Ok, o chamado “descendente espiritual” de Dungeons & Dragons 3ª Edição já foi lançando faz um bom tempo. Mesmo assim muitos jogadores e Mestres de Jogo brasileiros ainda não tiveram chance de se familiarizar com essa nova versão de seu RPG predileto – em especial devido à barreira do inglês. Essa resenha é voltada especialmente para esse público, que agora têm acesso a esse fabuloso RPG lançado recentemente em português pela Devir Livraria.
Um pouco de Conhecimento (História)
O Pathfinder Roleplaying Game – Livro Básico foi lançado pela editora Paizo, fundada por antigos empregados da Wizards of the Coast com o propósito inicial de terceirizar certos produtos da empresa – as clássicas revistas DUNGEON e DRAGON em particular. Enquanto estiveram sob a chefia da Paizo, essas revistas inovaram em arte e qualidade, além de lançarem a ideia sensacional do Adventure Path (ou “Trilha de Aventuras”), que são uma linha de aventuras interligadas em termos de história, personagens e objetivos, de formam a criar toda uma campanha (normalmente entre os níveis 1º e 15º ou mais).
Quando a Wizards of the Coast anunciou o D&D 4ª Edição ela rescindiu a licença das revistas DUNGEON e DRAGON. Essa ação forçou a Paizo a lançar uma linha independente de produtos. A nova geração de Adventure Paths tornou-se mais ousadas; não só tínhamos agora aventuras e campanhas prontas, mas mesmas elas eram acompanhadas de uma grande quantidade de material adicional (classes de prestígio, talentos, novos monstros, divindades, regiões, etc). Enfim, os novos Adventure Paths também serviram de porta de entrada para o cenário caseiro do Pathfinder – o mundo de Golarion, fortemente influenciado não só pela fantasia clássica de Tolkien, mas também pelos gêneros pulp, sword & sorcery (como Conan) e planetary romances (como o romance Uma Princesa de Marte).
A indecisão dentro da Wizards of the Coast quanto à nova licença para produtos de D&D 4ª Edição, somada à nova proposta do RPG (um jogo tático de miniaturas com mecânica abstrata e voltada quase que exclusivamente para combates), levaram os responsáveis da Paizo a fazer o que foi sua decisão mais arriscada: lançar uma versão atualizada e variante das regras contidas na licença aberta da System Reference Document (o conjunto de regras d20 aberta ao público).
Para adquirir a confiança dos fãs, a Paizo fez outro movimento inédito: um playtest aberto das regras, onde a empresa liberava a totalidade da mecânica do futuro RPG Pathfinder e os autores discutiam direto com os fãs pela internet o que poderia ser melhorado ou não. O resultado foi estrondoso, como se verificou pelo número de downloads e discussões online. Após um ano, a Paizo lançou seu livro básico, o Pathfinder Roleplaying Game – Livro Básico, com regras “compatíveis retroativamente” com o antigo D&D 3ª Edição. A proposta do playtest foi tão bem sucedida que hoje várias empresas (como a Green Ronin e a Wizards of the Coast) imitam o modelo.
Para dar suporte ao seu novo RPG, a Paizo investiu pesado em um esquema de assinaturas. Por um desconto, você assina linhas de produto (como os Adventure Paths) e os recebe em casa mensal ou bimensalmente. Isso somado a uma atitude aberta com os fãs, arte e qualidade impecável, fez da empresa e do Pathfinder sucessos instantâneos. Em parte porque a Paizo entende bem de uma coisa: D&D nunca foi somente sobre regras, mas igualmente (ou até mais) sobre boas aventuras e cenários para suportá-las. As aventuras da Paizo são extremamente bem escritas e divertidas, e o material de suporte em cada uma rende muitas sessões adicionais de jogo. A Wizards of the Coast pecou dolorosamente neste mercado, com aventuras em geral medíocres ou, no melhor, medianas.
Finalmente, para o espanto de muitos, as vendas do Pathfinder conseguiram a façanha de ultrapassar as do próprio Dungeons & Dragons – uma meta considerada por muito tempo como impossível. E ele liderou o mercado até o lançamento da atual 5ª Edição de D&D.
