“O Passageiro”, de Luiz Felipe Vasques, foi o conto 6º colocado no I Concurso Literário de Contos – Vampire (V5), promovido pelo grupo Vampire (V5) do Facebook. Confira a seguir!
O Passageiro
Era eu e galera no porto.
Um bando de zé-manés, órfãos e abandonados, que tinham se juntado numas de tentar sobreviver, numa sociedade que a gente mal entendia e que o único aprendizado que a gente tinha era do cinema e da TV. Apesar disso, a gente se gabava como todo bom novato no início, se achando o Conde Edward Ruthven Lestat Nosferatu da porra toda, e só com aquelas lições de humildade duramente marteladas na nossa cabeça pra aprender qual era nosso lugar.
Parecia que ia ser sempre assim: com porrada. A gente vinha de baixo da sociedade. Um era preto, outro era gay, a outra era puta, aquele era maluco já de antes e era tudo pobre ou mal de grana – e na nova sociedade, parecia que continuávamos condenados a pegar as migalhas que caíam da mesa. Acho que toda sociedade precisa dum peão de obra, dum pau mandado, dum fodido. Camarilla, meu camaralho.
Às vezes éramos mais, às vezes menos. Tinha gente que o nosso santo não cruzava, acontece, e se desse sorte apenas mandávamos embora. Tinha gente que a gente clicava, se identificava, e adotava. Mas aí dava alguma merda, e essa pessoa morria – mesmo. Mas o pior é quando ela sumia. Em geral tinha se desentendido brabo com alguém. Não digo quando tinha que sair da cidade, mesmo sem se despedir: mas quando sumia. Ponto. A gente nunca sabia quantos seríamos ao acordar ou dormir na próxima noite.
De foder era pensar que seria assim pela eternidade.
Ultimamente vínhamos sendo eu, Tobias, Shima e Zé Carlos. Tinha outros também, mas essa era a diretoria. Um cuidava do outro, não era o convívio perfeito, mas a gente se entendia. Aí veio a oportunidade.
Ano passado recebi um telefonema do Gabs. Gabs, o próprio, o todo-poderoso Gabs, dizendo que precisava de gente competente para continuar um esquema de importação e exportação “alternativa” no porto da cidade.
Nem pensei duas vezes, como se não bastasse o pagamento, diversos benefícios ocasionais surgiam, entre algum a mais de mercadorias aqui e ali assim como olho no que entrava e saía da cidade – e quem. Falei em nome da galera que, é claro, topou.
A oportunidade estava ali, Gabs era alguém pra se ter em boa conta ou para sumir da vista dele por alguma merda que você fez, de forma que a gente na hora topou e quis mostrar serviço. Por mais de um ano foi assim. Nenhum cliente reclamou. Qualquer cagada que fizemos nós consertamos e abafamos – você não ouviu nada sobre nenhuma delas, correto? Então não fode.
A gente pela primeira vez era respeitado e tinha grana. Galera comprou carro, roupa nova. Quem mantinha algum laço com a vida antiga conseguia ajudar em casa. E ninguém ia tirar isso. Concorrência indesejada era rapidamente cortada, de tão bem organizados que conseguimos ser. Mais que grana, mais que prestígio: a gente tinha orgulho de ser quem era, pela primeira vez.
Então, um dia, Gabs ligou e disse que ia aparecer um cliente de responsa. Queria embarcar pra Israel ou Líbano, o primeiro que conseguisse. Que não gostava de altura, parece, e preferia ir de navio.
Perguntei o de sempre, se ele tinha como arranjar comida, alguma restrição a ser arranjada? Gabs disse que ele ia levar a dele. Era só ele? Só. Verifiquei e confirmei que o cargueiro Phoenicia ia zarpar na noite seguinte.
Agora, a gente vê muita coisa esquisita e toma muito susto nesse tal de pós-vida, mas, meu irmão, puta que te pariu foi o berro que eu dei quando acendi a luz do meu escritório e ele estava lá. O cliente.
Um cara alto, troncudo, todo de preto, careca e feio. Feio que nem o rascunho do inferno. Por um momento vi a cara real dele. No instante seguinte, era minimamente humano. Não por muito, mas… passável.
— Hã… boa noite. – cumprimentei, assim que me recompus – Você é o… cliente do Gabs, né?
O cara apenas ficou me olhando. Gabs não tinha me dado o nome. Não que eu precisasse saber, fazia parte do sem perguntas feitas. Mas, porra, né?
O resto da galera apareceu, com o berro. Apresentações foram feitas. Por mim, ao menos. Ele se limitava a olhar cada um de nós, com aqueles olhinhos profundos, encovados, que mal brilhavam com a luz do teto.
