Walter Benjamin e o Roleplaying Game

Walter Benjamin e o Roleplaying Game é um excelente artigo de cunho acadêmico escrito por Mateus S. Rocha, e publicado no antigo portal em 10 de fevereiro de 2005, onde teve 7.031 leituras. Confiram a seguir.

“O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio”. Walter Benjamin, O Narrador – 1936.

Walter Benjamin e o Narrador

Walter Benjamin nasceu a 15 de julho de 1892, em Berlim, em 1919 escreveu sua tese de doutorado – O conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, procurando concretizar sua carreira universitária, iniciou em 1923 sua tese de livre docência sobre a origem do Drama Barroco Alemão. Acabou renunciando a carreira acadêmica devido ao fracasso de sua tese, passou o resto da vida no exílio, sem dinheiro, trabalhando como crítico e jornalista. Com a ascensão do nazismo na Alemanha refugiou-se na Dinamarca. Em 1940 em Paris, escreveu as teses Sobre o Conceito da História. Quando as tropas alemãs entram na cidade Benjamin foge, mas quando descobre que seria impossível atravessar a fronteira franco-espanhola, suicida-se a 27 de setembro em Port Bou na Catalunha. Somente anos mais tarde viria a transformar-se em figura de culto intelectual., venerado por lingüistas, críticos culturais, historiados de arte, poetas e escritores, pensadores pós-modernistas e sociólogos. Foi um dos personagens centrais da Escola de Frankfurt, seguramente uma das figuras mais obscuras e enigmáticas na história da filosofia continental. Importante dizer que trata-se de um filósofo singular, exímio ensaísta, crítico literário inovador, tradutor de Proust e Baudelaire, escritor, entre outras atividades singulares como sonetista sombrio e historiador idiossincrático. Entre suas inestimáveis contribuições para o pensamento contemporâneo encontra-se uma noção seminal que viria a assumir uma importância ímpar na historiografia moderna: a história dos vencidos.

Benjamin-smA partir desta pequena apresentação e a devida contextualização histórica do momento vivido por este importante pensador alemão, as portas de suas preocupações nos abrem-se. Benjamin, embora esta face de sua obra seja pouco estudada, elaborou uma teoria da narração, sobretudo nos textos fundamentais dos anos 30. Benjamin retoma a questão da experiência, dentro de uma nova problemática: de um lado, demonstra o enfraquecimento da “ Erfahrung” (experiência) no mundo capitalista moderno em detrimento de um outro conceito, a “Erlebnis”, experiência vivida, característica do indivíduo solitário; esboça, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a necessidade de sua reconstrução para garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado a desagregação e o esfacelamento do social. O que nos interessa nessa questão é a relação que Benjamin estabelece entre o fracasso da “Erfahrung” e o fim da arte de contar. Se observarmos textos como “Experiência e Pobreza” e “O Narrador”, observamos que o diagnóstico de Benjamin sobre a perda da experiência não se altera, a arte de contar torna-se cada vez mais rara, porque ela parte fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno, cujas condições de realização já não existiam em sua época na sociedade capitalista moderna. Benjamin distingue três dessas condições fundamentais para a narrativa:

a-) A experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu. As distancias entre os grupos humanos, particularmente entre as gerações, transformou-se em abismo por que as condições de vida mudam em um ritmo muito rápido para a capacidade humana de assimilação. Enquanto no passado o ancião era visto como um depositário de experiência que transmitia aos jovens, hoje não passa de um velho de discurso inútil.

b-) Caráter comum entre vida e palavra, apoia-se na própria organização pré-capitalista do trabalho, na atividade artesanal. Devido a seus ritmos lentos, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial, e devido a seu caráter totalizante, em oposição ao caráter fragmentário do trabalho em cadeia, por exemplo, uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho artesanal se inscreve em um tempo mais global, tempo onde ainda se tinha, justamente, tempo para contar, narrar. De acordo com Benjamin os movimentos precisos do artesão, que respeita a matéria que transforma, tem uma relação profunda com a atividade narradora: já que esta também é, de certo modo, uma maneira de dar forma à imensa matéria narrável, participando assim da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra.