O velho e bom D&…digo, Pathfinder
O Pathfinder Roleplaying Game – Livro Básico é um livro bem grande. São 576 páginas coloridas e em capa dura. A encadernação é resistente e de qualidade. A arte é belíssima e tende para uma visual de fantasia mítica mais clássica, longe tanto do pseudo-realismo “medieval punk” da 3ª Edição quanto do extravagante e furioso aspecto “Warcraft” da 4ª Edição. O preço é um pouco salgado, mas encontra-se dentro da média do mercado, especialmente pelo tamanho e qualidade dele.
Dado o tamanho do tomo, vou tentar me concentrar em alguns detalhes, para não transformar essa resenha numa pequena monografia.
As regras do Pathfinder são baseadas na edição 3.5 do D&D, variando a partir deste ponto. Um dos objetivos do RPG era ser “compatível retroativamente” com todo o material já lançado no mercado, de forma a não inutilizar as toneladas de livros e revistas por aí. Ela atinge esse objetivo? De certa forma, sim.
É possível pegar monstros, classes de prestígio e talentos da 3ª Edição e 3.5 e utilizar em Pathfinder, às vezes sem qualquer necessidade de mudanças. Por vezes é bom ter um “olho cirúrgico” e realizar pequenas alterações aqui e ali. Mas os três RPGs acima ainda são, basicamente, o mesmo jogo, o que para muitos é um benefício (e para outros não).
Feito esse comentário, vou tentar me concentrar nas diferenças do Pathfinder para o D&D 3.5.
Raças
O Pathfinder traz as mesmas raças básicas, que receberam uma pequena “turbinada”. Os modificadores raciais agora resultam sempre em um resultado positivo “+2”. Por exemplo, anões tem +2 em Constituição e Sabedoria e -2 em Carisma. Raças como os humanos e meio-elfos ganham direito a +2 em um atributo da sua escolha.
Os eternos órfãos do D&D – os gnomos – ganharam uma nova roupagem no Pathfinder. A raça agora é fortemente associada com fadas. Os gnomos se parecem com duendes: têm cores berrantes, comportamento errático, vieram do chamado Primeiro Mundo (terra das fadas no cenário de Golarion) e possuem um latente dom mágico. Mecanicamente a raça praticamente não mudou, mas sua nova descrição reforça agora a mecânica.
Classes
A primeira diferença é que o livro possui três progressões de experiência para as classes básicas: rápida (3ª Edição), média e lenta. Muitos Mestres e jogadores do AD&D e edições mais antigas reclamavam do “avanço rápido” da 3ª Edição, de forma que a Paizo bolou uma forma de agradar gregos e troianos.
Outra diferença são as regras para classes prediletas. Antigamente cada raça tinha uma classe favorecida. Agora, cada jogador escolha uma classe predileta, independente da raça. Cada nível que ele compra nessa classe lhe rende um destes 2 benefícios: +1 ponto de perícia ou +1 ponto de vida. Além disso, não existem quaisquer limitações ou penalidades para multiclasse.
Quanto às classes em si, todas sofreram alterações e encontram-se levemente mais fortes. A intenção da Paizo foi evitar a necessidade de todo jogador comprar níveis em classes de prestígio para manter o personagem equilibrado. Assim, as classes básicas foram modificadas de forma a ficarem interessantes e equilibradas por todos os seus 20 níveis.
Outra pequena mudança é que o Pathfinder mantém uma relação entre bônus de ataque de uma classe e seu dado de vida. Assim, as classes com o melhor bônus de ataque possuem d10s (guerreiros, paladinos e rangers) ou d12s (bárbaros), as classes com bônus de ataque médio possuem d8s (bardos, druidas, monges, clérigos e ladinos) e as com ataque fraco possuem d6s (magos e feiticeiros). Não há mais classes com d4s.
Vamos aos detalhes em si (alguns pelo menos)…
No bárbaro a primeira mudança é que a habilidade de fúria agora não é limitada em “vezes por dia”, mas sim “rodadas por dia”. O bárbaro tem uma pilha crescente de rodadas de fúria que ele pode distribuir como quiser. Ele também ganha ao longo de sua carreira os chamados rage powers (poderes de fúria), que lhe dá novas habilidades durante a sua fúria; coisinhas interessantes como ataques naturais, resistência a medo, golpes mais potentes, visão noturna, faro, etc.
