Mutant: Ano Zero – Interpretando papéis: O Chefão

“Sobreviver em um mundo sujo, frio e podre não era uma tarefa fácil e Johamed sabia disso. A luta diária por grude e água, sem saber se teriam o dia seguinte para recomeçar era um fardo pesado em suas costas, mas essa era sua missão, era sua vida manter aquela arca de pé, manter os inimigos longes, mas nem todos, alguns fazia questão de manter sempre por perto. Sabia o que os outros mutantes pensavam a seu respeito, gostava da maneira como o viam e temiam, sabia dos sussurros e gostava que soubessem que muitos mais que os musgos que cobriam seu corpo, tinha a paciência das árvores, sua arma era o silêncio e as sombras onde pensava cada passo, onde cada ordem era dada com cuidado estratégico. Algumas vezes ficava admirando a mata ao redor da arca, as árvores eram sobreviventes naquele mundo e, como elas, ele tinha raízes profundas, um trocadilho cretino para um homem-planta.

Um assovio breve e Marco Willian abriu levemente a cortina que garantia a privacidade de sua toca dentro do pássaro de ferro. Era um lugar especial, privilegiado. Enquanto os demais mutantes espalhavam-se nos carros velhos do lado de fora, apenas ele, o Chefão Marlote e o ancião viviam no avião sucateado, o que lhes garantia certo conforto. Na parede mais visível de sua toca, estava a imagem de Johamed Ali, sua inspiração (sim, quando seu capanga trouxe o pôster ele estava inconformado com a primeira letra apagada e simplesmente colocou ali a única letra que conhecia, aquilo para ele era como reconstruir o passado). Gostava de olhar para o velho pôster e imaginar como os antigos lutavam nessas arenas até a morte. Eram verdadeiros guerreiros, não imaginava como deixaram que o mundo virasse toda aquela merda. Guerreiros é o que deveriam ser, acertar onde os antigos erraram. Johamed Ali o inspirava”.

Olá, companheiros e companheiras dessa longa jornada pelo ermo! Eis o papel, em minha opinião, mais desafiador de se viver em Mutant: Ano Zero. Dizer desafiador e não difícil é proposital: desempenhar o papel de um Chefão é desafiar a própria criatividade, é estar no topo da pirâmide de um mundo arrasado, tendo que proteger seus companheiros quando eles mesmos podem não entender seus meios. É manter sua gangue sob controle oscilando muitas vezes entre a violência e a proteção quase paterna, é manter próximo a você os seus amigos e mais próximo ainda os seus inimigos. Os outros chefões querem seu lugar, mas os engenhoqueiros, os brutamontes, os negociadores, todos querem um pouco do que é seu e um dia você sabe que virão buscar com ferro e fogo. Você pode sonhar todas as noites com o Éden, pode trabalhar dia e noite para que o Éden seja simplesmente um sonho distante de sua arca (porque aprendeu com o ancião que a vida é segura aqui e não permitirá que nada mude isso), ou pode até mesmo colocar seus interesses e seu poder acima de tudo isso e simplesmente viver sua vida, mas não escapará do fardo de ser um líder e o medo e a desconfiança serão sempre a sua sombra.

É por tudo isso e muito mais que o Chefão merece uma abordagem diferenciada. Então, antes de tratarmos de talentos, de mecânica e de dicas, seria muito legal ao decidir por um Chefão que você logo começasse a pensar que tipo de líder você gostaria que fosse seu personagem. O jogo ajuda dando algumas opções:

1) O Déspota: É o típico cara psicótico, extremamente violento, mas que joga o trabalho sujo no colo dos outros e anda desconfiado de tudo que em sua imaginação possa atrapalhar seu projeto de poder.  Immortan Joe de Mad Max: Estrada da Fúria é, sem dúvida, um exemplo de déspota em um mundo pós-apocalíptico.

2) O Cultista: É possível ainda existir fanáticos religiosos em um mundo pós-apocalíptico devastado? Sim e acreditem que esse é um terreno muito fértil. Certa vez um grupo de mutantes encontrou uma revista da velha era enquanto rastreava um fugitivo da arca, um gibi, eram histórias sobre uma princesa de uma terra distante, que com seu laço e sua força protegia os inocentes. Depois de algumas noites ouvindo o cronista ao redor da fogueira, não tardou para a Grande Maravilha se tornasse uma deusa cultuada pelo povo da arca e um Chefão invocasse para si a representação divina, punindo e ditando regras em nome de sua divindade. O conflito se agravou quando as mulheres decidiram que deveriam tomar o poder como fiéis expressões que eram da Grande Maravilha. Há muitos exemplos de cultistas nas telonas do cinema para nos inspirar.

