“Scar sequer lembrava de como tudo aquilo havia começado e, no fim, pouco importava. O Capitão tinha lhe dado uma missão: abrir o caminho até a porta da arca dos inimigos, uma daquelas casas verticais que os antigos usavam como lar, cercada por um muro de veículos da velha era. Nas janelas era possível ver os atiradores, não ia passar sem danos. O primeiro portão já estava em pedaços, reduzido a nada pela máquina de fogo e pedra dos engenhoqueiros, então avançou como um javardo em fúria. Um mutante franzino, de pele esverdeada, ameaçou-a girando uma corrente em torno da cabeça, deu-lhe um golpe tão forte que o machado, agora cravado no peito do inimigo, estava preso entre seus ossos. Abandonou seu inseparável parceiro e saltou sobre o muro improvisado, pronta para chegar rapidamente ao campo povoado de inimigos. Quando seus pés tocaram novamente o chão, já do outro lado, viu a grande boca de fogo e fumaça. Para seu espanto, a máquina de fogo não era mais uma exclusividade de seu povo. O tiro a acertou em cheio, sentiu o cheiro dos pelos queimados enquanto seu corpo tombava, viu o mundo girar ao seu redor enquanto o sangue fervia em suas veias. Do outro lado, os pasmos inimigos que comemoravam enquanto a boca da máquina ainda fumegava, viram quando se levantou, mais alta e mais medonha do que antes, com garras longas e afiadas, ela não apenas estava de pé como parecia ainda mais determinada, largaram a pesada boca de fogo no chão e sumiram na fumaça enquanto ainda restava tempo.”
Olá, companheiros dessa longa jornada pelo ermo! Hoje vamos conversar um pouco sobre o brutamonte. Hoje o negócio é literalmente tiro, porrada e bomba. Quando a treta pegar na arca, quando o papo furado do negociante não funcionar ou o chefão forçar demais a barra com seus parceiros, o brutamonte é o cara para quem todo o grupo vai olhar. É só observar para a pericia de especialista desse papel e já temos uma ideia de como pode ser divertido viver um personagem desses.
Com Intimidar, você usa sua presença física em uma situação de barganha para forçar o inimigo a fazer sua vontade, seja lá o que você quer dele, que entregue o objeto valioso que você tanto deseja ou que saia correndo depois de borrar suas calças (sim, você é assustadoramente forte e só bater o pé já resolve em grande parte das vezes). Para quem está começando no jogo, situação de barganha é como chamamos quando há um conflito social, quando alguém tenta manipular a vontade do outro a seu favor seja intimidando, chantageando ou oferecendo algo valioso em troca.
Quando o brutamonte usar sua intimidação com essa finalidade e obtiver sucesso, apenas duas alternativas restam ao pobre coitado: obedecer ou cometer o ato desesperado de atacar. Você pode ainda obter façanhas e com elas provocar valiosos pontinhos de dúvida em seu alvo, subjugando-o à sua vontade, mas cuidado, nada será esquecido no dia de amanhã e o que você faz hoje certamente terá volta.
Olhe com cuidado na lista de talentos do brutamonte, Jeitinho Meigo é um casamento perfeito se o que você gosta é de mostrar sua marra por aí. Com esse talento, é possível provocar um ponto adicional de dúvida ao usar Intimidar. Essa não seria a minha primeira escolha como brutamonte já que, como eu sempre digo, você começa o jogo ruim em tudo (sobreviver é preciso, meus amigos), mas cito primeiro aqui porque o talento funciona muito bem com a perícia Intimidar.
Seguindo com os talentos específicos do papel, minha primeira opção seria sempre Golpe Surpresa, afinal de contas quase sempre tudo acaba em porrada na vida de um brutamonte. Mesmo o cara intimidado pode não ceder e a coisa vai acabar no braço, algumas vezes literalmente (acredite, pode ser que um dia você bata com tanta força que seu machado fique preso entre os ossos de seu inimigo), e se tenho músculos vou usá-los sempre que for necessário, e mesmo quando não for se o que eu quiser for simplesmente entortar a cara do negociante que anda espalhando rumores sobre mim pela arca. Quase nunca o chefão vai contratar meus serviços para bater papo com o rival, então ter um talento que aumente meu dano desarmado é muito útil.
