A Guarda Negra de Dol Mordhar – Capítulo 1: A Magistrada

Três meses antes…

A brisa marinha acariciava o rosto e os cabelos levemente dourados de Brunhild. O cheiro do mar pela manhã a fazia se sentir viva e lhe dava a paz necessária para cumprir seus deveres e sua missão. Da sacada de seu gabinete no alto da Torre da Magistratura, ela olhava ao longe o mar, o horizonte e o porto, enquanto a luz de um dia ensolarado refletia em sua vistosa armadura de cota de malha e em suas íris castanhas. Ela fitou demoradamente o porto de Dol Mordhar com os seus longos píeres, típicos do mundo de Isaldar, com suas marés extremas que mudam bruscamente em um punhado de horas. Apenas um dos muitos efeitos de Elária, o Mundo Primordial de onde a maioria das raças inteligentes foi trazida, e das outras seis luas. Em dias tão bonitos assim, Elária é uma grande sombra cinzenta no horizonte iluminada pelos dois sóis sagrados, enquanto as seis luas são impassíveis pontos coloridos no firmamento da Sétima Lua.

Ela se ateve ao alvoroço dos trabalhadores fazendo os últimos preparativos antes da próxima mudança da maré. Daquela distância, pareciam insetos comunais trabalhando para o seu ninho. Talvez os mortais e seus reinos não passassem disso: insetos trabalhando para suas pequenas e insignificantes comunidades. Insetos que têm a pretensão de ser mais do que podem por conta da morte dos deuses.

Brunhild logo afastou esses pensamentos de sua mente. Alguns os considerariam heréticos, outros, dogmáticos. Desde a Queda dos Deuses há exatos 258 anos, discussões religiosas e filosóficas se tornaram assuntos ainda mais delicados do que em outras eras. E para ela era ainda mais, uma vez que Brunhild Taigi era a “Balança de Gotheintor”, a líder da igreja do deus morto da justiça. Tal como seus predecessores, ela direcionou sua igreja para assuntos mais seculares, levando a justiça onde ela for mais necessária. Para que sua instituição mantenha os desígnios de seu deus caído, e não se perca em dogmáticas e infinitas discussões teológicas, que podem acabar desvirtuando-a. Afinal, se a igreja do deus da justiça não lutar para que ela seja feita no mundo, quem mais lutará?

Assim, a Balança de Gotheintor, ao ser ungida, após o fim da Guerra dos Estandartes Sombrios, aceitou depois também se tornar a Magistrada Chefe do Condado de Dol Mordhar, quando o Conde Eberin Mordhar a procurou buscando ajuda.

Quando da dissolução do Império Derenthar, antes do estabelecimento dos Principados Brilhantes, Dol Mordhar não possuía força militar própria, apenas a milícia local, uma vez que as tropas derentharianas aqui postadas foram dispersas com o fim do antigo império.

Com a ameaça de uma guerra civil generalizada, o tataravô do Conde Eberin usou a riqueza do condado para recrutar as melhores – e mais confiáveis – companhias mercenárias para proteger a cidade e sua região, para exercer a função de exército de seu reino. Daí nasceu a tradição de Dol Mordhar em recrutar companhias mercenárias para exercerem a função de exército regular. Com o tempo, muitas companhias se estabeleceram de vez em Dol Mordhar e algumas se tornaram pequenos exércitos privados após gerações na cidade. Além de prosperar como a “Porta do Ocidente” para o comércio com Aldar Oriental, o condado também se tornou famosa por ser a sede das melhores companhias mercenárias do continente, depois das dos anões. Mas até mesmo uma e outra companhia dos anões também se estabeleceu aqui – as que não tinham vínculo com nenhum clã de Karn, a terra do povo mercenário.

Contudo, o pai do Conde Eberin, seu antecessor, cometeu um grande erro: ele institucionalizou o que antes era uma boa e confiável relação comercial. As companhias mercenárias se revezavam na função de força militar do condado. Proteger Dol Mordhar é um serviço razoavelmente lucrativo e de pouco risco, pelo menos nos anos mais recentes. Cada uma ficava um mês no serviço, todas se revezavam e todas ficavam satisfeitas. Se alguma ameaça maior surgisse, as companhias disponíveis eram recrutadas, além da que estivesse na função no momento. Tudo funcionava perfeitamente.