Que ele era encrenca, isso era óbvio. Especialmente quando o Shima pareceu mais assustado do que eu. Fez uma reverência e tudo. O cliente pareceu não se importar muito. Resolvi levá-lo logo para o embarque, e terminar logo com isso.
Do escritório descemos pro nosso armazém, e quando dei conta, o cliente estava do lado de fora de um caminhão, segurando quatro caixões empilhados sobre um braço. Olhei ao redor atrás de algum estivador surpreso fora do nosso esquema e que teríamos que dar um jeito, mas não havia mais ninguém.
— Essas são os mantimentos do senhor? – perguntei, tentando ser casual. Nem eu sabia ainda por que perguntava, eu acreditava na política de zero perguntas.
De novo, só ficou me olhando.
— Sabe, pra ter o que comer a bordo, são vinte dias no mar…
Nada.
— Ok… hã, Zé Carlos, Tobias, vão com nosso cliente lá pra dentro, e mostrem as acomodações… – o que era uma forma gentil de se referir a um canto dum porão de carga abarrotado. Se quisesse luxo, que escolhesse um cruzeiro – Qualquer dúvida, falem com os marinheiros, hipnotiza se for o caso, o de sempre.
O cliente seguiu com os dois e, ao menos, fez sumir os caixões, do jeito que sumiu com a cara. Aquele truque realmente vinha a calhar. Shima vivia usando.
Eu e ele fomos falar com o capitão. Estava tudo já acertado mas, de qualquer maneira, era bom confirmar.
No caminho, dando uma certa distância do cliente, ele me segurou pelo braço e encurtou o passo e a voz:
— Aí, eu sei quem é esse maluco. Ele é da… minha gente. Tipo, não conheço ele em pessoa, mas é ele, sim.
Shima era de um Clã, tinha sido educado. Sabia sobre um mínimo de vários assuntos que a maioria de nós foi aprendendo na base da porrada.
— Tem certeza?
— Tenho, tenho… cara, esse aí é dos antigos. Ó, não tou dizendo dos mais velhos, como o Gabs ou o outro maluco que era o Príncipe que sumiu, saca?
Acreditei. O Shima também era feio, mas perto do cliente, era apenas o estagiário.
— E tem outra coisa. Vários desses antigos tão largando tudo e indo lá pro Oriente.
— Que nem ele?
— Isso! Ninguém sabe por que. Tão falando de um tipo de chamado, algo que… vem pelo sangue, uma merda assim. Todos procurando, sei lá, Israel, Egito, Síria… sabe o lance de ter vindo gente pra caralho ultimamente pra cá, exatamente desses lugares? Então, diz que pode tá relacionado. Mas diz também…
Uma coisa pra gostar no Shima: ele era bem informado. Uma coisa pra não gostar no Shima: às vezes, ele não sabia quando parar.
— Segura a palestrinha: tu tá tenso aí com o tio Funéreo, isso só vai distrair, e a gente precisa de foco. Conta mais tarde, primeiro a gente instala o cliente, sai do barco, ele vai pro Oriente, Egito ou a puta que o pariu e não é mais problema nosso. Depois tu conta. Tá?
Quando descemos da ponte de comando, o cliente estava lá no convés com Tobias.
— Tudo instalado?
— Beleza – fez Tobias, enfatizando com dois polegares pra cima. O cliente, pra variar, não fez nem que sim, nem que não.
— Algum problema?
— Nenhum.
Eu queria que o Tobias fosse menos retardado às vezes, porque eu queria que o principal interessado – o cliente – respondesse. Mas essas eram as do dia. Suspirei.
— Tá. Cadê o Zé Carlos?
Tobias fez aquela cara de espantado de sempre e disse que não, não sabia, que Zé Carlos tinha ido na frente.
— Deve ter descido e ido ver a carga extra do caminhão. – acrescentou.
Naquele momento, caixotes – não caixões, pelo menos – eram içados de guindaste, de propriedade do cliente. Seriam depositados próximos de onde o haviam instalado.
Mas nem sinal de Zé Carlos. Chamei pelo rádio ele e a equipe no cais. Nada, ninguém tinha visto.
— Vai ver que foi beber em algum canto aí. – sugeriu Tobias, olhando ao acaso ao redor – Ele tava meio com fome…
Era só o que me faltava. Ainda tinha que assentar os pertences do cliente. Na falta dele, designei Tobias:
— Desce lá e vê isso direitinho, pra não ter estresse. Shima, vai com ele, qualquer coisa, vocês passam um rádio – acenei com o meu.
