Não é incomum encontrarmos em outras mídias situações e histórias que pensamos dar uma boa sessão de RPG. Às vezes um determinado jogo muda de mídia e tem tanto sucesso quanto na original. O Lenda dos Cinco Anéis é um bom exemplo disso. Hoje vamos fazer uma mini-adaptação de um boardgame para FATE Básico.
O jogo em questão será o Mascarade, do Bruno Faidutti, trazido para o Brasil pela então Redbox, hoje Buró Brasil. Trata-se de um jogo de blefe, em que todos estão num baile de máscaras e, por isso, não se sabe exatamente quem se é. E se ninguém sabe quem é você, você pode ser qualquer um!
No boardgame, cada jogador vai trocando de personagem e vai anunciando ser um ou outro, de forma que consiga acumular primeiro treze moedas. É um jogo que vai de dois a treze jogadores, então é um fantástico party game. Porém não estamos aqui para tratar do boardgame, e sim para adaptá-lo para RPG.
Baile de Máscaras
Há um ar de mistério num Baile de Máscaras. Dissimulados atrás das máscaras, os juízos de valor e preconceitos ficam nublados, afinal, estão cobertas as aparências. Ao mesmo tempo, detrás dessas mesmas máscaras, todos buscam seus próprios interesses. O Baile de Máscaras então tem seus próprios aspectos, aspectos de jogo:
• Se ninguém sabe quem é você, você pode ser qualquer um!
• Intermináveis jogos de interesses.
Eventualmente pode haver mais aspectos em jogo. Depende de porquê haverá um Baile de Máscaras, de qual época está se passando o jogo e qual o gênero do seu jogo. Isso pode ser bastante maleável. Pode ser um Baile de Máscaras intergalático num asteroide que ficou preso na órbita de um planeta ou um Baile de Máscaras em plena fantasia medieval. Como estamos adaptando Mascarade, dá-se a entender pelas ilustrações que se trata de um tradicional Carnaval de Veneza. Os festejos duravam dez dias e a nobreza, bem disfarçada, se misturava com o povo nos bailes dados nos grandes salões e nos desfiles pela cidade. Daí que também são aspectos de jogo:
• Dez dias sem classes, sem nobres nem plebeus.
• Ruas em festa.
Isso já deve ser o bastante para caracterizarmos o cenário. Sintam-se à vontade para adicionar ou subtrair aspectos a gosto.
Os Mascarados
Em Mascarade, há um número considerável de personagens, contando com a expansão que ainda não foi lançada aqui no país nós temos: Espiã, Bispo, Bobo, Inquisidor, Juiz, Camponeses*, Rainha, Rei, Bruxa, Trapaceiro, Viúva, Ladrão, Alquimista, Atriz, Cortesã, Apostadora, Titereiro, Maldito, Mecenas, Mendiga, Necromante, Princesa, Sábio e Usurpador. Cada um deles tem um poder que, para nossa adaptação, pode inspirar Façanhas diretamente desses conceitos básicos. Claro, é possível se inspirar neles para criar nossos personagens, mas definitivamente não estamos presos a eles.
*Em Mascarade há sempre dois Camponeses em jogo.
Cada personagem terá cinco aspectos, como de praxe: um Conceito que envolva necessariamente o papel social ou profissão do personagem; um Desejo que expressará o que o personagem quer encontrar ou conseguir durante o Baile de Máscaras; e três aspectos a serem preenchidos seguindo as três fases.
O Conceito deve trazer o papel social do personagem e deve estar enriquecido com alguma situação ou caractere de personalidade: Nobre Don Juan, Camponês Depauperado, Chefe da Guilda dos Ladrões, Atriz Conhecida por sua Beleza, etc.
O Desejo deve trazer um objetivo concreto do personagem a ser atingido durante o Baile de Máscaras. Pode ser escrito da seguinte forma: Eu [verbo no futuro] [alvo]. Então poderíamos ter como bons desejos: Eu fugirei com a assistente do alfaiate, Eu convencerei o rei a me ajudar, Eu roubarei os vasos da Coroa, Eu conquistarei o Duque de Mont’Alverne. Alguém poderia objetar que esses aspectos seriam muito facilmente invocados, mas, além deles serem também muito facilmente forçados, os personagens estarão apostando suas últimas moedas para alcançar esses objetivos no curto espaço de tempo de um Baile.
Fazer as três fases nessa nossa adaptação será imprescindível, senão os personagens terão pouca ou nenhuma ligação e não poderão se influenciar mutuamente. Se você não lembra bem das três fases, iremos recapitular:
Fase Um: Uma aventura anterior, algo aconteceu e você decidiu fazer alguma coisa quanto a isso. Foi vitorioso? Perdeu? Quais as consequências? Escreva um pequeno relato e tire um aspecto, depois passe o relato para pessoa ao lado.
