A Jornada do Mestre é um excelente artigo de cunho acadêmico escrito por Alexandre Tarrask, e publicado no antigo portal em 4 de março de 2005, onde teve 1.464 leituras. Ele faz uma correlação entre a função do Mestre de Jogo/Narrador de criar aventuras e narrativas com os trabalhos de Joseph Campbell e de Christopher Vogler. Confiram a seguir.
“Existem apenas duas ou três histórias humanas, e elas vão-se repetindo sem parar, teimosas, como se nunca tivessem acontecido antes.” (Willa Cather, em The Pioneers)
Muita gente joga RPG por muito tempo, mas não tem coragem de conduzir uma aventura. Existem trocentos guias práticos para mestrar, mas poucos deles dão uma ênfase à estrutura, sendo a maior parte interessados na roupagem, no estilo e em técnicas narrativas.
Talvez pelo fato do RPG ser um jogo que tem por princípio a liberdade de criação, a maioria das pessoas reluta em procurar uma estrutura. Entretanto, como toda forma de narrativa, a aventura precisa de um esqueleto básico, que, com poucas exceções, pode ser deixado de lado.
Na literatura e no cinema, duas das grandes referências do RPG, temos vários estudos sobre estruturação de narrativa. A maioria dos filmes de Hollywood segue uma fórmula simples, e continuam sendo geniais. A diferença é a roupagem que é dada à estrutura.
Este trabalho é uma tentativa de fazer uma rápida apresentação do trabalho de Joseph Campbell e de Christopher Vogler, sobre a criação de histórias e de roteiros de cinema, adaptando para a criação de aventuras de RPG. Estes autores serviram como referência e inspiração para cineastas como George Lucas, que baseou Star Wars na Jornada do Herói. Para aprofundar o assunto, procure A jornada do Herói, de Campbell, ou A jornada do escritor, de Vogler.
Campbell defendia que todas as histórias vinham apenas de uma, um ‘monomito’, que, adaptado, poderia servir como modelo para qualquer história. Assim, resumindo-o, poderíamos criar um pequeno modelo de como criar aventuras de RPG.
Poderemos dividir uma aventura simples de RPG de duas horas em três atos. Cada um desses três atos teria um papel específico a ser cumprido e, quando estivessem todos terminados, é bem provável que todos saiam da mesa com a sensação que acabaram de viver uma grande história.
ATO I – a apresentação – ou “o que estamos fazendo aqui?”
Em meia hora de jogo, temos tempo para criar a apresentação do mundo, dos personagens e do que irá acontecer na aventura. Mesmo sendo uma continuação de uma campanha, os personagens precisam viver situações que os permitam entender como funciona o mundo que os rodeia, e terão uma sugestão do Grande Perigo que os ameaça. No início, os jogadores não estão no mundo da aventura. Suas aventuras passadas já acabaram, e a próxima está pairando no ar. Eles passarão o primeiro ato ‘sentindo o cheiro dela’, vendo pistas e dicas. Se a sua aventura começa com um dragão cuspindo fogo na taverna onde o grupo dorme, tenha certeza que este dragão não é o grande vilão final e que basta acabar com ele para finalizar a aventura.
Essa é a hora ideal para comprar mais equipamento, preparar magias, consertar a nave espacial, conversar com NPCs importantes. Lembre-se: as dicas aparecem aqui. Você pode jogar tudo que eles vão precisar lembrar no futuro, sutilmente. Uma barraquinha vendendo acônito pode significar que eles enfrentarão lobisomens, ou não. Uma frase esquisita pode significar o enigma que vai ser realizado. A sutileza da pista depende do mestre e dos jogadores, claro.