Por fim, temos o talento Atravessar. Confesso que ainda sinto muita falta de um papel voltado para as armas de fogo no jogo, ainda que estejamos em um mundo de armas sucateadas e de certa forma escassas, então a perícia e os talentos do brutamonte acabam valorizando, na verdade, porrada e mais porrada, mas Atravessar abre um pouco esse leque de construção do personagem. Com esse talento, seu brutamonte conseguirá se mover utilizando Força no lugar de Agilidade. Sim, você será não apenas forte, mas incrivelmente rápido. Alguém já deve estar se perguntando: Mover também é utilizado para conduzir automóveis, vou poder combar com esse talento? Eu permito na minha mesa, custa bem caro adquirir um talento e se vai ser divertido vamos que vamos dirigir usando Força no lugar de Agilidade.
Agora vamos aos talentos gerais. Qualquer dica que eu fosse dar a alguém para escolher onde investir seus primeiros pontinhos de experiência com um brutamonte eu diria: Especialista em Arma e Mão Pesada. O primeiro, apesar da palavra arma aí, permite que o personagem seja um especialista inclusive em ataques desarmados, ganhando mais dois dados para isso que são um tesouro precioso, meus camaradas. Um dia, enquanto joga Mutant, você vai descobrir que o que mais queria na vida eram dois dados extras, apenas dois dados. O segundo é bem parecido e garante dois dados extras para lutar, ou seja, os dois juntos dão um total de quatro dados para quando a poeira subir, nada mal. Claro que Mão Pesada não serve para se defender, mas quem está preocupado com defesa? Você é um brutamonte, seu negócio é sobreviver e a melhor defesa é o ataque.
Tudo bem, mas você pode ser do tipo que não abre mão de uma boa defesa, não quer ser carregado de volta para a arca por seus companheiros ou coisa ainda pior, já entendi, então pode investir seus preciosos pontinhos em Bom Jogo de Pernas e ganhar dois dados para se defender. Vai lá, Rocky Balboa, mova essas pernas. Por fim, Combatente Veterano vai te garantir os mesmos dois dados, mas para a Iniciativa. Você bate muito e defende muito, mas não seria nada mal bater primeiro, não é mesmo?
Bem, agora você já completou o requisito de obter três talentos, já possui uma longa trajetória como brutamonte, seu nome já é sussurrado com medo pela arca, então já podemos falar sobre o faz-tudo, sobre aquele momento em que a cara sangrando do seu adversário não satisfizer mais a sua alma de brutamonte. Vamos tratar das opções:
O Adestrador de Cães: Mecanicamente, olhando os talentos e as perícias que você vai acumular como brutamonte, talvez já seja muito difícil tornar-se um adestrador, mas como roleplay, vejo outros complicadores… O adestrador talvez seja o último cara a se jogar no campo de batalha, confiando sempre em seu cão para lutar, essa rotina pode ser um tanto frustrante para um brutamonte, mas eu não costumo subestimar a capacidade dos jogadores em criarem grandes histórias. Se esse for o caminho, note que sua Agilidade não vai ser tão alta como brutamonte, então terá que investir bastante na perícia de seu novo papel – Incitar Cachorro, para ter uma quantidade significativa de dados. Um casamento difícil.
O Batedor: Pense nas mesmas dificuldades de mecânica e no mesmo caminho que faria para tornar-se um adestrador, investir muito na perícia Encontrar o Caminho para compensar a Agilidade, que também é o atributo principal do batedor. Poucos talentos poderão ajudá-lo nesse sentido, mas mover-se utilizando Força no lugar de Agilidade com Atravessar já vai ajudar bastante em suas excursões pela zona. Já a construção dentro do jogo pode ser mais fácil e divertida. Tornar-se um batedor pode ser um caminho interessante para um brutamonte que se cansou na vida na arca e quer descobrir o mundo que há lá fora. Trabalhar desviando dos inimigos, procurando artefatos e evitando a podridão são tarefas facilmente conciliáveis com o brutamonte quando o pau quebrar.
O Chefão: Eu gosto de imaginar um brutamonte que se torna um chefão, esse seria um cara durão de verdade. Ele acaba sanando um ponto fraco do chefão quando este precisar se impor pela força e isso vai acontecer sempre. Claro que a perícia principal do segundo é a Astúcia, mas isso pode ser melhorado investido bons pontos de experiência no talento Comandar. Falando em roleplay, não é nada difícil e até um pouco óbvio imaginar um brutamonte que ascenda ao lugar de chefão depois de muito tempo emprestando ou vendendo seus músculos.