Fase Dois: Caminhos se cruzam, quem recebeu seu papel irá lê-lo e vai escrever como o personagem dele interferiu nisso, complicando, ajudando ou ambos. Ele tirará um aspecto sobre o personagem dele e passará ambos os relatos para a pessoa ao lado.
Fase Três: Caminhos se cruzam de novo, a terceira pessoa fará como na fase anterior, dizendo como seu personagem interferiu naquela história nova e tira daí um outro aspecto.
Dessa forma, os personagens estarão entrelaçados por relações prévias, amistosas ou não, que influenciarão durante o jogo. Se tiver menos de 3 jogadores, pense em adicionar um aspecto de Dificuldade e diminuir uma das três fases antes de simplesmente por aspectos livres.
Quanto a Perícias, seguiremos com as de FATE Básico e com a pirâmide padrão. Alternativamente, pode-se distribuir 20 pontos como se queira entre elas, como em Ngen Mapu. A meu ver, as perícias mais importantes serão as sociais, como Comunicação, Empatia, Enganar e Vontade, embora não seja difícil imaginar Desejos que façam ser importantes perícias físicas.
Porém, como se trata de um Baile de Máscaras, esconder a identidade será parte importante do jogo. Daí que, além das Consequências, haverão três Condições únicas, duas momentâneas e outra estável, são elas: Exposto/a, Honesto/a e Desmascarado/a, respectivamente. Explicaremos como isso funcionará logo depois de falarmos das Façanhas.
Chegamos então nas Façanhas. Como de praxe, três façanhas e três pontos de recarga. Os jogadores podem optar por aumentar uma façanha diminuindo um ponto de recarga, mas também o inverso, tendo, no mínimo, uma façanha e ficando com no máximo 5 pontos de recarga. Essa única façanha obrigatória deverá ser a façanha Eu sou o/a [papel social/profissão]. O Narrador deve prover uma lista de façanhas de papéis sociais e profissões possíveis, além daquelas criadas pelos jogadores que recebam essa nomenclatura. Isso porque, para simular a mecânica de blefe do boardgame, essas façanhas serão acessíveis a todos os personagens. Explicaremos como isso se dará um pouco mais adiante.
Segue algumas ideias de façanhas para essa lista, inspiradas nos poderes do jogo básico original e algumas tiradas direto do FATE Básico:
Eu sou a Espiã: Pode usar Percepção no lugar de Empatia para descobrir aspectos de alguém através de observação.
Eu sou o Bispo: Pode usar Contatos no lugar de Recursos para Superar adversidades que o dinheiro pode pagar.
Eu sou o Bobo: Ao expor alguém, apague sua condição de Exposto.
Eu sou o Inquisidor: Se você expôs alguém, recebe +2 para Criar Vantagem e desmascarar, além da invocação livre por ter causado a condição.
Eu sou o Juiz: Uma vez por cena, quando alguém for Exposto na sua presença, você pode fazer uma ação de Superar com Comunicação contra o número de tensões resultantes da ação de Criar Vantagem que a expôs. Se for bem-sucedido, o personagem não é Exposto e você recebe o valor resultante de tensões como modificador em todas os testes contra esse personagem até o fim da sessão
Eu sou o Camponês: Uma vez por sessão, se outro Camponês estiver no mesmo lugar que você, receba +2 em todos os testes até o fim da cena.
Eu sou a Rainha: Receba +2 para Superar com Recursos.
Eu sou o Rei: Sua majestade o protege de insinuações idiotas. Você pode usar Recursos para Defender no lugar de Vontade quando for provocado.
Eu sou a Bruxa: Sua capacidade de enfeitiçar pessoas permite usar Conhecimentos no lugar de Comunicação para Criar Vantagem e fazer pessoas ficarem suscetíveis às suas ideias.
Eu sou o Trapaceiro: Receba +2 para Criar Vantagem com Enganar sobre alguém que já tenha acreditado em uma de suas mentiras anteriormente nessa sessão.
Eu sou a Viúva: Receba +2 para Criar Vantagem com Comunicação quando contar sua triste história de vida.
Eu sou o Ladrão: Receba +2 para Superar com Furtividade quando estiver fugindo com o fruto do seu roubo.
O Jogo de Blefe
A grande mecânica de Mascarade é o Blefe. Como normalmente ninguém sabe com certeza o personagem de outra pessoa, saber quando blefar é o que garantirá que você consiga atingir seu objetivo de acumular riqueza.
Para a nossa adaptação, acumular riqueza é demasiadamente simplório. Por isso, todos os personagens têm um aspecto que os instigam a buscar algo num curto espaço de tempo. Todos eles estão dispostos a se passarem por outras pessoas para conseguirem o que querem.