3) O Cabeça: O Cabeça governa seus subordinados como escravos, faz deles sua mão de obra e, quando saem da linha, não hesita no uso da violência. Negan de The Walking Dead é uma inspiração para esse tipo de Chefão.

4) O Trabalhador: É o cara que prefere liderar colocando a mão na massa e tratando seus capangas como parceiros de trabalho. Já que citamos Negan como inspiração, seu arqui-inimigo, Rick Grimes, é uma grande inspiração de Chefão Trabalhador.

Há muitos outros exemplos no livro, citei estes como forma de incentivar que busquem inspiração na construção de seu Chefão. É um papel tão fascinante que merece essa dedicação. Os talentos também auxiliam nesse processo criativo:

a) Chantagista: Use sua perícia “comandar” com um bônus de +2 para extorquir. É um especialista em extorquir balas, grude, água, birita e tudo mais que sua imaginação conseguir desejar (não fique muito preso ao livro, a lista do que pode ser extorquido é muito mais uma sugestão, é o básico). Você fará isso muitas vezes diretamente e outras mandando sua gangue fazer o trabalho sujo. Uma paradinha aqui para falar com a MdJ: decida com o grupo quando interpretar o ato de extorsão ou quando simplesmente dar logo o resultado. Como extorquir será algo frequente ao chantagista, ficar vivendo os detalhes a todo momento pode ser extremamente exaustivo. Por outro lado, há muito de imersão no uso da perícia quando associada a este talento. Extorsões fracassadas geram intrigas, geram revanche de outros chefões e de negociadores, deixe que a insatisfação cresça e leve os jogadores a perceberem os olhares estranhos pela arca. Nem todo conflito precisa ser resolvido no ato, algumas vezes é muito mais interessante deixar germinar aos poucos as intrigas.

b) Comandante: Este é um talento para se ter logo de cara. Ele garante um bônus de +2 para sua gangue quebrar o pau e, já que entramos no assunto, vamos falar um pouquinho da gangue. Como Narrador, sempre tive muitas dúvidas em como lidar com a construção da gangue e algumas vezes terminei errando feio nesse quesito. O livro oferece alguns detalhes, o tamanho de uma gangue varia de 3 a 4 membros para cada ponto na perícia Comandar, consistindo basicamente de um Brutamonte, um Negociador e um Adestrador. Mas porque ficarmos no básico? Deixem o jogador construir os personagens de sua gangue, dar personalidade a eles, criar uma interação que pesará quando uma ordem for desobedecida. Certa vez o Capitão, um personagem Chefão perseguido pela desconfiança dos outros jogadores, teve que lidar com uma falha na perícia Comandar. Meu papel como Narrador era decidir naquela hora como lidar com essa situação, então propus ao jogador: “narre como foi que isso aconteceu, quem é o cara que está te desafiando” e ele apontou logo para Elon, o Brutamonte que nas duas seções anteriores havia sido seu braço direito na gangue e não o poupou de uma morte dolorosa. Dalí em diante todos, jogadores e PNJs, entenderam que o Capitão não iria poupar ninguém que o traísse ou desobedecesse. Foi uma sacada genial, uma oportunidade de fazê-lo ascender na arca como ameaça ao seu arqui-inimigo Johamed.

c) Pistoleiros: se você quer logo de cara uma gangue que meta medo em rivais, esse talento é Pistoleiros. Todos na sua gangue possuirão armas sucateadas, com balas suficientes enquanto estiverem na Arca. Cheguei a questionar o equilíbrio desse talento em termos de jogo, mas a coisa fica mais leve quando você nota que são “balas suficientes”, leia-se que não faltará balas para um tiroteio ou uma emboscada, mas não se trata de um estoque para ser negociado ou levado para a zona. Na zona é você que terá que fornecer balas, grude e água para sua gangue, eis aí o fardo de um Chefão – não queira saber o tamanho do prejuízo em alimentar uma gangue de quinze capangas em uma longa excursão pelo ermo.

Outros talentos que podem ajudá-lo na construção de seu Chefão:

1) Aritmética Pessoal: Com esse talento, você poderá Sentir Emoções com Astúcia (atributo principal do Chefão e, portanto, lotado de pontinhos) no lugar de Empatia. Não custa lembrar que com Sentir Emoções é possível descobrir se alguém deseja prejudicá-lo, se está dizendo a verdade ou mesmo se deseja algo de você. É isso, meus camaradas, como o próprio livro diz, ler o outro pode ser mais poderoso do que uma arma de fogo e, nas mãos de um Chefão, pode ser um estrago.