Depois de conhecer o mundo e suas regras, eles vão receber um primeiro chamado à aventura, ao mundo sobrenatural, ao perigo, mas irão recusar. Ou é algo superior a eles, e eles temem, ou precisam de alguma ajuda, que não possuem. Encontrarão o Mentor, que os encorajará a ir. Em Caverna do Dragão, eles nunca começavam a enfrentar absolutamente nada antes do Mestre dos Magos dar uma pista de onde deveriam procurar o caminho de casa. Após o Mentor sugerir uma saída, eles resolverão partir para o Mundo da Aventura. O primeiro ato sempre deve terminar em uma espécie de Portal, físico ou psicológico, que os personagens devem atravessar conscientemente, para entrar no Mundo da Aventura. Esse portal é chamado Limiar.
No primeiro ato, encontrarão duas figuras-chave: o Mentor e o Guardião do Limiar. Os dois podem ser representados pelo mesmo personagem, ou por personagens distintos, mas ambas as funções são sempre desempenhadas por alguém nas grandes histórias.
Mentor: a pessoa, objeto ou situação que os permitirá entender o que é o Grande Perigo, e que os Heróis são os escolhidos pelos deuses/acaso/sorte/oportunidade para enfrentá-lo, derrotá-lo e receber uma recompensa por isso. O Mentor não precisa ser uma figura de autoridade sobre os personagens. O velho prefeito que explica que a cidade está sendo atacada por vampiros à noite e pede ajuda é um Mentor, assim como o Chefe da Guilda que obriga os personagens a trazerem o Rubi das Sete Vidas, senão eles serão mortos. Obi-wan, no primeiro Star Wars, ou Yoda, no segundo.
Guardião do Limiar: Antes de entrar no Mundo da Aventura, os personagens precisam enfrentar o Guardião, que os impedirá. Ele pode ser um gancho para próximas aventuras, ou apenas ganhar um papel marcante. Morpheus, quando dá a escolha para Neo tomar a pílula vermelha ou azul, está guardando o limiar entre o mundo real e o mundo da aventura. A jovem camponesa que pede que o guerreiro fique com ela, case e tenha filhos também.
ATO II – A aventura, ou a hora do pega-pra-capar
Os herói já terão descoberto o que procuram. Eric, Sheila, Hank, Diana, Presto e Bob queriam voltar para casa. Para isso, utilizam-se de pistas e põem-se a caminho para procurar a saída daquele mundo. O objetivo do herói sempre é sair do Mundo da Aventura. Eles precisam desse mundo para serem heróis, e para haver jogo, mas também precisam sair dele para completarem a sua missão. Aqui haverão diversos obstáculos, inimigos, armadilhas, trapaças, todos apontando para um Grande Inimigo final. Os Nazgûl, os Orcs, Gollum, os Homens do Leste, o Balrog, Saruman, todos eram extremamente perigosos, normalmente num crescendo (afinal, os heróis vão evoluíndo), que apontava para o Grande Olho.
Eles irão encontrar aliados e inimigos aqui, e entre esses, existem arquétipos comuns, como o Arauto, o Camaleão e o Sombra.
O Camaleão é um dos NPCs mais odiados. Ele é azul junto dos azuis, verde junto dos verdes e negro junto dos negros. Dança conforme a música, e pode ser considerado um traidor. Claro, os PCs não precisam saber disso até que sejam traídos, o que fará com que sua morte, prisão ou entrega à justiça tenha um sabor bastante especial. Não é um vilão da história, nem o maior inimigo, mas uma pedra no sapato de todos, que, infelizmente, sempre termina aos pés dos PCs. Uma variação interessante é quando os personagens descobrem que o Camaleão não vale nada, mas precisam dele por algum motivo. Gollum é um bom exemplo.
O Sombra é o vilão móvel. Grande Vilão precisa ser enfrentado. Vingador espera em seu castelo, Palpatine também, mas eles sempre tiveram um Demônio das Sombras ou um Darth Maul andando por aí e caçando os personagens. Um grupo de NPCs, com intenções heróicas também pode fazer esse papel. Suponhamos que os PCs sejam um grupo de aventureiros buscando encontrar uma princesa capturada e que outro grupo também busque, ambos querendo a mesma recompensa. São vilões, para os PCs, mesmo que suas intenções sejam tão boas quanto as deles. E, às vezes, podem ser tão cruéis quanto vilões de verdade.
