Vampiro 5ª Edição: Os Barqueiros do Caos, conto e organização (2º Lugar do I Concurso Literário V5)

Os Barqueiros do Caos, de Heidi Kundera, foi o conto 2º colocado no I Concurso Literário de Contos – Vampire (V5), promovido pelo grupo Vampire (V5) do Facebook. Além do conto, Heidi também criou a organização do título do conto e vocês podem conferi-la mais abaixo, logo depois do conto, para usá-la em suas crônicas de V5.

Os Barqueiros do Caos


Eu nem vi de onde saiu o primeiro tiro, mas o segundo veio à queima roupa. O cano do fuzil tão perto que eu podia sentir o cheiro de suor que emanava daquela farda. E a última coisa que vi antes do barulho ensurdecedor foi o ódio brilhando nos olhos do policial que mirava em mim.

“Então é isso. ” – Pensei – “Entrei pra estatística. Preto, favelado, dezessete anos. Na certa vão dizer que confundiram a garrafa de Coca-cola que eu tava levando pra casa com uma arma, ou alguma outra desculpa esfarrapada. ”

Mas, como nem pra morrer rápido pobre tem sorte nessa cidade, o tiroteio continuou sem mim. Meu executor foi caçar mais sangue pra saciar a sede do seu fuzil e me esqueceram ali, na calçada, agonizando, sentindo frio em pleno fevereiro do Rio de Janeiro, enquanto o sangue abandonava meu corpo.

Alguém mandou chamar “O rabecão, ou a ambulância. Que se foda! O que chegar primeiro! ”

Chegou uma ambulância. Longos quarenta e cinco minutos depois. Me tiraram às pressas da via pública, porque os moradores já estavam “começando a se alvoroçar”.

Dentro do veículo, o paramédico não precisou me examinar nem por cinco segundos:

– Já era. Não tem chance dele sobreviver.
– Vamos levar pros Barqueiros, então.
– Tá maluco, cara? Já é a segunda vez só nesse mês. Vão começar a desconfiar da gente.
– Desconfiar é o caralho! Os caras pagam bem. E o que não falta é corpo de indigente pra substituir esse aqui.
– Tô precisando da grana também. Bora lá entregar ele então.

E finalmente eu fiquei inconsciente.

Acordei não sei quanto tempo depois, me sentindo tão surpreso quanto confuso. A dor e o medo estavam de volta, mas agora tinha uma sensação muito, muito pior! Uma sensação que eu nunca havia experimentado antes e que me fazia querer gritar de desespero, angústia e ódio. Uma sensação da mais pura… fome.

– Boa noite, Minha Criança. Seja bem-vindo. Não se preocupe. Tudo ficará bem agora. Os Barqueiros já cuidaram de você.

Eu me levanto num sobressalto e percebo que tem alguém do meu lado. Na verdade, começo a perceber que eu “existo” para além do desconforto do meu corpo: Estou numa espécie de quarto hospitalar, pouco iluminado e sem nenhum outro móvel além da minha maca. Ao meu lado, uma mulher desconhecida.

Ela veste um jaleco azul-escuro, que parece “bom demais pra esse lugar”. Seus olhos me examinam de cima abaixo, com uma intimidade desconcertante. Eu tento reencontrar minhas palavras, em meio ao completo caos sensorial:

– Eu… o que? Quem é você? O que que eu tô fazendo aqui? Onde é que eu tô???
– Sim, com certeza! Exatamente. – Ela responde, parecendo um pouco entediada. – Mas tá ótimo! É isso mesmo! Agora você tem que se concentrar na parte importante. Presta atenção!

Embasbacado, eu simplesmente me calo e “presto atenção”. Será que ela entendeu minhas perguntas? Será que ela simplesmente as ignorou? Ou será que a gente teve uma longa discussão entre as minhas perguntas e essa resposta dela, e eu simplesmente não me lembro? É tudo tão confuso! E eu estou com tanta fome! Mas vamos lá! Foco!

– Daqui a uns dois minutos vai entrar um cara aqui. Ele é o pior enfermeiro desse lugar de merda, mas vai fazer você se sentir bem melhor. Não se preocupe. Ele é um babaca completo! Eu vou distrair ele, você morde, e para de morder quando eu fizer esse sinal aqui ó (ela faz um sinal de “ok” com a mão). Depois disso, nossa conversa vai ser bem mais produtiva.