Desceram, seguidos pelo cliente. Se estava mesmo de mudança, pergunto quantos móveis estava levando. Se é que eram móveis. Política de zero perguntas, afinal. Mas sempre fica uma dúvida.
A carga desceu, os estivadores içaram se preparando para transportar, quando eu vi rapidamente o cliente se aproximar, sumir das vistas, mas erguer aquilo no mesmo ritmo dos trabalhadores. Ouvi quando eles exclamaram sobre ser mais leve do que parecia. Fosse o que fosse, ele devia estar de mudança definitiva.
Tinha algo que não me deixava em paz, desde quando eu vi o cliente erguer os caixões e ir a bordo sem que ninguém o notasse. Mas agora eu sabia o que era: um filme velho que eu vi quando era moleque, um filme de criança, com bonecos, em que um corcunda pulava a bordo de um navio carregando o caixão com o Drácula. Eu nem sei onde vi isso. Iam para uma ilha, onde ia ter uma festa, uma coisa assim, cheia de monstros do cinema. Mal sabia eu a ironia que me aguardava antes dos 23 anos, mas esse não é o ponto: eu pensei nos caixões que vimos embarcar.
Quantos monstros a mais estariam a bordo?
O cliente era um só, ele e sua carga. De resto, era o pagamento e nenhuma pergunta. O pagamento, aliás, já havia sido depositado. Generoso, inclusive, ninguém ia reclamar: mas eu continuava não gostando disso. Se fosse, pra todos os efeitos, mais de um cliente, isso teria que ser contado. E duvido, caso desse merda, que Gabs fosse querer ouvir que a culpa foi de quem nos informou.
Shima voltou com o cliente. Os estivadores subiam ao convés para deixar o navio pelo labirinto de pilhas de contêineres, com o serviço todo já feito. Eu disse que tínhamos que ir embora, e perguntei:
— Tudo certo?
— É, tudo… – Shima mal podia conter o nervosismo.
— Certo, então vamos… péra, cadê Tobias?
Ele olhou ao redor, surpreso. O cliente, pra variar, olhava pra nós dois, sem dizer nada.
Puxei o rádio e chamei Zé Carlos e Tobias para irmos logo. Nada. Repeti o chamado. Nada. Perguntei pra equipe no cais se eles estavam ali. Responderam que não. Segurei os palavrões quando encontrasse aqueles dois, o jeito era procurar.
Mandei Shima descer de novo o navio, eu procuraria na popa e ponte de comando. Sem me referir explicitamente ao cliente, ressaltei a necessidade deles serem encontrados logo. Não sabia se ele tinha concordado, mas o fato é que não pareceu se importar em ir lá ver também.
Eu já tinha ido para cima e para baixo sobre o convés, e o capitão dado a entender que não podia esperar mais por muito tempo. Eu me coordenava com Shima pelo rádio, mas nada daqueles dois. Até uma hora que eu decidi que era foda-se, e iríamos desembarcar. Mandei a ordem pro Shima:
— Shima, mete o pé. Aqueles dois que pulem na água pra voltar depois, e é isso. Câmbio.
Não obtive resposta.
Nem tentei uma segunda vez. Desci até a área de carga. Estaria escuro normalmente, mas ao menos alguns truques eu já tinha aprendido nessa desvida. Segurava o rádio agora com a mão esquerda, e uma nove com a direita, e a escuridão não era nada para mim.
Fui direto para, onde sabia, estaria a carga do cliente, em um canto estratégico em que ele pudesse camuflar as coisas. Só lembrei que seria assim quando eu vi os quatro caixões ao lado dos caixotes maiores. Imaginei que ele não tinha ligado esse efeito.
Cheguei mais perto dos caixões. Ninguém ao meu redor, o que, sabia, não significava nada. Abri o primeiro apenas para dar uma olhadinha.
Eu devia ter corrido, mas, na verdade, sinto que apenas tinha me rendido, naquele momento. Como é a palavra? Resignado.
Abri cada um deles. Somente o último estava vazio. Nos outros estavam Zé Carlos, Tobias e Shima, com expressões de terror estampadas nos rostos e estacas de madeira encravadas no peito.
— Você é realmente antigo, né? – ainda perguntei, antes de me virar. O cliente estava lá. De novo, sem responder. Mas tinha uma estaca e um sorriso cada vez mais distorcido enquanto a cara falsa derretia, somente os olhos permanecendo os mesmos, brilhando pequenos de pura maldade naquela escuridão ao redor e que agora me envolvia.
Por Luiz Felipe Vasques