Vampiro 5ª Edição – Dança Macabra (Conto do I Concurso Literário V5)

“Olha… nunca entendi bem o que aconteceu aquela noite.

Eu ainda era um Ghûl (é, meu Senhor Flaubert chama assim, com essa entonação), e a gente tinha viajado uns dois dias até chegar naquela vila perdida nos quintos dos infernos no interior do Mato Grosso. Quer dizer, você é treinado em Israel como soldado de elite, tem que aprender três línguas, pra servir de guarda de uma caixa de madeira no interior do Mato Grosso? Qualé?

Enfim, o dinheiro era MUITO bom e, depois, você sabe… o vício.

Enfim, a gente tava levando a caixa de volta de qualquer coisa esquisita que ela – não a caixa, a “velhota” dentro dela – tinha ido fazer na Cidade do México. Eram oito caras tomando conta da caixa – parecia que a gente tava carregando ouro… e olha, dois deles eu conhecia. Um era Ghûl daquele Príncipe velho da França, Villon… trouxeram a porra do Ghûl francês pra tomar conta da caixa! Outro eu ouvi dizer recentemente que recebeu o Abraço do fucking Gratiano! Mas esses cabeças-de-pá são meio mentirosos, a gente nunca sabe se é verdade. Enfim… só pica grossa no transporte.

Bom… trinta anos atrás, não tinha essa coisa de Internet, caminhões rastreados por GPS e outras coisas. Ninguém sabia onde ficava a vila. A gente acabou se achando e parando lá quando já tinha escurecido.

Abrimos a caixa como tínhamos sido compelidos a fazer – Flaubert não se contentava com apenas dar instruções. A “velha” na verdade parecia ser pouco mais que uma adolescente… ainda me assombro com isso às vezes, quando conheço esses anciões. Ela se sentou e nos olhou, avaliando por um momento, como se a gente fosse algum tipo de mercadoria de segunda, sabe? Mas eu conhecia a Fome quando via. Aprendi amargamente com Flaubert.

Ela saiu com um movimento gracioso da caixa. Era bem baixinha, mas andava como se fosse uma rainha. Ela parecia saber onde tinha que ir… caminhou direto para uma espécie de puteiro que parecia ser a única coisa aberta aquela hora. ‘Esses velhos sabem onde a comida fácil tá’, falou um dos caras que eu não conhecia, Marcelo – coitado, desse – e riu. Algo me disse que não passou desapercebido pela velha, mas ela seguiu lá pra dentro.

A gente tinha ordens expressas de não interferir com nada do que ela fizesse, inclusive se fosse contra nós mesmos… exceto por isso, a gente devia segui-la, e garantir que nada a incomodasse. E lá fomos nós, deixando o Marcelo no caminhão.

A gente entrou. Um cheiro forte de bebida e uma música que eu não reconheci no ar. A velha estava sentada numa mesa com uma moça que parecia ter a mesma idade dela – claro, pela aparência – mas a moça estava levemente reclinada na parede. Olhos baços, olhando pra cima. Achei ótimo que ela tivesse se alimentado, assim seguiríamos mais tranquilos com ela… mas como a ordem era fazer o que ela quisesse, a gente sentou por lá, guardando as portas e janelas visíveis, e eu fui sentar ali perto dela. Uma mulher mais idosa, sem um dente –  é só o que lembro dela – veio sorridente trazer um copo de bebida pra ela. Ela só acenou com a cabeça e a velha pôs o copo na mesa. A senhora pareceu nem me perceber na mesa… mas a “velha” realmente chamava a atenção, eu mesmo fiquei olhando um pouco pra ela, apesar do treinamento pra evitar a Presença, até ela me olhar de relance e eu baixar a cabeça. Só devia me dirigir a ela como resposta ao que ela dissesse… só eu falava hebraico, e ela parecia não se importar em falar outro idioma.

Houve dança, e as meninas da casa se aproximavam falando comigo, mas olhando para ela. Já faltavam umas duas horas pra amanhecer, nas minhas contas, mas ela estava ali, imóvel, olhando a movimentação. Percebendo meu incômodo com o tempo, e talvez lendo meu pensamento, ela disse: ‘Não se preocupe’. Eu recostei na cadeira, e me aquietei.

