Fichas de personagens de RPG podem ser um amontoado de números e palavras que buscam descrever as características desses personagens, de forma que os jogadores traduzam como seus personagens agem e o quão bem eles conseguem se virar diante dos desafios do jogo. Muitos jogadores acabam gastando bastante tempo fazendo cálculos, colocando valores altos nos atributos mais desejados e montando combos com esses números através de vantagens, perícias, equipamentos e o que mais o sistema permitir.
O que transforma esses números e palavras em uma pessoa real, dentro do universo do jogo, são elementos mais subjetivos e menos matemáticos, como o background do personagem. No entanto, é comum vermos jogadores deixarem essas características de lado, já que, dependendo do sistema usado, elas pouco ou nada influenciam nas rolagens de dados e nas chances de sucesso do personagem.
Em jogos com uma pegada mais narrativista, como é o caso de Chamado de Cthulhu, o background ganha um peso maior, ainda que ele também não tenha muita relevância matemática. Quando um personagem tem uma história bem descrita, um círculo social definido e coisas que ele se apega, o jogo se torna muito mais rico, já que todos esses elementos podem ser usados para descrever, inclusive, o sofrimento e a decadência do personagem. Afinal, quando se trata de Chamado de Cthulhu, coisas que um personagem ama servem, principalmente, para serem arrancadas dele, enquanto sua mente naufraga na insanidade.
Os dois livros básicos de Chamado de Cthulhu 7ª Edição – Investigator’s Handbook e Keeper’s Handbook – recomendam que o jogador descreva em sua ficha de personagem pelo menos uma de seis categorias de seus antecedentes (backstory): “Descrição Pessoal”, “Ideologia/Crenças”, “Pessoas Importantes”, “Lugares Relevantes”, “Posses Valiosas” e “Características”. Estes elementos ajudam o jogador a interpretar o personagem e a forma como ele se relaciona com o mundo, tornando-o mais real e fazendo a história ser mais significativa. Da mesma forma, enquanto o personagem vai perdendo sanidade, estes elementos e a ligação com eles vão descrever o quanto o personagem está se desprendendo da realidade e deixando de dar importância a coisas que antes tinham tanto valor. Além disso, é possível usar estes elementos para recuperar pontos de sanidade, o que, por si só, já torna os antecedentes um recurso bem valioso.
A Descrição Pessoal tem a ver com a aparência do seu personagem. Adjetivos como “elegante”, “pálido”, “musculoso” e “robusto” dão uma boa dica sobre quem seu personagem é, a importância que ele dá a sua própria aparência, a forma com que outros personagens o enxergam ou reagem a ele, etc. Essa descrição não precisa se limitar apenas a traços físicos, mas também a características de personalidade que impactam na forma com que o personagem se apresenta. Aí aparecem termos como “tímido”, “pedante”, “desajeitado” e “glamoroso”. O jogador pode se basear nessa descrição para “fazer o roleplay” de forma mais coerente, seja nos momentos em que o personagem está no domínio de si, seja quando a insanidade se abate sobre ele e ele abandona seus traços. O personagem que era musculoso pode não ver mais sentido nos exercícios físicos e emagrecer. O personagem pedante pode levar a arrogância ao extremo e se tornar uma pessoa impossível de se relacionar.
Ideologias e Crenças são verdades em que seu personagem acredita, diretrizes que norteiam suas escolhas e caminhos no cotidiano e na vida como um todo. Dependendo da época em que seu jogo se passa, é possível que esse jogo de valores caia na disputa Fé x Ciência, com personagens céticos que só dão valor ao que o método científico comprova e personagens crentes numa realidade invisível que nos cerca e que não é limitada pelas leis da Física. Mas nada impede que seu personagem não entre nesta disputa. Enquanto o mundo discute se Deus existe ou não, você está muito bem crendo apenas no dinheiro em sua conta bancária ou nas balas no tambor de seu revólver. Seja qual for a sua verdade pessoal, esteja certo de que o contato com o Mythos fará seu personagem questionar tudo em que acredita, e quando os pilares internos são atacados, a mente desmorona facilmente.
“Nenhum homem é uma ilha” e seu personagem também não deve ser. O passado de seu personagem foi construído com a ajuda de outras pessoas que marcaram sua vida e que servem de porto seguro. Pessoas Importantes podem ser os pais, filhos, amigos, parentes, um mentor espiritual, um professor do passado, alguém em quem seu personagem confie, alguém a quem ele sempre recorra na hora de fazer algo reprovável, ou para te acompanhar ou para te impedir. E esta ligação pode vir pelos mais diversos motivos. Um ensinamento relevante, uma dívida ainda não paga, uma experiência vivida juntos, um sentimento de remorso, de gratidão ou até de idolatria. Na hora em que seu personagem se vir diante dos horrores escondidos e nada mais fizer sentido, ele sabe que pode recorrer a essa pessoa, nem que seja apenas para recuperar o senso de realidade. O que deixa esta pessoa numa posição bem desconfortável: um surto psicótico não pouparia nem mesmo seu melhor amigo de infância. Como seu personagem reagiria ao voltar a si, após um lapso de consciência, e ver suas próprias mãos sujas com o sangue do cônjuge amado?