c) A comunidade da experiência funda a dimensão prática da narrativa tradicional. Aquele que conta transmite um saber, uma sapiência, que seus ouvintes podem receber com proveito. Sapiência prática, que muitas vezes toma a forma de uma moral, de uma advertência, de um conselho, coisas com que, hoje, não sabemos o que fazer, de tão isolados que estamos, cada um em seu mundo particular e privado. Ora, diz Benjamin, o conselho não consiste em intervir do exterior na vida de outrem, como interpretamos muitas vezes, mas em “fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada” (BENJAMIN, 1936). Esta definição coloca em evidencia a inserção do narrador e do ouvinte dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, já que a historia continua, esta aberta a novas propostas a fazer juntos. Se este fluxo esgota-se porque a memória e a tradição comuns já não existem, o indivíduo isolado, desorientado e desaconselhado, reencontra o seu retrato no herói solitário do romance, forma diferente de narração, que Benjamin, analisa como advento característico de uma sociedade burguesa moderna.

A morte da narrativa, do narrador e do ouvinte.

Tendo entendido, vale lembrar, de forma bastante resumida, a teoria da narrativa pela demonstração das três condicionantes propostas por Benjamin, podemos identificar alguns determinantes que para ele, demonstravam que a narrativa encontrava-se condenada, o primeiro deles é surgimento do romance no início do período moderno, indício da evolução que culminaria na morte da narrativa. O que separa o romance efetivamente da narrativa é que ele está essencialmente vinculado ao livro, enquanto a narrativa esta vinculada a tradição oral, patrimônio da poesia épica, com natureza completamente distinta do romance. O narrador retira da experiência o que ele conta e seu ouvinte participa da narrativa de forma viva, no romance não existe esta abertura e relação entre aquele que conta e aquele que lê.

Benjamin em seu ensaio, O Narrador, atribui o advento do romance ao capitalismo, pela necessidade que o indivíduo isolado pela sociedade do capital tem de encontrar respostas para o sentido da vida.

“Com efeito, ‘o sentido da vida’ é o centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas essa questão não é outra coisa que a expressão da perplexidade do leitor quando mergulha na descrição dessa vida. Num caso, ‘o sentido da vida’, e no outro, ‘a moral da história’ – essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa…” (BENJAMIN, 1936).

Pela citação de Benjamin, podemos concluir que enquanto na sociedade capitalista o indivíduo alienado (Conceito de alienação do qual faço uso é o conceito marxista de alienação, no qual o indivíduo, não se reconhece naquilo que produz, ou seja, sua participação na cadeia produtiva não o permite reconhecer aquilo que produziu, produz apenas o encosto da cadeira, mas não sabe produzir a cadeira totalmente) e isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los, tem necessidade do contato com o sentido da vida por meios artificiais, parafraseando Theodor W. Adorno, esse indivíduo que pertence a uma sociedade capitalista, atomizado na sociedade de massa, conhece o preço de todas as coisas, mas desconhece seu próprio valor. Por outro lado, numa sociedade de produção artesanal o indivíduo não necessita de engodos para lhe oferecer esse encontro com este sentido da vida, ele reconhece o seu valor, aquilo que produz não é estranho a ele, portanto a narrativa característica desse tipo de sociedade não precisa oferecer um sentido para a vida, mas oferece uma moral da história, transmite um saber sapiente, nas palavras de Benjamin, o conselho tecido na essência da experiência vivida tem um nome: sabedoria.

Um outro fato decisivo para a destruição da narrativa, trata-se da informação, embora a imprensa nunca tivesse influenciado decisivamente a forma épica, passa a exercer um importante papel quando apropriada pela indústria da informação, estranha a narrativa como o romance, mas muito mais ameaçadora que este, acaba por provocar uma crise no próprio romance. A informação nos apresenta os fatos acompanhados das explicações. A arte narrativa, por outro lado, preocupa-se justamente em tentar evita-las. O ouvinte é livre para interpretar a história como quiser, sendo assim o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação, na informação o mais importante é o plausibilidade e a proximidade com o dia-a-dia do leitor, ou seja, enquanto a narrativa não discrimina distância temporal, tão pouco a distância geográfica, Villemessant, fundador do jornal Figaro, nos mostra a essência da informação: “Para meus leitores, o incêndio no Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madri”, ou seja, desta frase podemos concluir que o saber que vem de longe encontra, desde a época de Benjamin, menos ouvintes que a informação que esta próxima.