O Cronista: Penso que nem o adestrador seja tão longe de um brutamonte quanto o cronista. Gosto de pensar o cronista como a cabeça pensante da arca e se você pensar seu brutamonte como um toque mais refinado, tudo bem, mas eu não entraria nessa praia. Do ponto de vista da mecânica, nem o atributo principal do papel, Empatia, nem sua perícia de especialista, Inspirar, fecham bem com a ideia de um brutamonte. Imagine um que opte por sempre incentivar e auxiliar seus companheiros no lugar de entrar de cabeça na porrada! Por outro lado (existe sempre um outro lado), vai que seu brutamonte desistiu de uma vida de sangue e dentes quebrados e optou por uma outra jornada. Quem sabe, depois de uma grande revelação, ele tenha entendido que o Éden é uma busca interna, uma jornada de autorreflexão. Essas experiências de imersão costumam gerar boas histórias, algumas que duram por uma vida inteira.
O Engenhoqueiro: Pensem comigo, por que razão nessa terra devastada um brutamonte decidiria transforma-se em um engenhoqueiro? Eu já respondo: sobrevivência, meus camaradas. Não se dispensa uma arma improvisada, um escudo com aquela placa de metal, uma boa dose de birita fabricada com seu destilador improvisado para te deixar novinho em folha. Pode ser muito útil não ter que recorrer aos negociantes para obter essas maravilhas, não ter que ficar apelando troca de favores com o engenhoqueiro, isso é libertação! Quando não houver engenhoqueiro no grupo, então, penso que essa seja uma ótima e divertida opção. Tratando da mecânica, o atributo principal do engenhoqueiro é a Astúcia. Seria um problema? Nada que você não possa resolver investindo uns pontinhos a mais em Fazer Gambiarra para angariar dados a mais em sua jogada.
O Escravo: Do ponto de vista da mecânica, temos aqui o casamento perfeito, ambos os papeis possuem Força como atributo principal, o brutamonte bate e o escravo suporta para além dos limites de qualquer outro mutante. Os dois juntos formam uma máquina de guerra quando o bicho pegar. Do ponto de vista do roleplay, caso não tenham construído uma história aos poucos durante as aventuras que viveram, é legal conversar bastante com a MdJ e com o grupo sobre quais motivos levariam seu brutamonte a tornar-se um escravo. Chantagem de um chefão poderoso? A busca por um novo sentido de vida depois de uma grande perda? Eu vibro muito quando alguém em minha mesa passa por um desses dilemas, essa é de longe a alma do RPG, poder viver esses grandes conflitos.
O Negociante: Por fim, depois dessa longa jornada, eis o negociante. Embora tenha Empatia como atributo principal, assim como o cronista, penso com muito mais facilidade um brutamonte tornando-se um negociante. Exigiria um gasto significante com a pericia Fazer um Trato para compensar a baixa Empatia do primeiro, mas acho que já entenderam que esse caminho é sem volta em quase todas as opções. É do ponto de vista do roleplay, ao ler na perícia Fazer um Trato que “você sabe onde encontrar o que precisa, mas obter é outra coisa”, que vejo como um brutamonte negociador pode ser muito legal. Sabendo onde está, meus camaradas, certamente o brutamonte que mora em você saberá como obter, seja lá o que for. Imagine um negociador que pode quebrar o pau quando a coisa der errada, esse é o cara!
E terminando de verdade, é bom dizer o quanto Mutant me surpreende pela versatilidade, tantas formas de jogar, tantos jeitos de contar história, e assim vamos reconstruindo esse mundo caótico. Tudo isso aqui nada mais são que dicas, aproveita o que for legal e ignora o que não te diverte, como faria naquela velha pilha de sucata.
Nos encontraremos de novo, quando nuvens tempestuosas não estiverem sobre nossas cabeças.
Por A.F. Silva
Equipe REDERPG
Primeiro artigo da série, o Engenhoqueiro:
rederpg.com.br/2018/09/20/mutant-ano-zero-interpretando-papeis-o-engenhoqueiro/
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