Mas o velho Conde Mordhar tornou por decreto a Companhia da Lança Ardente de seu amigo Theodric Wulfgar a sua guarda pessoal, e assim a maior parte do efetivo dela passou a estar sempre empregada, acabando com o rodízio entre as companhias.

Naturalmente todas as demais – cerca de duas dúzias – não gostaram nada do que aconteceu e, para contentá-las, o falecido conde fez outro decreto de pouca sabedoria: apenas membros das companhias mercenárias poderiam dali em diante trabalhar como homens de armas em Dol Mordhar. Tal decreto deu um poder considerável às companhias, criando um monopólio para elas.

Coincidentemente ou não, desde essa época, as organizações criminosas aumentaram suas atividades aqui, e a corrupção tomou conta das guildas comerciais, da burocracia e da milícia. Se as companhias mercenárias também tiverem sua lealdade ao condado comprometida, tudo isso pode desembocar em uma tomada de poder, ou simplesmente na total anulação da autoridade da família Mordhar.

Foi esse o legado que o Conde Eberin herdou e, temendo a cada dia o pior e sem saber como enfrentar tal situação, ele buscou a ajuda da Balança de Gotheintor.

Nem todos na Igreja da Justiça gostaram de ver sua líder acumulando uma função secular inferior – isso até é comum entre os escalões intermediários da igreja, que assumem funções de juízes e magistrados nos reinos, mas nunca a Balança de Gotheintor. Quem ficou abertamente contra a decisão de Brunhild foi o líder da Ordem da Torre de Diamante de Gotheintor, a ordem de paladinos da igreja, Heydar Gintaras. Ele considerou inapropriado e indigno a Balança de Gotheintor assumir tal cargo, e chegou mesmo a dizer que Brunhild devia abdicar do comanda da instituição.

Brunhild teve calma para responder e lembrou a Gintaras que não cabia a ele questionar as suas decisões, que o papel da Ordem da Torre de Diamente é sempre servir à igreja e levar a justiça onde ela for necessária, e que ela, a Balança de Gotheintor, é a palavra final na igreja do deus da justiça. Ele, como líder da ordem de seus paladinos, deve acima de tudo dar o exemplo, para que suas decisões também não sejam questionadas pelos seus comandados. Além disso, para ela é inadmissível se omitir, quando o lugar que mais precisa de justiça nos Principados Brilhantes, seja justamente onde está sediada a Igreja da Justiça e sua ordem de paladinos.

Ela riu silenciosamente de seus pensamentos enquanto contemplava o porto e toda cidade. É uma ironia como situações desagradáveis do passado se tornam motivo de riso no presente.

Mas Brunhild não se tornou a Balança de Gotheintor apenas por sua devoção e feitos durante a Guerra dos Estandartes Sombrios. Ela sabia fazer política como poucos, e sem comprometer as suas crenças. Ela garantiu em particular a Heydar que não usaria seus paladinos nos assuntos da Magistratura. Havia percebido que Gintaras considerava as questões locais como assuntos de pouco relevância perto de ameaças como Demetiel, o Perpétuo, e Mor Oedis. Na verdade, Brunhild sabia que os paladinos da sua igreja não tinham o treinamento “específico” para fazer o que era necessário de ser feito em Dol Mordhar. Não com suas armaduras brilhantes e clamores de batalha. Ela sabia de quem ela precisava. E foi assim que ela chegou aqui.

Ela foi desperta de seus pensamentos por alguém batendo à porta, o qual ordenou que entrasse. Era o seu fiel noviço e auxiliar Eliakim, que agora também exercia a função de ajudante de ordens da Magistrada Chefe. Era um rapaz dedicado e ela sabia que ele não hesitaria em se sacrificar por ela e pela igreja. Brunhild se cercou de gente da sua mais absoluta confiança, todos do clero de Gotheintor, e realocou todos os antigos funcionários da Magistratura em outras funções. Não confiava em ninguém da burocracia do condado.

– Minha senhora, ele está aqui.

– Deixe-o entrar, Eliakim.