A mecânica do boardgame funciona assim: quem diz ser um personagem e não é contestado pode usar seu poder. Se uma outra pessoa também disser ser o personagem, ambas mostram suas cartas, quem estiver blefando deve pagar uma moeda ao tribunal e quem for de fato o personagem usa o poder dele. Se por qualquer motivo você abrir sua carta imediatamente antes da sua vez, você não pode anunciar ser o personagem que mostrou, é preciso fazer uma jogada de troca ou não. A mecânica que usaremos para mimetizar isso será esta:
– Com uma ação de Criar Vantagem com Enganação, um personagem pode criar um aspecto homônimo à façanha que ele deseja utilizar. A dificuldade para isso segue a Escala abaixo.
Tamanho do Grupo | Dificuldade |
Grupo Pequeno (até 3 pessoas) | Razoável (+2) |
Grupo Mediano (até 10 pessoas) | Bom (+3) |
Grupo Grande (até 15 pessoas) | Ótimo (+4) |
O público é algo importante. Pode ser uma pessoa, um pequeno grupo, uma multidão. Não importa, alguém tem que acreditar que você é quem diz ser. É claro que, se dentro de um salão um personagem diz ser o Juiz para um grupo, minutos depois diz ser o Bispo para o outro e meia hora mais tarde ele se apresenta como o Rei, ele está mais perto de ser Exposto e Desmascarado. Para cada blefe dentro de uma mesma cena depois do primeiro, adicione +1 na dificuldade. Caso a pessoa que o personagem deseje fingir ser esteja presente na cena, a oposição é ativa com Vontade.
Tendo sucesso e gastando um ponto de destino, enquanto ele permanecer com esse aspecto, ele poderá usar a façanha como se fosse sua até o final da cena. Importante salientar que para isso, é preciso haver algum público a ser enganado. Naturalmente, se passar por outras pessoas é algo arriscado. Aqui que explicamos como funciona as condições Exposto, Honesto e Desmascarado.
Para Desmascarar alguém é preciso que o personagem esteja previamente Exposto. Expor alguém pode ser feito com uma ação de Criar Vantagem adequada ou ser fruto de uma falha. Desmascarar alguém necessariamente é uma ação de Criar Vantagem, se acontecer dentro de um Conflito, o personagem Desmascarado imediatamente cede; se acontecer dentro de Disputa, imediatamente o personagem a perde. Para apagar a condição de Desmascarado o personagem terá que conseguir trocar de fantasia de alguma forma. Se um personagem for Desmascarado e não estiver se passando por alguém que não é, ele recebe a condição Honesto, com duas invocações livres para si – não para quem o desmascarou. Quem desmascarou alguém que não estava blefando não recebe nenhuma invocação livre por causar a condição Honesto, nem Desmascarado.
Alguém pode seguir sustentando seu blefe mesmo estando Exposto, porém, se nessa tentativa ele for Desmascarado, deverá marcar todas suas Caixas de Estresse restantes e lidar com a situação praticamente desamparado. Quem causou a condição Desmascarado recebe uma invocação livre como de praxe.
Estabelecendo Oposição
Esse será um momento importante que, para funcionar bem, deve ser feito após a criação dos personagens. É muito importante que os jogadores criem bons aspectos de Desejo, pois ele será o indicativo do tipo de jogo que eles querem jogar, bem como o sinal que o Narrador estará buscando para estabelecer as oposições.
Tendo em vista o que cada personagem deseja e irá arriscar tudo para conseguir, o Narrador poderá preparar Locais onde possivelmente os personagens irão. Alguns locais mais típicos podem ser: Salão de Festas Público, Recepção do Palácio Real, Desfile, Praça Maior, etc. Lugares de acesso público – ainda que sejam privados – onde bastante gente possa se aglomerar.
Dois ou três aspectos para cada um desses locais deve ser o bastante. Se você achar que isso é pouca informação, adicione alguns valores para cada um desses aspectos. Talvez a Recepção do Palácio Real tenha uma Guarda do Rei Ostensiva (+3) e Harpias por toda parte (+2). O mais importante para definir nesse passo é: que personalidades estão ali. Isso deve ser um segredo para os jogadores. Eles não devem saber que o Juiz está na Recepção do Palácio Real. Isso porque, ao tentarem passar por uma das personalidades presentes, eles terão uma resistência ativa.