Eu fico alguns segundos calado. Dessa vez eu tenho certeza de que ouvi tudo que ela disse. Mas não faz nenhum sentido! Ela está sugerindo que eu…

– O que? Morder? Do que você tá falando? Eu não vou…
Calado!

Eu quero continuar meu argumento, eu até tento, mas de alguma forma eu simplesmente me vejo sem palavras.

– Não dá tempo de discutir sobre isso agora. Ele está chegando. Deita de novo.

Eu deito novamente na maca, me sentindo um daqueles bonecos de marionete daqueles vídeos malfeitos, que o titeriteiro nem se dá ao trabalho de esconder as mãos.

Ela se esconde atrás da maca. Um enfermeiro se aproxima da porta. Talvez eu esteja um pouco sugestionado pelas últimas palavras da minha visitante misteriosa, mas esse cara tem jeito de babaca mesmo! A forma de andar, o chute que ele dá na minha porta (em vez de abrir com a mão) o desdém que ele me olha (oops! Acabo de perceber que estou com os olhos abertos!).

–Ahhh, não! De jeito nenhum! Meu plantão tá cheio hoje e você não vai acordar agora não! – Ele diz, bastante contrariado em me ver “acordado”. E já tira do jaleco uma seringa de aparência duvidosa, contendo um líquido mais duvidoso ainda.

Eu não sei o que fazer! A mulher misteriosa quer que eu morda esse cara, o que é uma ideia totalmente doida! Mas deixar ele espetar essa agulha nojenta em mim é igualmente impensável!

Em meu estado de pânico, eu nem percebi que Ela já tinha fechado a porta por dentro e agora se aproximava do enfermeiro. Ela fica de frente pra ele, e simplesmente diz:

Pode ficar paradinho agora.

O cara congela. Tipo estátua mesmo. Ela olha pra mim, impaciente. Ela quer que eu morda esse cara mesmo? Eu sinalizo com a cabeça “De jeito nenhum!” Então ela revira os olhos e abre um sorriso:

– Sabe… esse babaca aqui é movido pela preguiça. Ele chama a preguiça dele de “esperteza”, mas a gente sabe que se ele fosse esperto mesmo ele não tava trabalhando nessa lata de lixo aqui, por um salário ridículo, mantendo os pacientes desacordados com droga falsificada. Ele é preguiçoso, e foi por isso que eu sugeri que ele ficasse aqui, paradinho. Estou apenas ajudando ele a alcançar seu objetivo, que é fazer o mínimo possível. Já eu e você (ela se aproxima de mim e sussurra no meu ouvido): nosso pecado capital é a gula. E qual melhor objetivo pra um guloso do que uma boa mordida?

­As palavras “boa mordida” se enterram imediatamente no meu cérebro, como se elas fossem a única coisa importante em todo o universo. Eu tenho fome, e por mais que eu não queira admitir, o cheiro desse enfermeiro é irresistível: eu tenho fome do sangue dele.

A fome, o medo, o cheiro, o pescoço, e as palavras: “boa mordida”. Isso é mais do que minha vontade consegue suportar, e, quando me dou conta, já estou com os dentes cravados no pescoço do enfermeiro.

Ela continua de frente pra mim, me encarando, inabalável, até que de repente faz o “sinal” e eu, obedientemente, interrompo minha… “alimentação”?

– Muito bom! Quase pronto! Mas antes, você precisa fechar essa ferida. É só passar a sua língua por cima desses buraquinhos. Ah, bem melhor agora. Vem vamos embora daqui.

Ela me guia pelos corredores. Eu não reconheço esse hospital. Mas também… acho que minha memória sobre hospitais se resume a visitas ao pediatra num postinho do bairro quando eu era criança e depois de adulto uma ida à UPA, onde esperei 4 horas na fila pro atendente me dizer que eu tava com virose e me mandar pra casa com uma injeção de Benzetacil na bunda.

Ninguém interrompe nossa saída.

Eu apenas acompanho em silêncio. Não sou um cara burro e as coisas estão começando a fazer um pouco de sentido demais na minha cabeça:

— 1) Eu com certeza deveria estar morto (mas, querido, quem disse que você não está? – de quem é essa voz?).
— 2) Vamos fingir que essa mulher me “obrigou” a morder aquele cara. Beleza. Mas eu não posso fingir que beber o sangue dele não foi a melhor sensação que eu já experimentei em toda minha vida. Nem que meus dentes crescem “naturalmente” na hora de uma “boa mordida”.