O noviço fez uma reverência humilde e se retirou. Brunhild sentou-se na sua maciça cadeira de madeira e olhou ao redor para o seu gabinete. Ele era muito iluminado pela luz vinda da grande sacada ao fundo, onde estava antes, tendo duas grandes estantes de madeira trabalhada de cada lado com vários livros de leis e histórias locais, dos Principados, do antigo Império Derenthar e de vários outros reinos da Sétima Lua. Tudo muito arrumado e limpo, mas sem nenhum luxo ou ostentação. Além de sua armadura e de seu símbolo sagrado no peito – um grande medalhão dourado representando um escudo com uma balança em relevo – a única coisa mais brilhante no gabinete era a sua maça pesada sobre a mesa. Com certeza ela não precisará usá-la na pessoa que esperava – para falar a verdade, já fazia algum tempo que ela não usava sua arma contra alguém ou alguma coisa –, mas Brunhild nunca ficava longe dela.

Eliakim abriu a porta, deu passagem a um homem, e depois saiu e a fechou, deixando-os a sós. O homem não era muito alto, talvez um pouco acima da média. Seus cabelos castanhos escuro, mais para lisos, estavam displicentemente crescidos e ele usava bigode com cavanhaque. Tinha olhos ligeiramente amendoados, também castanhos, mas ele não parecia um humano do oriente. Não chegava a ter meia idade, mas suas feições transpiravam um tempo que não aparentavam ter. Seus traços, bem feitos como os de Brunhild, tinham, contudo uma beleza máscula e, quando sorriu para a Magistrada Chefe Taigi, foi como se um sol brilhasse em seu semblante e em sua tez branca ligeiramente bronzeada. Parecia um homem comum como os trabalhadores do porto, mas transpirava um ar de bravura e dignidade, um líder nato, apesar de usar roupas comuns de homem livre. O segredo desse homem se revelou quando, em meio aos seus cabelos desalinhados, apareceu uma pequena parte de sua orelha pontiaguda: ele era um meio-elfo.

Brunhild levantou da cadeira e caminhou até o meio-elfo para lhe dar um abraço caloroso. Talvez tivessem sido amantes em outra vida – o clero de Gotheintor, como a maioria das igrejas em Isaldar, não possui qualquer tipo de celibato –, mas agora eram apenas dois grandes amigos se reencontrando.

– Como devo chamá-la? Sua eminência ou meritíssima? – perguntou o homem rindo.

– Eu gostava quando você me chamava de Comandante Taigi, Viggo Logmar. – e apontou para as cadeiras em frente a sua mesa para que ele se sentasse. Ela voltou para sua cadeira maciça. – Quanto tempo faz? Desde o final da guerra, não?

Viggo concordou com um aceno de cabeça – Você continua cada vez mais bonita, e eu já te falei que gosto de mulheres maduras e poderosas, não?

– Sim, e você continua o salafrário de sempre! – respondeu em meio ao riso de ambos. – Como vai a tiefling, ela continua com vocês? Todos estão bem?

– Sim, ela continua parte do meu grupo. Todos estão bem, um pouco mais velhos, procurando algo interessante e minimamente lucrativo para fazer juntos, além de entrar em masmorras aldarianas. Então se tornou a Magistrada Chefe desse antro, não? Você gosta mesmo de desafios difíceis de serem vencidos!

– Alguém tinha que fazer isso. Seria muita hipocrisia minha se a Balança de Gotheintor virasse as costas para tudo que está acontecendo aqui. E depois de enfrentar as tropas de Mor Oedis, eu diria que aqui é uma situação mais “delicada” do que difícil.

Fez aquele silêncio que precede uma pergunta que ninguém quer fazer, mas se sente compelido a tal.

– Você ainda pensa nela, Viggo?

– Todos os dias. E acho que pensarei pelo resto da minha vida.

– A tiefling parece com ela em alguma coisa?

Viggo deu um sorriso cabisbaixo. – Ela não parece em nada. Drusina era apenas uma pessoa pedindo ajuda, uma fugitiva das tropas de Mor Oedis. Coincidentemente, quando nós a acolhemos, foi logo depois… Você sabe. E você? Vive apenas para sua fé e seu trabalho?

– Sim, para minha fé e o meu trabalho. Talvez um dia, quando você se aposentar e ainda me achar bonita, eu abdique e me aposente também. – Brunhild soltou uma sonora gargalhada ao perceber que Logmar tinha corado.