Dali a pouco, todas as luzes apagaram de uma vez. Nós ficamos alertas, e embora eu tivesse aprendido a aguçar minha visão e audição, em um instante senti os olhos se ofuscarem: uma luz forte acendeu no meio do palco. Uma figura – eu acredito que fosse uma mulher, mas ela era perfeita demais, equilibrada demais… e eu não podia ver detalhes do seu corpo, só conseguia olhar seus olhos. Eram castanhos, bonitos, e de alguma forma prendiam a atenção de cada pessoa ali dentro enquanto ela se movia suavemente. Eu mal percebi quando a velha se levantou, e caminhou até o palco. A dançarina a encarava nos olhos, e a tomou pela mão. A música mudou, ficou mais pesada.

Enquanto elas dançavam, uma dança muito erótica e que parecia uma espécie de duelo em câmera lenta, minha visão se acostumou à luz, e eu percebia impressionado minúsculos pontos brilhantes no ar… saindo da pele das pessoas, e flutuando delicadamente na direção das duas. Pareciam gotículas, minúsculas… vermelhas. O cheiro no ar era de feromônio e ferro.

Cheiro de sangue.

De repente elas se abraçaram, como se beijassem o pescoço uma da outra, linhas finas avermelhadas começavam a correr na pele branca delas. Ficaram ali, rodando lentamente, como uma dança lenta, enquanto faziam isso, a boca de uma colada no pescoço da outra. A velha parecia uma criança, olhos arregalados de medo e êxtase, e a outra… a outra passava os olhos de um por um no ambiente. Era como se saboreasse o momento. Calma. Precisa. Predatória.

Num dado momento, seus olhos cruzaram os meus. Eu tive a sensação de ver… coisas nele. Depois disso, tudo ficou meio nublado. Eu me lembro vagamente de como tudo ficou escuro, e de como quando as luzes acenderam ninguém mais estava no palco. Ninguém pareceu perceber que algo diferente acontecera. Eu e os homens saímos de lá como se nunca tivéssemos sido levados até lá seguindo uma vampira pequena que respirou pela última vez quando Cristo não tinha nascido.

Lá fora, o Marcelo estava com o pescoço quebrado do lado do caminhão. Sem sinal de luta. Sem sinal de reação. Seco feito uma múmia – eu já tinha visto muita gente drenada, seca, quando Flaubert ficava faminto… Mas nada assim.
A gente só se deu conta do que aconteceu de fato quando estávamos na estrada, o sol nascendo. Todo mundo percebeu que a caixa estava aberta, e tinha umas cinzas escuras dentro dele. Eu sabia o que aquilo queria dizer.

Passei um rádio, pedi para falar com o chefe assim que anoitecesse, longe dos outros – porque tínhamos instruções para não entrar em contato com ninguém – mas para mim, ele disse que havia uma exceção: se a caixa fosse aberta durante o dia.

Ao anoitecer, a gente chegava perto de São Paulo, o rádio bipou. Paramos num telefone público e eu liguei pro chefe. Ele me atendeu, e me ouviu em silêncio.

“Se livrou do corpo do soldado?”

Eu pensei.

“Sim… acho que sim. Enterramos por lá.” Eu tinha certeza, mas não lembrava.

“Certo. Venham embora, e me procure quando chegarem.”

Ele desligou. Eu disse a palavra-chave que ele mandou dizer para os outros – a qual, claro, não me lembro mais – e viajamos em silêncio até a mansão de apoio dele em Prudente, onde ele esperava.

Chegando lá, eu desci, ele estava na porta. Aproximou-se com aquele jeito de Alain Delon moço, passou a mão no meu rosto – eu odiava aquilo, mas não podia evitar de gostar… e ele achava graça nisso – e olhou cuidadosamente dentro da caixa. Seus sentidos, muito mais poderosos que os meus, certamente viam além do que eu era capaz.

Após um segundo, porém, Flaubert recuou por impulso, e me olhou como se tivesse visto a face do demônio lá dentro. Eu gelei.

Ele virou as costas. ‘Livrem-se disso.’ E caminhou para dentro da casa.

“Como assim, o que eu fiz? Fiz o que ele mandou fazer. Dispensei os outros, paguei todo mundo, levei o caminhão para o nosso ferro-velho e ateei fogo em tudo, usando um compostozinho fedido feito pela cria da cria do meu Senhor, que removia o que Flaubert chamava de ‘reminiscências emocionais’ – algo como um desinfetante para ‘leituras emocionais’, que eu acho que é algo como sentir as emoções daquilo que Flaubert toca.”

“Quando voltei lá para a mansão, já era de manhã. Eu comi, tomei um banho e dormi até a hora dele acordar.
Acordei com os gritos dele. Meu coração acelerou, e acho que sem querer usei os poderes do Sangue dele pra voar até os aposentos dele.