O bardo recebeu um bom retoque. A mecânica de música bárdica segue a mesma lógica de “rodadas por dia” do bárbaro. Ele também ganha novas habilidades musicais, como a chance de apavorar inimigos ou mesmo curar aliados. A habilidade de classe de conhecimento bárdico foi corrigida de forma a integrar plenamente com as regras de perícia. O bardo também tem outras habilidades interessantes, como Versatile Performance, que o deixa usar sua perícia artística no lugar de outras (exemplo: usar Perfomance [Canto] no lugar da perícia Blefar).
O clérigo sofreu poucas modificações. Foram alteradas as regras para lidar com mortos-vivos, sendo removida a infame tabelinha. Agora essa habilidade causa simplesmente dano em mortos-vivos ao redor do clérigo benigno ou cura seus aliados (o jogador escolhe em cada uso). A progressão se parece com a do ataque furtivo, começando em 1d6 no 1º nível até 10d6 no 19º. Outra mudança são os domínios, que ao invés de concederem magias adicionais, conferem pequenos poderes sobrenaturais ao clérigo.
O druida, outra classe já poderosa, teve poucas mudanças. Basicamente ele agora tem a opção entre possuir um companheiro animal ou ganhar acesso a certos domínios.
O guerreiro ganhou várias habilidades novas, para compensar as várias críticas de que era uma classe fraca em níveis elevados. Fora talentos exclusivos mais poderosos, o novo guerreiro ganha bônus com grupos de armas e resiste melhor a medo. Nos últimos níveis ganha redução de dano quando em armadura e torna-se mestre com uma determinada arma. Provavelmente uma das classes mais beneficiadas em Pathfinder.
O monge foi turbinado na sua habilidade de ki. Ao invés de usos diários de atordoar, o monge tem um ki pool (pilha de ki) que ele pode gastar para aumentar sua velocidade, atordoar, melhorar sua CA ou ganhar ataques extras.
O novo paladino é de meter medo. Sua habilidade de destruir o mal agora é ativada contra um alvo específico e dura todo o combate. Em níveis altos a habilidade de cura pelas mãos ganha efeitos adicionais chamados mercies (misericórdias), que removem maldições, doenças e afins. O paladino também ganha novas auras, além da que lhe concede imunidade a medo. Por fim, no lugar da montaria ele pode escolher ter uma arma sagrada.
As novas habilidades do patrulheiro são focadas para o seu aspecto caçador, lhe permitindo focar em uma criatura e lhe provocar mais estrago. Assim como outras classes, o ranger tem a opção de substituir seu companheiro animal pela habilidade de compartilhar parte do seu bônus de inimigo favorecido com seus aliados.
O ladino ganha uma série de novas habilidades especiais, que permitem customizar a classe melhor. Coisas como conjurar magias menores, causar sangramento com ataques furtivos, levantar-se como ação livre, etc.
Os feiticeiros agora escolhem uma linhagem sobrenatural, que indica de onde vieram seus poderes. Cada linhagem concede novas magias, perícias e habilidades sobrenaturais. Feiticeiros não possuem mais familiar.
Os magos agora devem escolher uma escola de magia (ou pegarem a escola universalista). Cada escola concede habilidade sobrenaturais diferentes. Além disso, os magos podem escolher entre ter um familiar ou um item místico.
Perícias
A principal diferença aqui é que agora as classes não ganham mais pontos de perícia multiplicados por 4 no 1º nível. No lugar disso, toda perícia de classe concede +3 de bônus ao personagem, contanto que ele compre 1 graduação na mesma. O limite de graduações é o nível do personagem. Não existem penalidades para comprar perícias fora da classe. O resultado é um sistema mais simples e elegante, que não penaliza multiclasse.
Várias perícias antigas foram fundidas em novas, como Observar, Procurar e Ouvir, reunidas na mais simples Percepção.
Algumas perícias receberam novos usos, como Cura (que agora finalmente pode ser usada para curar pontos de vida após um combate).
Dentre as perícias novas mesmo temos Fly (Voar), uma decisão estranha por parte dos autores, visto as limitações da mesma.
Talentos
Além dos talentos tradicionais encontrados nos livros básicos do D&D 3.5, Pathfinder traz inúmeros talentos novos especialmente feitos para guerreiros. Há, por exemplo, talentos para golpes críticos, que permitem ao guerreiro sangrar, cegar, atordoar e causar outros efeitos adicionais. Há talentos exclusivos que permitem ao guerreiro ser mais letal contra conjuradores.