Os Lugares Relevantes para seu personagem dizem muito sobre ele, pois são locais onde sua história aconteceu ou está acontecendo, isto é, são elementos que ajudaram a formar quem seu personagem é hoje. O tipo de lugar em si já serve para descrever gostos pessoais, valores internos, classes sociais que o personagem frequentou ou frequenta. Uma pessoa que possui uma ligação especial com um museu, por exemplo, pode ser alguém ligada à cultura e à arte, o que já pode significar uma classe social mais elevada, dependendo da época em que seu jogo acontece. Entretanto, o motivo pelo qual tal lugar é relevante traz uma visão mais profunda sobre este personagem. Um morador de rua pode ter uma ligação profunda com um museu se ele tiver passado anos dormindo na calçada ao redor deste prédio, observando os visitantes que o ignoraram por todos esses anos. Agora, imagine o impacto de descobrir que esse museu tão especial é usado como templo de cultistas gananciosos que desejam trazer uma entidade profana para nosso mundo.
Seres humanos dão importância a objetos pelos mais variados motivos. Uma Posse Valiosa pode, inclusive, ser algo totalmente sem valor para outras pessoas, mas que é muito precioso para seu personagem. Esse objeto pode ligá-lo a alguma época da vida que lhe traz saudades (um brinquedo da infância), uma pessoa que partiu (um relógio de bolso com a foto dos pais), algo que demonstre uma habilidade notável e que faz dele alguém relevante (um inseparável revólver). O livro sugere, inclusive, criar posses sobre as quais seu personagem não tenha total compreensão, como uma carta escrita num idioma desconhecido. O importante aqui é demonstrar traços de personalidade, revelar que tipo de coisa seu personagem considera importante, que emoções ele carrega e transfere para esses objetos. Nerds e suas action figures ou torcedores de futebol e suas coleções de pôsteres sabem bem a importância desses marcadores de identidade. Pense no quão insano deve estar alguém que põe fogo em toda a sua coleção de HQs de Hellblazer, declarando aos berros que John Constantine amaldiçoou sua vida enquanto ele lia as revistas.
A última categoria de antecedentes descrita no livro, Características, é formada por adjetivos que descrevem traços de personalidade que não couberam nas categorias anteriores. São descritores mais diretos, como Generoso, Sedutor, Leal ou Sonhador. É uma forma mais simples e também eficaz de dizer quem seu personagem é. Ela também serve de guia para decidir que escolhas condizem melhor com a essência do personagem, que decisões contrariam seu jeito de ser, ou até mesmo em que situações seu personagem se dará melhor. Se seu personagem pode ser descrito como Hedonista e estiver sentindo que precisa dar um descanso à sua mente após folhear o Necronomicon, esse repouso pode bem estar no fundo de uma garrafa de Whisky ou num baile de foxtrote. Já uma personagem Sedutora pode se reconfortar lançando seu charme em alguém e se deliciar colhendo a admiração das pessoas implorando por uma noite com ela.
Há outras quatro categorias de Antecedentes no livro: “Ferimentos e Cicatrizes”, “Fobias e Manias”, “Tomos Arcanos, Feitiços e Artefatos” e “Encontros com Entidades Estranhas”. Estas podem ser preenchidas durante o jogo, tomando as experiências vividas durante as aventuras jogadas para evoluir a essência de seu personagem. Nada impede que ele já tenha vivido experiências do tipo antes de a história começar, mas é muito mais interessante observar seu personagem sendo aos poucos degradado pelo horror causado pelo contato com a verdade do Mythos. Afinal de contas, é justamente este o tema de Chamado de Cthulhu: uma fascinante jornada rumo a uma inevitável tragédia pessoal.
Por Jã
Equipe REDERPG
Ghostdancing
Excelente texto! Comecei a jogar O Chamado de Cthulhu recentemente e jogador que nunca teve contato com o sistema, simplesmente distribuí os pontos realizando uma média matemática, chame de preguiça ou cacoete, eu chamo de experiência rsrs e detalhei mais os traços de personalidade. O fato é que nesse sistema em particular, os antecedentes não somente enriquecem a jogabilidade, fazem parte da jogabilidade. O RPG em si, é o que é porque permite a interpretação, e sem bons antecedentes, como um personagem sentirá a perda de sua sanidade sem a construção de sua história de vida, sem sua identidade? A essência desse sistema é descontrair, senão obliterar, o que chamamos de realidade. Parabéns pelo texto, me levou a refletir sobre “a regra de ouro”. Em qualquer sistema a adaptação de regras é feita em maior ou menor grau, por vezes o mestre/narrador flexibiliza o sistema em favor ou dos jogadores ou da narrativa e às vezes, em favor de si mesmo. Criar um personagem em O Chamado de Cthulhu sem antecedentes pode ser mais rápido, e o mestre pode inventar qualquer maluquice bizarra que “tá valendo”, então por que usar o sistema?
Ghostdancing
Maldito autocorretor. Onde se lê “A essência desse sistema é descontrair,” é “A essência desse sistema é desconstruir”