Quando cheguei, ele olhava, apavorado, para o braço. A brancura de sua pele era cortada por letras que pareciam entalhadas na pele – Deus, dava pra ver os músculos por baixo! – e nas letras estava escrita apenas uma palavra, em hebraico.

‘Habá’.

“‘Próximo’, ou ‘aquele que se aproxima’.”

Ficamos em silêncio por um minuto inteiro. Poderia ter sido uma hora.

Ele olhou para mim, sua boca entreaberta… E o que eu vi não era medo.

Era horror. Puro e simples.”

Depois desse longo olhar, que me fez pensar mil coisas – indo de se deveria ampará-lo, deixá-lo só, me preparar para lutar ou para morrer – Flaubert cobriu aquilo com a mão, e disse sem me olhar nos olhos: ‘Saia.’

Eu saí.

E ninguém nunca mais falou naquilo.”

“Depois disso, passamos uns dois anos nos mudando – hotéis, casas alugadas, chalés, até trailers… Não ficávamos um mês no mesmo lugar. A temporada do trailer foi a pior, ugh.

Uma noite ele acordou. Eu estava sentado na frente do casebre num sítio que ele alugou. Ele veio em silêncio, se sentou ao meu lado, tomou meu cigarro, deu uma tragada e jogou fora. Ele só fazia isso quando sua frustração era profunda… Ele sabia que o cigarro não fazia diferença para o corpo morto dele, mas, ainda assim, tentava.

Finalmente, ele disse: ‘Mon chére, chegou o momento.’

Eu olhei curioso.

Quando me dei conta, estava sentindo o Sangue dele na boca, me chamando de volta à vida que ele mesmo tomara de minhas veias.

Meu Abraço foi assim, cru e de poucas palavras… muito diferente do que eu esperava dele, que gostava de florear momentos solenes.

A filha do caseiro veio correndo, como se tivesse sido chamada, e se tornou a primeira vida a saciar a minha Besta.

Mal tive condição de saciar minha Fome em seu pescoço, aliviar a dor do corpo voltando à vida, o êxtase ainda me percorrendo as veias… e eu ouvi o vampiro tricentenário dizer: ‘Assuma tudo.’

Eu, ainda aturdido como quem acaba de sobreviver a um desastre e ainda percebendo o prazer inebriante da vida da jovem em minhas veias, perguntei, atordoado: ‘Ahn? Assim… onde você vai?’, e ele respondeu: “Mato Grosso”.

Eu acordei do entorpecimento, e olhei para ele, atônito, enquanto ele caminhava até o carro e entrava nele. Eu corri até a porra do carro, enquanto ele baixava o vidro.

Não pude dizer uma palavra… Mas creio que meus olhos disseram o que eu queria dizer: ‘Por quê?’

Ele olhou para o braço, puxou a manga da camisa.

‘Habá.’

Eu arregalei os olhos, e o encarei. Seus olhos verdes estavam tristes. Conformados. Desconsolados.

Ele passou a mão no meu rosto, daquele jeito que eu odiava e amava. Arrancou com o carro.

Eu nunca mais vi meu Senhor.”

“Por anos eu pensei naquela noite longínqua. Na dança macabra que presenciei no interior do Mato Grosso. Nos olhos dela. Nas coisas que vi neles, e que embora não possa me lembrar, assombraram minhas noites de sono, e ainda assombram meus sonhos diurnos.

Pensei no que levou Flaubert a agir como agiu. Porque ele atendeu àquele estranho chamado vindo de longe, se tinha resistido por tanto tempo…

Por fim, eu entendo. Hoje eu entendo. O chamado dói. Veja meu braço… Cada letra arde, mesmo quando eu cicatrizo tudo. E eu vejo os olhos dela, me procurando. Sinto os olhos de meu querido Flaubert, e os da ‘velha’, nos dela… e ainda sim são os dela. Chega uma hora que não dá pra resistir. E eu resisti por anos.”

“Porque eu resolvi te contar tudo isso? Para que você entenda porque eu preferi gastar meu último esforço para que você entenda porque eu não vou lhe dar o Abraço, como prometi. Como ela quer. Eu vou poupar sua alma da desolação que eu sei que ela vai trazer à minha. A que trouxe para as deles… E só há um jeito de garantir que eu resista ao impulso que ela me impõe para que lhe transfira o legado desta última dança maldita com ela: é garantindo que você não possa se tornar uma de nós. É dilacerando seu coração antes de ir até o encontro dela… com minhas próprias mãos.

Perdoe-me, querida.”

Por José Dirceu Vollet Filho
Conto 7º colocado no I Concurso Literário V5
promovido pelo grupo Vampire (V5) do Facebook

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