2) Cabeça Fria: Quando a coisa ficar feia, principalmente na zona, correr é preciso. Nada como mover usando Astúcia no lugar de Agilidade. Esse é um talento para sobrevivência de seu Chefão, que tem a zona como seu ponto fraco, já que provavelmente nunca estará acompanhado de toda sua gangue e não terá os atributos físicos muito avantajados. Cabeça Fria será útil também quando precisar guiar sua máquina da velha era. É isso mesmo, com esse talento, eu permitiria ao Chefão dirigir utilizando Astúcia já que para direção o teste normal seria mover e, por consequência, utilizaria o atributo Agilidade.

3) Covarde: Como meu lado “combeiro” ama esse talento. Você pode colocar um amigo na reta de um direto que o acertaria utilizando a perícia Mover (lembre-se de que se possui o talento Cabeça Fria, você usa sua Astúcia para mover), e porque não utilizar um membro de sua gangue? Eis o cúmulo da frieza, meus amigos, jogar um membro de sua gangue para levar um tiro por você e ainda fazê-lo utilizando Astúcia. Quanta maldade, mas você é um Chefão, cara, e o mundo está aí para te servir, é você que precisa sobreviver nessa parada.

4) Estoico: Se com Cabeça Fria você consegue mover utilizando sua Astúcia, que tal suportar utilizando sua Astúcia? É isso que Estoico faz de você, um cara duro de ser derrubado pelas condições adversas tão comuns no ermo e algumas vezes na própria arca.

5) Insone: Por fim, um Chefão deve dormir com seus olhos abertos se quiser viver muito tempo, então, já que concentrou tudo em seu atributo Astúcia com os talentos Cabeça Fria e Estoico, é importante pensar em como recuperar rapidinho. Com insone vai conseguir fazer isso explorando um novo setor na zona ou compreendendo um artefato. Nada mal, não é mesmo?

Mais algumas dicas que podem ser úteis:

1- Construa muito bem seu sonho: É ele que vai guiar seu Chefão pelas aventuras que vai viver, se ele vai desejar ardentemente o Éden e lutar por isso, se ele é fiel ao que aprendeu do ancião sobre os perigos da zona e jamais permitirá que descubram o mundo fora da arca, se deseja fazer de sua arca uma fortaleza intransponível. É o sonho que guiará todos os personagens e papeis, mas ele ganha uma grandeza especial com o Chefão que nunca tentará realizá-lo voltado para si, mas olhará para os outros e desejará para eles aquilo que nada mais é que sua própria vontade.

2- Não tenha pressa em definir os acontecimentos no ato em que ocorrem: Tudo bem, sabemos que a regra é clara, se um membro da gangue desobedece ao Chefão o pau quebra e a coisa vai acabar sendo resolvida na violência, mas isso aqui é sobre regras ou sobre diversão? Então, muitas vezes uma ordem não acatada pode gerar o silêncio daquele que desobedece e o Chefão sabe que ele desobedecerá ou que cumprirá, mas não estará resignado. Permita algumas vezes que o rebelde saia, quem sabe até cumpra o que lhe foi ordenado, mas alimente a certeza de uma hora ele irá maquinar contra o Chefão. Conflitos sociais bem alimentados são, muitas vezes, mais poderosos e tensos que conflitos físicos.

3- Jogue tudo na conta do roleplay: Pode parecer desequilibrado um Chefão sempre cercado por uma gangue com 15 capangas, mas nunca facilite as coisas. Imagine sustentar com balas, grude e água uma galera dessas na zona, imagine como vão se sentir se não forem sustentados por seu Chefão, imagine que um Chefão com um nível alto na perícia Comandar já é um cara respeitado e tem negócios na arca, logo nunca poderá levar todos os seus homens para uma longa jornada e deixar os olhos afastados de sua casa, sob pena de encontrar outro no comando dos seus negócios quando voltar. Imagine que, se um Chefão começa a extrapolar o uso de sua perícia Comandar para assassinar ou extorquir, como os outros mutantes na arca vão encarar isso? Fazer tantos inimigos pode ser muito perigoso, tenha sempre isso em mente. Da mesma forma, os próprios capangas podem não gostar de sucessivamente serem usados para missões suicidas. Imagine a reação dos outros comandados quando um deles morre cumprindo suas ordens, tudo isso nada tem a ver com regras, mas sim com construção de histórias e com muita interpretação.

Agora sim, vamos falar do nosso bom e velho faz tudo, do momento em que o Chefão decidir que pode assumir seus próprios negócios ou trabalhar suas próprias sucatas:

O Adestrador de Cães: Em minha opinião, definitivamente não é uma boa opção, além de possui Agilidade como atributo principal (algo em que você certamente investiu muito pouco), você já comanda uma gangue inteira e comandar um cão nesse momento da vida em que já quase pensa sua aposentadoria pode ser extremamente frustrante.

