“Bem-vindo à Família”, de Yuri Ramos, foi o conto 5º colocado no I Concurso Literário de Contos – Vampire (V5), promovido pelo grupo Vampire (V5) do Facebook. Confira a seguir!
Bem-vindo à Família
Eu senti falta desses jantares em família. Isso era o que Francesco pensava enquanto se dirigia à mansão. Fazia cerca de um ano desde que ele havia visto seus familiares, ele sentia falta especialmente do patriarca: seu Tio Santino, mas é claro que ele não o chamava assim em público. Don Giovanni, era como os Caporegime o chamavam, e Francesco, que era um mero tenente da Família Roselini, via seu tio com grande admiração e medo. A relação dos dois poderia ser resumida como realmente de tio e sobrinho, e as últimas palavras de Don Giovanni ficaram à espreita em seu subconsciente nesse último ano: Se esconda! E não apareça até que seja chamado aqui de novo! Eles estão vindo.
“Eles”. A palavra era repetida por Francesco todo amanhecer antes de dormir. Quem seriam esses a quem seu tio se referia. É claro que ele já ouvira as lendas. Vultos mascarados que atacavam a Família Pisanob no México, os mais velhos os chamavam de Precursores do Ódio, mas isso era claramente uma história para assustar os Neófitos. Seja como for, esses tais Precursores nunca atacariam os domínios da Família aqui na Itália, especialmente tão perto da cidade considerada a Capital de seu Clã: Veneza.
Mesmo que esses bichos-papões não pudessem entrar nos antros dos Giovanni, alguma coisa não cheirava bem nesse convite. Como de costume, foi enviado ao jovem Roselini um envelope selado, o conteúdo deste continha uma breve carta agradecendo Francesco por seus serviços e dando as boas-vindas de volta para a Família. Anexado à carta havia um convite. O procedimento era muito comum, mas duas coisas chamavam a atenção: a primeira era que a carta estava assinada, não por Don Santino Giovanni, mas sim por sua cria: Enzo Giovanni. A segunda coisa é que o selo da carta não era o clássico “G” usado para identificar o clã, ao invés disso, um símbolo com três faces estava em seu lugar. Contudo, o endereço da mansão de Don Santino ainda era marcado como o ponto de encontro, e seria impossível alguém de fora da Família saber que aquela era a base do Clã.
A mansão ficava nos arredores de Suburra, perto de Roma. A cidade mais religiosa da Itália não estava mais receptiva à criaturas como Francesco e sua família, especialmente desde que alguns Mortais se tornaram cientes de que viviam lado a lado com Vampiros. Francesco nunca viu isso como algo negativo, como uma criança da noite ele vivia tranquilamente com seus parentes ainda vivos.
Ele avistou seu destino ao longe. A casa antiga de mais de 400 metros quadrados de área, estava na Família há gerações. Todos os Membros que moravam em Roma ou nos arredores sabiam que aquele era o Quartel General do Clã Giovanni nesta região da Itália. Chegando mais perto podia-se notar o quão imponente o edifício realmente era. A mansão possuía três andares, além do subterrâneo e garagem, e também um vasto jardim com labirinto e piscina. O neófito aproximou seu Chevy Impala 1967 do portão de ferro fundido, ele podia observar dezenas de outros carros, tão antigos e caros quanto o dele, e isso de fato o deixou bem mais relaxado, como se estivesse no lugar correto. Ao chegar na entrada, um homem, possivelmente um carniçal, se aproximou de sua janela.
“Boa noite, senhor. O senhor tem convite?” – O homem perguntou com uma voz quase mecânica, como se tivesse feito a mesma pergunta para todos que passaram por ali ao longo do dia. Na mente de Francesco, provavelmente, era o que havia acontecido. O jovem simplesmente tirou o convite que estava anexado em seu envelope e o entregou ao segurança.
“Senhor… Roselini. Ah sim, seu nome definitivamente está na lista. Por favor, entre e aproveite a festa.” – O homem puxou uma alavanca e o portão se abriu com um barulho mecânico antigo, o metal rangendo em uma melodia pouco convidativa.
“Muito obrigado, senhor.” – Francesco afirmou enquanto o homem estendia sua mão para dentro do terreno, pedindo para que entrasse o mais rápido possível. Ele moveu seu automóvel até o local onde os carros estavam estacionados. Ao desligar o motor e sair do carro, ele observou enquanto pequenas crianças com vestidos infantis, daqueles que você só veria em um filme do Coppola, estavam brincando no jardim. Próximo delas tinham jovens adolescentes, que provavelmente eram parentes, estavam se beijando como se fosse algo normal, e era normal, pelo menos para os membros de sua Família, todos casavam entre si para manter a pureza do sangue.
