RPG & Física. Alguma relação? (IV)

Bandidos e mocinhos: A entropia, Maxwell e seu demônio de estimação

Um dos maiores ícones da cultura cinematográfica não é nenhum herói ou bom moço: é Darth Vader, Lorde Sith, braço direito do Imperador da Galáxia. E embora a nova trilogia cinematográfica tenha jogado “ares de bom moço” sobre sua figura, Darth Vader é e será sempre lembrado como um vilão implacável – e maior responsável pelo estrondoso sucesso da série Star Wars. Mas, isso só acontece porque sempre que pensamos em uma boa história, automaticamente nos vem à cabeça a figura do vilão: por mais forte, valoroso e altruísta que seja, um herói não tem a menor graça sem um desafio a ser vencido. E um bom vilão é, com certeza, um baita de um desafio para qualquer história, seja na literatura, quadrinhos, cinema… ou no RPG.

No desenho animado “Caverna do Dragão”, o papel de vilão era desempenhado pelo Vingador – uma figura poderosa e até que assustadora, mas não representava a maior ameaça que os heróis poderiam enfrentar naquele mundo: havia ainda uma criatura a quem até mesmo o poderoso Vingador temia, o dragão de sete cabeças que atendia pelo nome de Tiamat. Mais poderoso e assustador que qualquer outro dragão, Tiamat fez fama e participou como personagem de muitos jogos de RPG. É muito difícil encontrar um grupo de jogo que nunca tenha inserido Tiamat (ou uma versão adaptada) em pelo menos uma de suas aventuras. Para um mundo medieval, Tiamat representa o inimigo perfeito: toda a força e poder de 7 dragões reunidos em uma única e terrível criatura. Mas, seria possível que a Física fornecesse um inimigo mais formidável, mais poderoso, perigoso e ameaçador que Tiamat?

A resposta é sim, o demônio de Maxwell! E você verá que perto dele, Tiamat não parece ser mais perigoso do que um Hamster em uma gaiola…

O quê de quem?

James Clerk Maxwell (1831-1879) foi um cientista escocês, filho de pai advogado, que aos 15 anos publicou seu primeiro trabalho científico, publicado na Royal Society de Edimburgo. Maxwell gostava muito de seu pai, que o tinha criado desde que sua mãe tinha morrido quando tinha 8 anos de idade e por isso, após concluir seus estudos em matemática em Cambridge, voltou para a Escócia e se tornou professor de Filosofia Natural na Universidade de Aberdeen. Em seus trabalhos, Maxwell estudou a teoria dos campos magnéticos, produziu a primeira fotografia colorida (aposto que isso você não sabia!!) e procurou contribuir para a padronização das unidades de medida (o famoso SI das aulas de física na escola). Um tempo depois, constrói o Laboratório Cavendish e se torna o primeiro professor de física experimental da Universidade de Cambridge. E você pode (aliás, deve!) fazer uma ligeira busca no Google sobre esse laboratório: não se assuste com os resultados, afinal, Maxwell foi mesmo uma figura determinante na história da física, o mais notável teórico do século XIX (complementando perfeitamente a Faraday, que foi um dos mais destacados experimentalistas). Seu trabalho mais divulgado foi o que estabeleceu a relação entre o eletromagnetismo e a luz. Posteriormente, Hertz construiu, a partir da teoria de Maxwell, o primeiro transmissor de rádio. Maxwell também contribuiu para o desenvolvimento da teoria cinética dos gases, partindo da hipótese de que os gases eram compostos por moléculas em constante movimento, colidindo com as paredes do recipiente e umas com as outras. Como Einstein, Maxwell realizou suas grandes contribuições utilizando uma prodigiosa imaginação. Possuía uma excelente intuição física, o que lhe permitia aplicar modelos visuais e matemáticos com grande maestria, exercendo sua imaginação criadora. A síntese de Maxwell no eletromagnetismo, por meio de suas equações de campo, constitui uma contribuição tão valorosa que pode ser igualada somente ao que realizaram Newton e Einstein na mecânica.

O quê de Maxwell?

Primeiro, uma pequena idéia sobre o que é entropia: podemos defini-la como sendo uma energia incapaz de realizar trabalho, presente em todos os processos no sentido de seu aumento.A perda de energia em cada processo da sua transformação está relacionada com o aumento da Entropia. A energia é perdida, dissipada, e não temos como reaproveitá-la.Uma variação negativa, da Entropia, espontânea, implicaria no retrocesso de um evento, o evento estaria voltando no tempo, o que é improvável. Se você achou essa explicação complicada, pegue outra mais fácil: aceite a entropia como a quantidade de desordem em um sistema. Se o sistema, por exemplo, for a sua sala de jantar, a entropia aumenta durante a sua sessão de jogo de RPG e diminui quando sua mãe faz a arrumação. Em outras palavras, entropia é a quantidade de bagunça em um lugar. Entendeu?

Bem, em seu trabalho sobre os gases, Maxwell divulgou a idéia do que seria uma criatura imaginária vivendo no interior de um gás. Essa criatura seria capaz de separar as moléculas de temperatura mais elevada (com maior velocidade) das moléculas de temperatura mais baixa (com menor velocidade), o que causaria diferenças de temperatura no gás. Assim, o demônio de Maxwell possibilitaria o fluxo de calor em dois sentidos, e não em apenas um, conforme indicava a segunda Lei da Termodinâmica (que diz que Todo Sistema abandonado à sua própria sorte se degenera) e que diz que a entropia de um sistema isolado não diminui (o que significa dizer que se você sair de casa e deixar seu quarto bagunçado, ele estará bagunçado quando você voltar. Principalmente, porque sua mãe vai mandar você arrumar seu quarto, e não arrumá-lo para você). O demônio de Maxwell tem o poder de inverter a tendência universal da uniformidade de temperatura: quando você coloca um cubo de gelo em um copo de guaraná, o gelo derrete e a mistura de gelo e refrigerante assume uma única temperatura, uniforme, certo? O demônio imaginado por Maxwell conseguiria fazer o contrário, ou mesmo fazer com que o guaraná em contato com o cubo de gelo esquente até entrar em ebulição.