O silêncio desta vez foi mais curto e ele olhou fundo nos olhos da Balança de Gotheintor.

– Você não me trouxe aqui apenas para falar do passado e de nossas feridas antigas. Nos velhos tempos nós faríamos isso bebendo em uma taverna.

Brunhild sorriu para seu antigo comandado.

– Não, Viggo, eu o chamei a Dol Mordhar porque preciso de você e de seu grupo.

O silêncio dessa vez foi diferente e Viggo o quebrou:

– Fale…

– Você tem toda razão: isto aqui é um antro. A corrupção impera, cresceu debaixo das barbas de minha igreja enquanto eu lutava na guerra, e agora que a comando, eu tinha que fazer alguma coisa. O Conde Eberin me deu carta branca e a autoridade para agir, mas fora o clero e os templários da minha igreja, que protegem os poucos em que confio, não há ninguém com quem eu possa contar que tenha as habilidades necessárias. A milícia é corrupta, não posso confiar nas companhias mercenárias, e os paladinos da Ordem da Torre de Diamante não têm o treinamento necessário para lidar com tudo que acontece neste condado, além de não concordarem com eu ter me tornado a Magistrada Chefe. Não são apenas os corruptos: há quem comanda todo o esquema e as organizações criminosas. Mas eu acredito que isso é apenas a ponta da cauda do dragão. Pela alma de Gotheintor, sabe lá quem realmente comanda isso tudo e qual é a extensão desse poder.

Logmar ficou um instante pensativo, mas logo perguntou:

– O que quer exatamente que a gente faça? Parece que você precisa mais de um exército e de uma Lei Marcial do que um grupo de aventureiros veteranos.

– É isso o que eles esperam, mas vou acabar com eles usando as táticas que usam: combateremos nas sombras onde eles se escondem usando um grupo pequeno, mas poderoso e incorruptível.

– Nós.

– Exato.

Viggo foi ficando cada vez mais interessado.

– Vocês começarão limpando os subterrâneos da cidade. Terão que matar todos os monstros que tem lá, não apenas para tirar a atenção deles de vocês, mas para ter uma via para atacá-los de surpresa, além de o subterrâneo muitas vezes ser usado pelo crime organizado. Isso pode levar alguns meses, mas focando inicialmente nos monstros, eles esquecerão vocês, a princípio. Depois, você e seu grupo começarão a fazer a verdadeira “limpeza” de Dol Mordhar.

– Quais serão os nossos limites?

– Nenhum. Vocês poderão fazer o que for necessário. Vocês terão carta branca minha e do Conde Eberin, mesmo que publicamente, em algum momento, ele possa repreendê-los. – respondeu a Magistrada Chefe com um sorriso malicioso.

– Isso não vai contra as suas crenças?

Brunhild sorriu levemente e respondeu:

– Você é um homem bom, Viggo Logmar. Sempre foi. Eu confio em você e no seu julgamento. Você saberá quem trazer à minha presença para ser julgado e quem deve ser julgado sumariamente pela sua espada.

Viggo levantou e foi abraçar sua ex-comandante.

– Você sabe que sempre pode contar comigo.

Ela também se levantou para retribuir o abraço.

– O lado ruim é que o pagamento é pouco. Vocês receberão por mês o que conseguem em um dia explorando uma masmorra. Mas vocês conseguirão muitos espólios e o que for dinheiro sujo ficará como butim para vocês.

– Tenho que falar com o grupo antes dar uma resposta definitiva, mas acredito que eles aceitarão.

– Eu tenho certeza que sim. – disse sorridente a Magistrada Chefe.

Quando Viggo ia abrir a porta para ir embora, Brunhild o chamou uma última vez:

– Só uma única exigência: vocês serão chamados de Guarda da Magistratura, você será o Capitão e terão que usar uniformes.

O meio-elfo fez uma cara de resignação e ela complementou:

– Mas os uniformes de vocês serão negros.

Logmar sorriu.

 

cap. Viggo Logmar da Guarda Negra

Conto por Marcelo Telles
Ilustração de Glaucio Costa
Equipe C7L
Comunidade do C7L no Orkut
www.orkut.com/Community.aspx?cmm=8784780
Setor do C7L no Fórum da REDERPG
https://www.rederpg.com.br/wp/forum/c7l/

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