Ele passou pelo grande portal no jardim que levava à entrada, como de costume em festas, a grande porta dupla estava aberta. Dois seguranças, um de cada lado da porta, deram um aceno positivo de cabeça para Francesco, como se dizendo “boa noite”, mas sem palavras. Ao adentrar a mansão, ele podia ver que estava muito bem iluminada, e com muitos convidados. Uma grande mesa de jantar era compartilhada por pelo menos 27 pessoas. A mesa estava enfeitada com pratos elegantes como espaguete ao molho branco, lasanha à bolonhesa e porcos com maçã na boca. As pessoas na mesa eram todas mortais, comiam com extrema vontade e prazer. Francesco olhou para a cena com um pouco de tristeza, afinal isto era um prazer que ele havia deixado para trás.
“Deseja um vinho, senhor?” – Um garçom perguntou ao Neófito, o tirando do transe. O homem carregava várias taças de vinho tinto, e branco. Ele não era o único, vários outros também circulavam pela mesa, e pelas outras mesas menores que também estavam presentes em diferentes locais da casa.
“Sim er… eu quero aquele da… Safra Especial.” Francesco respondeu, esperando que sua mensagem fosse captada. O garçom, ainda com seu olhar sério, fez um gesto positivo com a cabeça e acenou para outro que estava perto da porta da cozinha. Este carregava uma bandeja, porém essa só possuía vinhos tintos. Não demorou muito para que o Roselini sentisse o cheiro doce do Vitae que as taças continham. Ele se aproximou do segundo garçom pegando uma das taças e agradecendo.
Ao ingerir o líquido, ele pode sentir o prazer de tomar sangue ainda quente e, não só isso, a ressonância Sanguine estava levemente presente nas notas do sabor. Era como degustar um bom vinho e ao mesmo tempo comer um aperitivo muito bem preparado. Francesco sabia por experiência que não deveria perguntar de onde veio o sangue. Enquanto ele se deliciava em seu orgasmo alimentício, um outro homem de cabelos loiros e roupas elegantes, claramente membro da família mortal e bêbado, se aproximou do garçom também com um gesto para pegar uma das taças.
“Mil perdões senhor. Este vinho é para convidados especiais.” – disse o garçom ao homem, claramente incomodado com a situação.
“Mas o que é isso?” – disse o homem vestido em um terno fino. – “Você sabe com quem você tá falando? Meu nome é Leon Dunsirn! É minha família que assina o cheque pra essa palhaçada toda aqui acontecer, e eu quero mais vinho seu…” – antes que ele pudesse terminar, uma mão grande se encontrava repousada em seu ombro. Atrás dele estava uma figura conhecida por Francesco. Um italiano de quase dois metros de altura e porte físico digno de um boxeador, este era Carlo Puttanesca, seu primo.
“Acho que você já bebeu demais meu amigo.” – Disse Carlo com um tom calmo, mas bem agressivo. O homem chamado Leon estremeceu, sentindo o peso da mão daquele brutamontes. Todos que não estivessem distraídos com a comida podiam ver que a mão de Carlo o pressionava igual uma prensa hidráulica.
“Sim… sim; acho que vou me deitar.” – Disse Leon, sua voz fina igual a de um garoto na puberdade. Apesar de muito bêbado, ele apresentava um equilíbrio anormal. Talvez o medo o tivesse deixado sóbrio instantaneamente.
“Muito bom, pode ficar com um dos quartos de hóspedes, agora some da minha frente antes que eu arranque seus dentes.” – Disse Carlo, ainda com seu tom de voz calmo. Jogando o homem contra um dos sofás da casa.
Ele direcionou seu olhar para Francesco que já devolvia sua taça para o garçom. Francesco olhou enquanto Carlo esboçava um olhar diabólico. “Ah não” ele pensou enquanto seu primo se movia em sua direção com os braços abertos o envolvendo em um abraço de urso.
“Francesco!” – Carlo disse enquanto colocava o Roselini no chão e começava a lhe dar tapas gentis no rosto, seguidos por uma apertada em suas bochechas. É, esse era Carlo, um paquiderme por fora, mas um crianção por dentro. De todos os membros da sua família que compartilham a maldição do Vampirismo, Francesco pensava que Carlo era, sem dúvida, o mais humano.