Fraquinho ele, não acha? Com o poder de transformar qualquer gás (inclusive a atmosfera) em estado entrópico (ou seja, natural) em uma fonte de energia disponível, o demônio de Maxwell pode se aproveitar do próprio estado caótico das moléculas.

Ok, mas o que exatamente isso significa?

Significa que ele é capaz de concentrar todas as moléculas de oxigênio de um castelo em um único quarto. E que pode fazer com que a água do fosso que o circunda congele, ao mesmo tempo que suas margens entram em ebulição. Ah, a propósito: os personagens não só respiram, como também possuem água em seus corpos, não é? E não adianta sentar e chorar: não importa o tipo de defesa que você tente utilizar, o demônio de Maxwell facilmente pode contorna-la ou reverte-la – a menos, é claro, que ele não seja composta por nenhum tipo de moléculas. Um escudo de aço? Bem, digamos apenas que para o metal estar coeso, é necessário um estado de organização de suas moléculas. O que significa um baixo estado de entropia. Um estado entrópico contra o demônio de Maxwell?Xiii….Bem, acho que agora você concorda que não importa o quão poderoso Tiamat possa parecer, perto do demônio de Maxwell ele não é de nada.

Entenda que esse minúsculo ser inteligente conseguiria observar o estado microscópico de um sistema físico e aproveitar a ocorrência de flutuações favoráveis para diminuir a entropia. O que, segundo as palavras do próprio Maxwell :

“(…)se concebermos um ser cujas faculdades são tão aguçadas que ele consegue acompanhar cada molécula em seu curso, tal ser, cujos atributos são ainda essencialmente tão finitos quantos os nossos, seria capaz de fazer o que atualmente nos é impossível fazer. Pois vimos que as moléculas em um recipiente cheio de ar a uma temperatura uniforme movem-se com velocidades que não são de modo algum uniformes. Suponhamos agora que tal recipiente é separado em duas porções, A e B, por meio de uma divisória no qual há um pequeno orifício, e que um ser, que pode ver as moléculas individuais, abre e fecha este orifício, de forma a permitir que somente as moléculas mais rápidas passem de A para B, e somente as mais lentas passem de B para A. Ele irá portanto, sem gasto de trabalho, elevar a temperatura de B e abaixar a de A, em contradição à 2a lei da termodinâmica.”

Em relação à transferência de calor, de acordo com a segunda lei, o calor não passa espontaneamente de um corpo de menor temperatura (frio) para um corpo de maior temperatura (quente).

Só um detalhe: se você optar por lidar com coisas microscópicas como moléculas ou átomos em suas aventuras, certifique-se de explorar as concepções corretas do ponto de vista físico. Elas são muito mais divertidas! Um átomo, por exemplo, não se assemelha em nada a um sistema planetário, embora você esteja acostumado a ver o contrário em ilustrações por aí. Viu isso no livro da escola? Sinto muito, está errado.

Não é que não haja espaço entre as partículas dentro de um átomo. Há sim, espaço nos átomos, mas a teoria quântica mostra claramente que não se trata de espaço vazio: os elétrons estão zunindo em volta do núcleo a incríveis velocidades. Entenda que comparar um átomo com um sistema solar não é uma analogia válida: um sistema solar tem um sol em seu centro e um certo número de planetas girando em volta dele, cada qual numa órbita estável e bem definida; conhecendo as órbitas dos planetas e a velocidade com a qual viajam em volta do Sol, é possível localizar cada planeta do sistema solar em sua exata posição em data e hora específicas, certo? Já um átomo, apesar de ter um núcleo em seu centro e elétrons girando a sua volta, pode haver mais de um elétron girando a mesma distancia do núcleo, mas eles não colidem porque são repelidos pelas suas cargas elétricas. Elétrons podem girar em muitas órbitas diferentes ao redor do núcleo, desde que mantenham uma certa distância específica de lá. Não é possível determinar simultaneamente a velocidade e a posição de um elétron: reclame com Heisenberg, o criador da teoria da incerteza.

Portanto, se o seu grupo de heróis encolher até um tamanho subatômico, não encontrarão nada semelhante a um sistema planetário – mas sim um bando de partículas altamente carregadas zunindo ao seu redor. Um lugar nada bonito, mas que pode dar uma tremenda aventura!

Bem, a idéia dessa série de artigos era mostrar como a física pode ser abordada de maneira divertida em uma mesa de RPG. Se você leu os 3 trabalhos anteriores e chegou até aqui, posso dizer com certeza que você agora possui idéias diferentes para usar em suas próximas aventuras. Não só para mestrar uma aventura inovadora para seus colegas, como para construir seu próprio personagem.

E é claro, nós não podemos nos esquecer que ao chegar ao final desse artigo, tendo lido os anteriores, você já sabe um bocadinho a mais de física do que sabia antes de começar sua leitura: uma pitada de história da ciência em uma mistura de partículas, termodinâmica, relatividade e eletromagnetismo. E diga a verdade: não doeu ou foi muito chato….foi? Bem, espero que não! Obrigado pela paciência, nos vemos em uma próxima oportunidade!


Leia os artigos anteriores da série: “RPG e Física. Alguma relação?”

Por Francisco de Assis Nascimento Júnior

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