lado e olhou para a curva de seus ombros. Por um punhado de horas ele permaneceu ali, sem tocá-la, simplesmente lembrando-se da visão. Quando o sol retirou-se da orla do horizonte, eu o vi pegar suas agulhas e pinceis, e começar.
A dor devia ser excruciante. Eu, que obtive minha tatuagem pelas mãos de Tsuneyo, eu sei o tormento que é trazer para fora um pedaço de seu espírito. Cada toque da agulha é como um vespão ferroando sua alma. Mas a Garça nunca se movia, nunca chorava. Era como se algo dentro dela estivesse se libertando. É como se soubesse que a hesitação, o movimento, a simples respiração poderia perturbar o Mestre e arruinar qualquer esperança de sucesso. Enquanto cada estrela surgia nos céus, cores começavam a aparecer em sua pele pálida. A escuridão veio, mas Tsuneyo continuava a trabalhar apenas com a luz de suas tochas lhe iluminando a visão. Mas, enquanto olhava, eu sabia que mesmo sem as tochas ele seria capaz de ver. A tatuagem que estava criando tinha o deixado obcecado. Pela noite ele trabalhou e ela permanecia aos seus pés com a quietude da morte. O arco delicado de suas costas não era mais que uma tela para sua criação. Quando veio o crepúsculo, ele deixou de lado seus pinceis e potes e olhou para o corpo dela. Tudo que pude ver dos muros foram as cores milagrosas de sua pele, rica em vermelho, safira e cinábrio. Não havia nenhum movimento, nenhum som, e os ise zumi abriram os grandes portões para que eu pudesse atravessar o pátio e ir até eles.
A mulher estava morrendo, sua dor era muito grande para alguém suportar. Mas, enquanto eu me aproximava, ouvi um rápido tremor na respiração de Togashi Tsuneyo, e ele deitou sua mão sobre as costas dela sobre as escamas negras da tatuagem. Um momento fugidio se passou e, com um suspiro estremecido, ela começou a se erguer do chão. Tsuneyo sentou-se para trás com um sorriso suave em seus lábios e fechou os olhos. Enquanto eu os alcançava, a mulher depositava seu rico quimono sobre seu corpo. Ajoelhei-me na pedra fria ao lado de Tsuneyo. Ele sorriu, incapaz de me ver pela sua dor, e engasgou, “Ela estava certa… era… um preço pequeno…” Então ficou em silêncio, com seus olhos distantes, como se contemplasse a glória dos Céus.
A voz dela era leve e fina como a seda que cobria seu corpo. “Ele sabia o preço a se pagar pela minha visão, e escolheu pagá-lo por mim. Ele escolheu a morte, para que sua criação pudesse viver.” Enquanto ela pegava sua daisho, olhei sua face perfeita e vi sua beleza pálida. Seus profundos olhos cinzentos eram suaves e tristes.
“Por favor,” eu disse, e minha voz estava encharcada de lágrimas. “Eu…” Palavras me falharam e não havia maneira de expressar a necessidade, o desejo, a cobiça em meu coração. Ela sabia o que eu queria, e sorriu o sorriso mais gentil que já tocou esta terra. Passando sua daisho para a outra mão, ela deixou seu quimono cair até a cintura e o sol nascente completou seu ki-rin em chamas.
*Do livro “The Way of the Crane”, de Ree Soesbee.
Tradução: Fábio Firmino
Equipe REDERPG