“Ei primo! Quanto tempo. Já faz um ano eu acho.” – Disse Francesco ainda se recuperando do choque de ser esmagado pelo Puttanesca. – “A festa está sendo boa pelo que eu posso ver.”
“Ah meu bambino, os figurões se recusaram a nos receber. Disseram que só quando todos estivéssemos aqui que poderíamos subir. Nem sinal do Don, nem da cria dele. Falando nisso, o que você acha do Enzo?” – Perguntou Carlo.
“Nunca fomos muito próximos, mas ele é um homem de respeito, quando chegar a hora, ele será um bom Don. Mas todo esse mistério dos Anziani está me deixando preocupado, eu me lembro de uma época onde os Nonos eram mais diretos conosco.” – Respondeu o Roselini, seus olhos se focando na bela mulher de vestido preto e cabelos castanhos que se aproximava deles.
Francesco a conhecia bem. Aneta Miliner era uma das Vampiras mais perigosas que o Clã já produziu. Sua família, os Miliner, eram Giovanni dos Estados Unidos, eles são conhecidos pela sua falta de paciência e por serem os cobradores de impostos do Clã, utilizando as três moedas mais preciosas que os Membros trocam entre si: Favores, Sangue e Almas. Mas Aneta não era tão versada nas artes de Necromancia como Francesco e seu ramo da família eram, pelo contrário, ela era o tipo de pessoa que você manda quando precisa quebrar as rótulas dos joelhos de alguém. Os mais novos chamavam ela de “Fria e Calculista”, aparentemente isso tem a ver com um programa novo que as crianças veem hoje em dia.
“Primos… Boa noite.” – A senhorita Miliner falou enquanto estendia a mão para Francesco. O Roselini beijou gentilmente a mão de sua prima, era melhor não furar a etiqueta com essa aí. Depois disso ela fez o mesmo com Carlo que repetiu o processo. “Muito bom, estamos os três aqui. Acho que já podemos subir” – Continuou Aneta.
“Somos três?” – Francesco disse, se lembrando que o número estava aparecendo muito em sua Não-vida esta noite. Primeiro no convite, e agora. Fora isso, várias coisas possuíam múltiplos de três como a quantidade de meses que ninguém se via e o número de pessoas na mesa, vinte e sete exatamente.
“Isso é estranho, não é?” – A moça exclamou – “Esse número fica aparecendo, e eu tenho um mau pressentimento sobre isso. Por via das dúvidas, vocês estão armados?”
Francesco bateu levemente em seu blazer indicando que tinha uma pistola ali, obviamente silenciada, enquanto Carlo pôs a mão em seu bolso puxando um soco inglês. A Miliner acenou positivo com a cabeça e começou a se dirigir às escadas subindo para o segundo andar. Lá eles se depararam com uma grande porta dupla de madeira escura. A porta estava ornamentada com o antigo símbolo do Clã, da sua época de mercadores de Veneza. Miliner foi até a porta, mas Francesco sempre querendo ser cavalheiro abriu a porta para sua prima. É claro que o Roselini não era um tolo e isto não era um mero gesto de cavalheirismo, se havia alguém perigoso ali era a própria Aneta e todos estavam cientes disso. A moça sorriu para o primo, enquanto este se virava para Carlo e piscava um de seus olhos, ao abrir a porta.
“PUTA QUE O PARIU!” – Senhorita Miliner gritou ao entrar na sala de reuniões sem dar nenhum tempo para os outros dois reagirem, e foi aí que eles viram. Na cadeira do Don estava sentado Enzo, praticamente sem entender nada do que se passava com os convidados, mas seus olhos estavam fixados atrás dele, onde uma figura vestida em um sobretudo e com uma máscara de caveira parecia pairar.
“PRECURSOR DO ÓDIO! DERRUBEM ELE!” – O Puttanesca gritou à seus primos, empunhando seu soco inglês e disparando para dentro da sala. Havia muitas coisas que não podiam compreender dessa cena, a principal delas era como diabos um Precursor havia passado pelas defesas da mansão. Mas não tinham tempo para pensar nisso, a criatura de máscara com certeza estava ali para destruir Enzo.