O Batedor: Outro papel que tem Agilidade como atributo principal e que serviria para tornar nosso Chefão um explorador da zona em um momento em que possivelmente sua vida estará cada vez mais centrada na arca. Pode ser uma boa opção se desejar, por exemplo, sair em busca do Éden, mas terá que investir pontinhos valiosos na perícia Encontrar o Caminho para compensar sua Agilidade baixa e ainda encontrar uma maneira de conciliar sua nova função com a tarefa de comandar seus capangas.

O Brutamonte: Em outro momento, ao tratarmos do Brutamonte, já falei o quanto gosto de imaginar um Brutamonte que se torna um Chefão, vejo esse como um durão de verdade, descendo o braço em seus inimigos e resolvendo ele mesmo seus problemas. Não tenho muita dificuldade em pensar o contrário, um Chefão tornando-se um brutamonte. Imagine um Chefão intimidando e metendo medo por aí, é algo bem legal de pensar. Vai exigir investir bastante na perícia Intimidar, dada sua pouca Força, você vai ser um cara que cai fácil na hora que o pau quebrar, mas há alguns talentos aí que podem ajudar, como “Bom Jogo de Pernas”, que te dá dois dados para se defender.

O Cronista: Não tenho dúvidas de que, do ponto de vista do roleplay, o Chefão daria um ótimo cronista, mesmo tendo que investir pesado na perícia Inspirar. Você nunca foi mesmo de sair na mão, sempre colocou os outros na reta de tiro, então poder inspirar seus companheiros e aliados pode te ajudar muito a se tornar um grande líder.

O Engenhoqueiro: Aqui está nosso casamento perfeito (pelo menos do ponto de vista da mecânica), já que os dois possuem Astúcia como atributo principal, exigindo pouco investimento, principalmente se já possui o talento Insone para recuperar Astúcia fazendo gambiarras, explorando novos setores e compreendendo artefatos, excelente opção para o Chefão e para o Engenhoqueiro, imagine os dois juntos. Do ponto de vista do que pode motivar seu Chefão a tornar-se um Engenhoqueiro estão, além do auxílio claro à sua própria sobrevivência, a possibilidade de construir você mesmo armas improvisadas, armaduras e trajes antipodridão para sua gangue. Alguns podem pensar que um Chefão já conta com um Engenhoqueiro em sua gangue para isso, mas se você quer algo bem feito, meu camarada, faça você mesmo, essa é uma lição dos antigos que não podemos esquecer.

O Escravo: Essa é a menos indicada das opções, em minha opinião. Você poderia muito bem lidar com o fato de o Escravo ter Força como seu atributo principal, assim como o Brutamonte, mas por qual razão um Chefão se colocaria na condição de um Escravo? Olhando por aquele outro lado que sempre existe, você pode ter sido forçado a essa condição por um de seus inimigos ou por uma decepção profunda após uma grande derrota ou perda, mas penso que isso significaria abrir mão definitivamente de sua gangue, simplesmente porque não combina de forma alguma um Escravo que comande uma gangue (embora um cara chato possa dizer que Spartacus contraria minha tese). Mesmo na condição de comandar estando subordinado a outro, definitivamente não vejo esse caminho como algo legal.

O Negociante: Assim como o Escravo, o Negociante possui Empatia como seu atributo principal, mas vejam que a diferença aqui está no papel exercido. O Negociante é o cara que faz o elo entre a pirâmide da arca, representada pelos chefões, e a parte de baixo, onde estão os demais papeis. Um Chefão que assuma esse papel pode simplesmente demolidor essa mediação e negociar diretamente. Foi o papel escolhido pelo Capitão em nossas aventuras, acho não apenas um caminho válido, mas uma possibilidade incrível de dar uma virada na sua já cansada vida de mandatário.

Enfim, meus camaradas, terminei esticando demais nossa conversa, mas um Chefão merece esse crédito. Tentei reunir dicas úteis não apenas pelo livro, mas pelas preciosas horas que consumimos nos divertindo com muitas histórias. Como sempre, faça aquela boa seleção do que lhe serve e deixe a sucata nas mãos de um bom Engenhoqueiro. Agora há assuntos a serem tratados na arca, há negociantes na porta de minha toca, há mutantes que esperam pela ordem do dia, no encontramos em uma outra ocasião.

Por Anderson Fontes
Equipe REDE
RPG

Artigos anteriores da série:

O Engenhoqueiro

O Brutamonte

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