Quando percebo, já estamos dentro do carro dela, saindo do estacionamento.

– Agora que você já se alimentou e está em condições de assimilar informações, eu posso responder suas perguntas. Quais eram mesmo? O que? Quando? Onde? Por que?
– Esquece! Acho que nenhuma daquelas perguntas faz sentido agora.

Ela me lança um olhar e um sorriso satisfeitos, ignorando o fato de estar ao volante, olhando pro carona. Eu penso em pedir pra ela prestar atenção no trânsito, mas de alguma forma isso não parece tão importante.

– Você tem perguntas mais importantes pra fazer, então?
– Acho que não tenho muitas perguntas. Tenho algumas hipóteses. Mas eu realmente me sentiria menos idiota se você simplesmente me confirmasse elas sem eu ter que perguntar. Porque até as palavras que rodeiam essas hipóteses parecem ridículas demais pra serem proferidas.
– “Palavras ridículas”… que fofinho! Finalmente ganhei um sisudo! Sem julgamentos! Eu sabia que ia gostar de você!
– Sisudo? Que palavra é essa?
– Aff! Crianças… Não se preocupe. Você vai ter tempo de sobra pra procurar essa palavra no dicionário. O que o importa é que minhas pesquisas sobre narcisismo pós-vida finalmente vão deslanchar agora que eu tenho você.
– Você… me tem?
– Achei que tínhamos passado da fase de perguntas idiotas. Olha, temos cinco minutos pra chegar, então capricha, porque quando eu estacionar esse carro, a gente inaugura uma espécie de “aprendizagem por observação”, só que num universo onde os indivíduos preferem que você observe do que aprenda.
– Huh… – penso em contar pra ela que isso não é nenhuma novidade na minha vida, vindo da onde eu venho. Mas tenho 5 minutos, então vamos fazer valer! – Beleza, se você vai me fazer dizer, eu digo: Aparentemente virei um vampiro, certo? Mas pra onde você está me levando e o que você quer comigo?
– Ela faz uma expressão cômica de surpresa e medo enquanto vira o volante abruptamente (de verdade, no meio da Av. Brasil)
– Um vampiro? Socorro! Polícia! Caça-Fantasmas! Alguém me ajude!
– Ela tá debochando de mim. – Uma voz volta a sussurrar no meu ouvido. ­– Vamos terminar de virar esse volante de vez! Transformar esse carro numa gloriosa homenagem ao “Mad Max Fury Road” versão Avenida Brasil!

A “voz” está irritada, mas eu resolvo botar uma “poker face” e fingir que não me abalei nem achei nenhuma graça. Na verdade, finjo que absolutamente nada aconteceu.

Ela me olha (pela primeira vez como se estivesse olhando pra alguém, não pra alguma coisa):

– Ok. Acho que você vai vingar. Aperta o cinto, que lá vem história!

Apesar de me mandar apertar o cinto, ela na verdade diminui a velocidade. Percebo que ela quer mais tempo para, finalmente, me dizer alguma coisa.

– Você já deduziu a questão de ser vampiro, então, blá blá blá… beber sangue, fugir do sol, etc. Relaxa, que nessa parte eu vou te ajudar pelos próximos vááários tempos. Agora vamos as partes realmente importantes. Vamos falar sobre quem você é. Ou melhor: primeiro, a quem você pertence. Em primeiro lugar, a mim, claro. Em segundo, aos Barqueiros.
– Ahnn… ok? E por que isso é mais importante do que “blá blá blá… beber sangue, e fugir do sol”?
– Essa era a única pergunta que eu queria que você fizesse! Minha Criança, nós somos imortais, mas, na maioria das vezes perecemos mais cedo do que se tivéssemos vivido vidas normais (não seu caso, claro, porque você já tava quase… uhh…) bem, não importa! Enfim, mas é exatamente isso!
– “Isso” significando que o fato de eu ser imortal não significa que eu não possa perecer?
– Exatamente! Mas por “perecer” eu realmente quero dizer que o mais provável é que você seja destruído. Mas é por isso que estamos aqui e temos uns aos outros.
– Uns sendo nós e os outros sendo… os Barqueiros?
– Exato! Só que não, porque agora uns é só você. Ao te abraçar eu me tornei oficialmente uma Barqueira. Mas você é minha Criança, então acho que dá no mesmo.