Assim que Carlo correu para salvar o Giovanni em perigo, como se manifestada do próprio ar, uma mulher apareceu na frente dos três. Ela possuía feições como de uma espanhola. Nenhum dos primos tinha conhecimento de quem era essa figura, pior do que isso, ela surgiu na frente deles como em um piscar de olhos. “Celeridade” pensou Francesco, sua pistola em sua mão preparando para disparar na mulher. Ele disparou cinco vezes em um curto espaço de tempo, a mulher não desviou, ela simplesmente deixou as balas a atingirem, elas caíram no chão como se fossem feijões jogados contra uma pessoa.
O primeiro a chegar em distância corpo a corpo foi Carlo. A mulher misteriosa socou a parte de trás de seu braço, bem em seu cotovelo. Todos puderam ouvir o barulho horrível de um crack enquanto observavam o braço de seu primo dobrar para o lado contrário. Aneta entrou em Frenesi e pulou em cima da mulher, como uma leoa caçando um antílope. Infelizmente para a Miliner, essa coisa não era um antílope, assim que ela pulou, sua presa a prendeu em um estrangulamento e quebrou seu pescoço, é claro que para uma vampira isso não significava muita coisa, apenas alguns minutos e a utilização de vitae, e seu pescoço estaria novo em folha. A única coisa que passava pela cabeça de Francesco era “Morte Final”. O que quer que essa vampira fosse, subjugou dois dos mais fortes de sua família em um instante, enquanto ele desesperadamente tentava atirar nela, demorou três segundos para que ele notasse que a arma estava descarregada.
“CHEGA!” – A voz de Enzo Giovanni ecoou no recinto. – “Lorde Baskerville, faça sua irmã parar!” – Ele se referia ao Precursor do Ódio, ele não estava em perigo de ser destruído, ele e a criatura estavam… trabalhando juntos? Pelo menos foi o que o Roselini pensou. O Precursor olhou para ele e depois para a mulher que estava com seu joelho em cima da garganta de Aneta. Francesco percebeu que seus olhos eram iguais aos de uma serpente.
“Rosa… é o suficiente.” – O Precursor falou pela primeira vez, sua voz mais parecida como a de uma aparição do que de a de um vampiro. A mulher, aparentemente chamada Rosa, levantou seu peso do pescoço de Aneta. Ela retornou para o lado do homem da máscara e Enzo.
“Considerem-se com sorte.” – Enzo disse ajeitando seu terno – “São poucos os que enfrentam uma Lâmia e ficam não-vivos para contar a história.” – Os outros dois primos estavam começando a se regenerar no chão ainda, mas já era possível ouvir seus ossos voltando para o devido lugar.
“Enzo… o que está acontecendo? Qual o significado disso tudo? E onde está seu Senhor, Don Santino?” – As perguntas de Francesco eram muitas e ele gostaria de algumas respostas. Pelo menos a resposta do porquê aqueles dois vampiros estavam ali.
“Por favor, cumprimentem Lorde Baskerville e Rosalia, meus tios. Quanto a meu Senhor, receio que infelizmente ele tenha falecido.” – Disse Enzo em um tom melancólico. – “E antes que você sequer possa sugerir, não, não fui eu quem o matou. Uma nova era se inicia para o Clã da Morte, não mais lutaremos sozinhos contra a Camarilla, o Movimento e os Mortais. Nós nos tornamos aquilo que sempre fomos. Vida, morte e renascimento. Nós somos Hecata, as três faces da morte.”
Três faces da morte? Hecata? Tios? As respostas pareciam só trazer mais perguntas ao jovem Roselini. Utilizando toda sua força de vontade Francesco perguntou – “O Clã Giovanni não existe mais?”
Enzo sorriu com a inocência do rapaz – “Claro que os Giovanni ainda existem, primo. Nós somos parte dos Hecata, e eles estão incondicionalmente ligados a nós, afinal de contas nós somos uma das 3 faces. E agora eu quero fazer uma oferta a vocês três. Vocês ainda podem ser parte dessa família, há lugar para todos aqueles que descendem de Augustus, ou vocês podem dar ‘oi’ ao meu senhor.”
Francesco ouviu as palavras de seu primo mais velho. Eles podiam não gostar desses Precursores ou Lamiae andando por aí como se fossem da Família, eles podiam ter rancor pela morte de Santino, mas Enzo ainda era um Giovanni, assim como todos eles, não importando o quão diluído fosse o sangue. O Roselini se aproximou da cadeira onde Enzo estava sentado, se ajoelhando e gentilmente puxando sua mão direita para seus lábios enquanto sussurrava: “Don Giovanni.”
Por Yuri Ramos.