Ao definir quais personalidades estão em quais lugares, fuja do óbvio. É um Baile de Máscaras, as pessoas estão indo para lugares inusitados pois elas finalmente podem fazê-lo. Por o Rei na Praça Maior é mais interessante que no Palácio Real. Cada uma dessas personalidades têm pelo menos dois aspectos: um Desejo, como os personagens dos jogadores e que podem, eventualmente, ser incompatíveis com os Desejos deles; e uma Máscara, que será a forma como esse personagem age, seu comportamento. Um ou dois aspectos livres podem ser adicionados, bem como perícias ou mesmo façanhas, de acordo com a relevância da personalidade como oposição aos jogadores.
Exemplo de Personagem, Local e Oposição
Para finalizarmos essa mini-adaptação, vamos dar um exemplo de cada um dos elementos importantes para o jogo. Por brevidade, usemos as opções mais simples e enxutas.
Otávio decide preparar seu personagem. Ele quer que seja alguém que está próximo da nobreza e da burguesia, mas não é um nobre, nem burguês. Talvez ele pudesse trabalhar dentro dos palácios e saber de tudo que acontece lá dentro. Otávio decide então que seu aspecto de Conceito será Fiel Mordomo do Palazzo Grassi. Ele precisa de um Desejo, algo que ele tem que cumprir durante o Carnaval. Como ele é um mordomo fiel, decide que seu Desejo será uma incumbência de seus patrões: Eu impedirei que Signorina Adelasia se envolva com mequetrefes. Ele escolhe então suas perícias: Percepção Ótima (+4); Comunicação e Conhecimentos Bons (+3); Empatia, Enganar e Vontade Razoáveis (+2); Provocar, Atletismo, Furtividade e Ofícios Regulares (+1). Isso parece refletir bem as aptidões de um bom mordomo. Para finalizar, ele define sua Façanha obrigatória Eu sou o Mordomo: Quando Criar Vantagem com Comunicação, trate a resolução resultante, que não seja um Sucesso com Estilo, como se fosse um grau melhor. Falhas são Empates, Empates são Sucesso e Sucesso são Sucessos com Estilo. Estabelecida essa façanha, Otávio opta por não ter nenhuma outra e ter 5 pontos de recarga em vez de 3. O mordomo se chamará Acario.
Criado nosso personagem, podemos pensar em Locais onde Acario possivelmente terá que passar para garantir seu Desejo. Dado seu Desejo, serão Locais onde a Signorina Adelasia passará. Um deles pode ser o Baile da Guilda dos Gondoleiros.
A guilda dos Gondoleiros sempre dá um baile aberto no Campo San Tomà, o maior depois da Piazza San Marco. Uma Banda Completa Toca o Baile e a Praça É Tomada pelo Povo. É sabido que Esse É o Lugar para Encontrar Amantes.
Agora, é preciso distribuir as personalidades nos Locais. Podemos por no Baile da Guilda dos Gondoleiros um Trapaceiro que sirva de nêmesis para o Desejo de Acario.
O Trapaceiro sabe que os abastados aproveitam o Carnaval para viverem aventuras. Ele sai às ruas apenas esperando a oportunidade de fisgar um peixe grande. Seu Desejo é Seduzir uma Moçoila Rica e sua Máscara é uma Fala Mansa e Sedutora. Como perícias ele terá Enganação Boa (+3), Empatia Razoável (+2) e Comunicação Regular (+1). Ele terá também a façanha Eu sou o Trapaceiro, já descrita.
Pronto, Acario tem uma oposição circunstancial ao seu Desejo. Ela não precisa ser a única, pode haver um Ladrão que quer roubar o colar de pérolas de Adelasia, especificamente, ou um Juíz que precisa do apoio dos Grassi. Quão mais específica e menos circunstancial for a oposição mais completa deve ser a ficha do NPC.
Disclaimer Final
Esta adaptação ainda não foi testada de nenhuma maneira. Como o FATE tem regras modulares já bastante utilizadas de diversas formas, tudo indica que o que foi proposto aqui funcionará perfeitamente. Nos personagens, há alguma inspiração no Desejo do Coração de Loose Threads. Na oposição há inspiração direta de Desejo e Máscara de Ngen Mapu. No jogo de blefe é onde mais precisa-se de teste. Talvez gastar um ponto de destino para assumir uma personalidade seja custoso demais e isso iniba os jogadores de entrar no blefe. Talvez ser Desmascarado seja muito punitivo também, eventualmente tirar a regra de marcar todas as caixas de estresse ou então mantê-la, mas não fazê-los perder imediatamente Disputas ou ceder Conflitos em andamento. Enfim, são coisas a serem testadas, avaliadas e readaptadas. Transpor mecânicas de uma mídia para outra é desafiador e instigante e a ideia aqui foi mostrar que é possível.
Dado esse pontapé, qual boardgame você adaptaria para RPG? Qual mecânica parece mais ser mais difícil de transpor de uma mídia para outra?
Por Yuri Bravos
Equipe REDERPG