Eu percebo que ela está cada vez mais relaxada com essa conversa (e talvez acelerando um pouco mais, de novo), mas eu ainda preciso de repostas antes de chegarmos à terra da “observação silenciosa” …

– Ótimo! Então, já que eu sou “praticamente um Barqueiro”, que tal você me dizer o que significa ser “Barqueiro”?
– Calma. Presta atenção, porque isso é muito importante. Eu vou te dizer agora, em ordem de prioridades, quem você é: Em primeiro lugar, claro, você agora é um vampiro. Em segundo, você é um Malkaviano (relaxa que vamos ter muito tempo pra eu te explicar essa parte). Em terceiro lugar, você é um agregado dos Barqueiros. Em quarto e último lugar, você é um anarquista.
– Peraí, quarto e último lugar? Não sobrou nem uma vaguinha nessa ordem de prioridades aí pra eu ser “simplesmente eu”?
– Hahahaha! Você é hilário! “Simplesmente eu”. Ha! Impagável! – Ela realmente gargalhou com a minha pergunta. – Enfim, voltando aos Barqueiros: Nós somos uma espécie de organização vampírica secreta, espalhada por todas as capitais e pelas principais cidades do Brasil, com a missão principal de salvar vítimas da violência policial, assim como você. Diferente da maioria dos vampiros, que escolhem a dedo o humano que pretendem abraçar, nós só temos um critério: abraçamos inocentes, vítimas da brutalidade policial. Pode ser literalmente qualquer um, tipo você! Por isso o nome “Barqueiros”, entendeu? Somos aqueles que te dão carona na passagem entre a vida e a não-vida.
– Então vocês são uma espécie de… organização… humanitária? Salvando a vida de inocentes?
– De jeito nenhum. Em primeiro lugar, sua vida já acabou. Você está morto, chuchu. Em segundo… bem… Nós temos nossos próprios objetivos e engrossar nossos números é uma parte essencial desses planos. Mas você é um novato, então nossos “planos maiores” ainda não são da sua conta. Se você provar seu valor entre nós, talvez você venha a conhecer melhor nossa missão. Mas já aviso que a concorrência é grande. Entre nós, temos membros de praticamente todos os clãs e filiações. Vampiros independentes, Anarquistas e até mesmo alguns da Camarilla. Nossa força está no fato de que as capitais brasileiras são um completo caos, especialmente o Rio de Janeiro, então nós simplesmente existimos bem debaixo do nariz de qualquer “autoridade”: desde governos mortais até… bem… nossos pseudo-governantes.

Ela estaciona o carro em frente a um casarão semiabandonado no Catumbi.

– Chegamos. Hora do gato comer sua língua. Guarde suas perguntas, comentários e dúvidas pra depois. Concentre-se apenas em parecer útil e não me envergonhar.

Eu a sigo em silêncio e a primeira coisa que me chama atenção quando entramos no salão mal iluminado é a quantidade de crianças. Depois, me surpreendo reconhecendo alguns rostos. Foram casos que ficaram famosos na mídia. Entre eles estão:

Cláudia Silva (que foi arrastada por uma viatura), Evaldo dos Santos Rosa (cujo carro levou cento e onze tiros) e Maria Eduarda Alves da Conceição (a menina de doze anos que morreu dentro da escola, em Acari). Isso é loucura! São todos vampiros agora?

E é só então que cai a minha ficha: eu também sou um vampiro. Ou melhor, um “vampiro-malkaviano-barqueiro-anarquista”. O que quer que essas palavras signifiquem. Talvez minha morte tenha se tornado um caso famoso, ou talvez minha mãe tenha chorado sozinha em cima do meu caixão (que na verdade tinha algum indigente dentro).
Mas nada disso importa mais. Estou do outro lado vida. Atravessei o rio com os Barqueiros. É hora de tentar uma sorte melhor na margem de cá!

“Não vamos dar mole dessa vez” – Diz a voz que está se tornando cada vez mais familiar dentro da minha cabeça.

FIM

Por Heidi Kundera

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