“O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta” (BENJAMIN, 1936), nas cidades esse tédio, não mais tem lugar, já se extinguiram os ninhos onde esse pássaro de sonhos pode chocar seus ovos, desta forma desaparece o dom de ouvir e junto com ele o contador de histórias, extingui-se a comunidade de ouvintes. Contar histórias é a arte de conta-las de novo, e esta arte se perde quando as histórias não são mais conservadas, ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido, na sociedade capitalista que Benjamin observava já conseguia constatar a extinção dos ouvintes, aqueles que como dito acima, possuem a capacidade de esquecerem-se de si mesmo, este era mais um dos problemas que Benjamin encontrava para a permanência da arte narrativa nessa sociedade capitalista.

Walter Benjamin e o Roleplaying Game

Podemos concluir que o depauperamento da arte de contar, narrar, para Benjamin, parte do declínio de uma tradição e de uma memória comuns, que garantiam a existência de uma experiência coletiva, uma identificação entre o narrador e o ouvinte para que a narração seja uma verdadeira história sem fim, com o advento do capitalismo a narrativa ligada a um trabalho e um tempo partilhados, em um mesmo universo de prática e linguagem, torna-se impossível. O role playing game em sua época, estava longe de ser criado, porém um olhar mais atento as condições que Benjamin destaca para a existência da arte narrativa nos mostra que esta mesma arte narrativa assemelhava-se muito ao RPG como o conhecemos hoje, essa constatação nos permite levantar a hipótese de que o RPG pode proporcionar a nossa sociedade capitalista uma possibilidade de reencontro com a arte de narrar que Benjamin lamentavelmente via morrer em sua época.

As três condições propostas por Benjamin para a existência do ato narrativo, podem ser encontradas no RPG. A experiência narrada deve apresentar significados similares tanto para o narrador quanto para o ouvinte, deve ser comum a ambos, ou seja, fazer parte do “mundo” de ambos, o RPG cumpre esta primeira condição na medida em que a narrativa construída durante o jogo é uma narrativa comum a todos que participam da prática do jogo, utilizam uma linguagem comum, ou seja, trata-se de uma construção coletiva, evidentemente comum a todos. A Segunda condição que Benjamin nos apresenta é a aproximação da arte de narrar e as condições que a organização pré-capitalista da produção artesanal ofereciam, uma época onde existia o tempo para contar, partilhar, a construção totalizante e lenta – artesanal, que caracteriza esta época em contrapartida a produção rápida e fragmentária do trabalho em cadeia praticada na sociedade capitalista, que cria um abismo entre gerações, mudanças muito rápidas, fazendo com que os anciões tornem-se inúteis enquanto narradores, no RPG, por outro lado, como na narrativa, valoriza-se a troca de experiências, geralmente os narrados de RPG são via de regra os participantes de maior idade nas mesas de jogos, jogadores no geral tem o hábito de narrar histórias e escrever pequenos contos, gostam de conversar com os avós e pessoas mais velhas em geral, como-se pudessem absorver suas as experiências e utiliza-las em suas narrativas. O próprio ato de jogar permite à aqueles que participam do jogo construírem juntos e ao mesmo tempo uma história completa, não no sentido de uma história acabada, mas no sentido de participarem de todos os atos de construção da narrativa, todos são igualmente importantes e ao final do jogo reconhecem-se nele, reconhecem que suas ações enquanto indivíduos ativos levaram a narrativa a ser o que é, reservam-se um tempo para contar histórias e trocar experiências, quanto a isto recorremos a dissertação de mestrado de Andréa Pavão, que nos permite concluir que muito do que se joga (vive) durante uma sessão de RPG é fruto da “bagagem”, experiência trazida pelo mestre (narrador) e os jogadores, fruto de vivências, leituras, filmes, produção cultural em geral e toda a movimentação social que os cercam.