Saruman era o arauto de Sauron. Um inimigo suficientemente poderoso para arrasar os heróis, mas que não é, ainda, o Grande Inimigo. Eles precisam de cautela, ajuda e, muitas vezes, sorte, para vencê-lo. Provavelmente, ao derrotá-lo, consegue-se um trunfo contra o GI. Uma informação, uma arma, um segredo que ele não gostaría que os heróis tivessem. Não é um lacaio qualquer, mas o mais poderoso deles, que é vencido, normalmente, no meio do segundo ato, deixando os heróis provavelmente mais experientes, porém mais fracos, cansados e com menos recursos. E sabendo que a aventura não pode parar. Eles precisam continuar até a Caverna onde o GI está escondido, e enfrentá-lo.
Depois de diversos percalços e desafios, o grupo se aproxima da Caverna do Vilão. Nunca pode ser um lugar fácil, nem simpático. É lá onde irão encontrar o que procuram, seja uma resposta, uma arma, uma cura ou alguém resgatado. Enfrentam todas as defesas, e chegam à Provação Suprema: o Grande Inimigo, o Opositor. Pode ser o labirinto onde o Minotauro se esconde, o bunker do Coronel Kraut, o esconderijo do Príncipe.
O enfrentamento (que pode ser físico, mental, uma grande charada, um grande enigma, o grande diálogo do jogo, a última corrida do campeonato, o pênalti da final da Copa do Mundo). É preciso que seja um combate tortuoso, difícil, que faça os PCs suarem sangue, perderem tudo o que não for necessário para sobreviver, e, no fim, na última tentativa, o vilão é derrotado. O combate precisa, necessariamente, ser difícil. Mais do que todos os outros. É comum, nos filmes, vermos um personagem morrer e ressuscitar antes de matar o vilão. Luke Skywalker faz isso em todos os três filmes. Chega muito próximo da derrota antes de conseguir vencer. Essa ida-e-vinda do inferno é necessária para justificar a mudança interna na psiquê dos heróis.
Provavelmente, o grupo vai precisar lembrar de uma ajuda sutil que recebel lá no começo, uma pista do seu Mentor, o colar de metal que vai servir para eletrocutar o mago, a palavra mágica que aciona a varinha do mal que o vilão deixou cair e será usada contra ele, a única fraqueza, revelada pelo diário secreto do Arauto morto meia hora antes.
Depois de exaustos, os heróis ganham o seu prêmio. Derrotam o vilão e alcançam a recompensa. Estão na sala do trono, com a boca na botija cheia de itens mágicos. Com a derrota do vilão, eles se tornam mais sábios, experientes e poderosos. Aprenderam sua lição e precisam agora voltar para casa.
Ato III – E agora, acabou?
Depois que saem da barriga do monstro (uma das formas que é apresentado o grande vilão), eles precisam voltar para casa. A volta não é tão simples, claro. Ninguém acha que, depois de morto o Rei inimigo, todos os seus soldados irão baixar as armas e gritar hip-hurra para os PCs, pensou?
Normalmente os heróis acham que podem viver no mundo da aventura para sempre, mas isso não pode acontecer. Ainda há inimigos, e eles precisam voltar para reabastecer, para usufruir da sua vitória e oferecer os frutos dela a quem é de direito. A vila precisa ser informada que não precisa mais sacrificar as virgens toda lua cheia. Nessa fuga, que não é difícil como o combate ao vilão final, eles precisam mostrar que aprenderam algo, e usufruir dos poderes advindos desse aprendizado. É quase como uma morte-e-ressurreição do combate com o vilão final, como uma segunda provação para provar que eles realmente aprenderam. Quando eles conseguem utilizar esse novo poder, eles se tornam senhores do mundo da aventura e do mundo comum, e podem voltar para casa, revigorados, poderosos e heróis. Lembrem-se dos Hobbits enfrentando Saruman e Wormtongue no Condado, mesmo depois que Sauron estava derrotado. Só então eles vão conseguir terminar a história e ter um final feliz.