Combate
As principais diferenças são a nova regra de morte e a mecânica de manobras de combate. Agora os personagens apenas morrem quando atingem -10 ou seu atributo de Constituição, o que for maior. Os testes para estabilizar estão mais fáceis e se baseiam em Constituição também.
As manobras de combate (agarrar, derrubar, desarmar, etc.) são talvez a melhor e mais radical mudança do Pathfinder. No lugar de uma série de regras diferentes, temos uma mecânica unificada, que gira em torno de dois novos valores: o Combat Manever Bonus (COMB) e o Combat Maneuver Defense (CMD). Quer derrubar aquele ogro, role seu CMB contra o CMD dele. Desarmar o orc? Idem. Uma regra universal e bem similar às jogadas de ataque, que não trava o jogo em minúcias.
Outras Regras
Assim como ocorreu entre a 3ª Edição e a revisão 3.5, Pathfinder possui pequenas outras alterações. Por exemplo, o maior bônus de certas armaduras, a nova regra simplificada para criaturas incorpóreas, níveis de energia negativa, dentre outras. Contudo, creio ter detalhado as modificações mais drásticas acima. No geral, os itens mágicos e demais mecânicas de sobrevivência e exploração permanecem as mesmas, com pequenas alterações cosméticas no melhor dos casos (como visto em certos artefatos).
O Pathfinder Roleplaying Game – Livro Básico contém ainda 10 classes de prestígio (arcane archer, arcane trickster, assassin, dragon disciple, duelist, eldritch knight, loremaster, mysthic theurge, pathfinder chronicler e shadowdancer). Todas tiveram suas mecânicas atualizadas, em particular a correção dos seus valores de resistência, de forma a não torná-los muitos altos ou muito baixos. As classes são todas velhas conhecidas, com exceção do pathfinder chronicler, uma espécie de mistura entre um bardo e o Indiana Jones, que faz referência à organização de aventureiros e exploradores que dá nome ao RPG e se encontra detalhada no cenário de Golarion.
Como mencionado, o livrão ainda contém todas as magias básicas, regras para encontros e sobrevivência, além de itens mágicos e artefatos. Contudo, vou-me abster de maiores comentários aqui, pois houve poucas mudanças e destas nenhuma realmente que compense citar.
Dungeons & Dragons 3.75?
O Pathfinder é um bom RPG? Definitivamente! O livro é muito bem produzido e extremamente fácil de se usar. Foi feito com base na edição mais famosa e jogada de D&D, mantendo a aura e mecânicas clássicas daquele RPG. Não é necessário dizer que Pathfinder é um produto feito para aqueles que não se sentiram “em casa” com a 4ª Edição.
Agora, se você já tem D&D 3.5 ou 3ª Edição e encontra-se satisfeito com os mesmos, adquirir o Pathfinder Roleplaying Game – Livro Básico é uma questão de gosto. Você estará comprando apenas uma nova versão das regras. Sem dúvida, melhoradas, mas pouco além disso.
Por outro lado, se você tem problemas com a 3ª edição e variantes e gostaria de experimenta algo realmente novo, então Pathfinder provavelmente não é para você. Procure a 4ª ou a 5ª Edição, ou talvez outro jogo de fantasia (o mercado gringo tem toneladas deles agora).
Por fim, é bom lembrar que a Paizo manteve a licença aberta sobre o Pathfinder e tem lançado uma boa quantidade de suplementos (entre cenários e regras, como um bestiário, um livro adicional para Mestres e um livro avançado para jogadores).
Do jeito que a banda vem tocando, fica cada dia mais difícil chamar o Pathfinder de “variante”. Aquelas três letrinhas mágicas podem não estar gravadas na capa do livro, mas o espírito delas está lá, mais vivo do que nunca. Veremos o que os próximos anos dizem a respeito.
Por Tzimisce
Notas (de 1 a 6)
Texto: 6 (produto profissional)
Conteúdo: 6 (mudanças para melhor no sistema mais clássico do mundo)
Arte: 6 (padrão Paizo)
Nota Final: 6
Essa resenha do “Pathfinder Roleplaying Game – Livro Básico” foi feita com base na edição original em inglês e publicada no antigo portal em 23 de outubro de 2010, onde teve 3.570 leituras.