“Haveria uma proximidade entre o contador de historias, o narrador e o mestre de RPG, pelo papel que assumem ao conduzir uma leitura, seja ela de um livro, de um caso ou de uma aventura fantástica, para um ou mais ouvintes, que não mantem uma postura passiva. A medida em que o ouvinte interrompe, pergunta, critica, reconduz a narrativa em outra direção, o mestre vale-se de seu atributo ‘repentista’, como também de sua ‘bagagem pessoal’, do repertorio acumulado pela vida.” (PAVAO, 1996).

Portanto, cabe aqui também, afirmar que esta prática aproxima a vida e a palavra. Finalmente a terceira condição desenvolvida por Benjamin diz respeito a uma comunidade de experiência, da troca de experiência, ou seja, a narrativa pressupõe a inserção do narrador e do ouvinte, quando tratando-se do RPG, mestre e jogador, dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, já que a história continua, não tem um limite determinado, quanto a esta condição o RPG atende-a plenamente, pois a prática do jogo não predetermina uma narrativa dentro de limites, uma crônica de jogo pode acabar em determinado ponto da história, porém sempre haverão janelas para outros olhares, outros caminhos ou lugares, os personagens que não foram interpretados pelos jogadores (NPCs) ou mesmo aqueles interpretados por eles, continuam sua “vida”, sua existência continua a fluir, mesmo que não haja uma preocupação direta com este aspecto da narrativa construída, os caminhos continuam aberto para novas intervenções.

“‘E se não morreram, vivem até hoje’, diz o conto de fadas. Ele é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas.” (BENJAMIN, 1936)
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No RPG, assim como nos contos de fadas, sempre podemos voltar e questionar, e se eu não tivesse seguido este caminho? E o que aconteceu com aquela caravana que cruzou nosso caminho? E se aquela porta não estivesse fechada? Se não conseguíssemos nos livrar dos caçadores? Se tivéssemos parado para salvar aquela cidade do ataque? O que houve com a princesa depois que o príncipe a salvou? Na narrativa assim como no RPG permite-se a pergunta, e o que aconteceu depois? No romance ao contrário, não se pode dar um único passo além daquele limite em que vem escrito ao final da última página a palavra fim, convidando o leitor a refletir sobre o sentido da vida influenciado pelo conteúdo lido. Nota-se que no RPG existe o mesmo nível de abertura que na arte narrativa, Heródoto foi o primeiro narrador grego, sua narrativa não se entrega, conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver, Heródoto não explica nada, sua narrativa é seca, por isso a narrativa torna-se atemporal, assim como o RPG, não é como a informação que só faz sentido quando é nova.

O RPG permite ao jogador, assim como a narrativa permite ao narrador e ouvinte, participar da narração, influenciar e transmitir conselhos, sabedoria e experiência, na narrativa, assim como no RPG, imprimi-se a marca do narrador, como a mão do oleiro imprimi sua marca na argila vaso. O RPG em muitos aspectos parece ser a velha arte narrativa, que recusando extinguir-se, ressurge como uma fênix, das cinzas renovada e mais forte do que nunca.

BIBLIOGRAFIA

Adorno, Theodor W., Horkeimer, Max. Dialética do Esclarecimento – Fragmentos Filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro-RJ, Jorge Zahar Ed. 1985.

Adorno, Theodor W. Coleção os Pensadores – Adorno – Textos escolhidos. São Paulo-SP. Editora Nova Cultural, 1999.

Benjamin, Walter. Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. 3ª Edição, São Paulo-SP, Editora Brasiliense, 1987.

Marx, Karl. Coleção os Pensadores – Marx. Tradução de Edgard Malagodi. São Paulo-SP. Editora Nova Cultural, 1999.

Pavão, Andréa. A aventura da leitura e da escrita entre os mestres de Roleplaying Game (RPG). 2ª Edição, São Paulo-SP, Editora Devir, 1996.

 

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