Vampiro: A Máscara – Rio de Janeiro Noturno (resenha)

Recebi a ilustre tarefa de resenhar com extrema sinceridade o livro do amigo que já considero pacas, Felipe Daen. Um entusiasta do Vampiro: A Máscara que possui visão e alinhamento com o jogo muito parecido com os meus. Então, sem mais delongas, vamos analisar o Rio de Janeiro Noturno.

O Produto

Com 140 páginas o material é lindamente acabado e ilustrado. Há aproveitamento de algumas poucas imagens de outros livros da linha V:aM, mas há imagens totalmente novas. Algumas tentam inspirar o traço clássico do famoso Leif Jones, outras possuem uma característica toda nova. A arte da capa e o logo em néon deu um tom nostálgico maravilhoso. As artes de retrato dos personagens foram encabeçadas pelo Thiago Motta, o mesmo artista de muitas imagens do Belregard, um cara que sou fã. Logo, fica difícil não gostar desse material.

Ainda por cima, o material mantém o máximo possível sua diagramação aos moldes originais, um acabamento incrível. Um material que merece ser impresso em capa dura.

Introdução

O livro te ganha logo de cara com a frase “Paraíso tropical durante o dia, sensual elegância à noite, o Rio pode ser tão sedutor quanto um vampiro – e igualmente perigoso”. E é nela que todo o suplemente é erguido. Não apenas em um desfile de violência ao estilo dos filmes modernos que retratam o Rio, mas também visitamos a cidade por um espectro boêmio, sedutor, lascivo, violento e cheio de paixão. O livro usa o termo de horror sensual várias vezes, e isso me agrada. Aliás, a página de introdução do livro é um convite incrível. Eu, que nunca me senti atraído a narrar no Brasil, me senti seduzido pelo encanto do escritor, maldita Presença e suas amarras.

Um dos pontos altos da introdução desse livro é situar o leitor sobre as referências do Rio de Janeiro ao longo dos livros da linha V:aM e não só isso, usaram os erros e falta de informações destes materiais para abastecer mistérios, transformando problemas de consistências em boatos e inverdades. É digno de nota que o jogo foi todo baseado na 4ª edição de Vampiro: A Máscara, ou apenas V20.

Novamente “A metáfora de uma Máscara vê a atmosfera sensual e misteriosa de bailes clássicos se funde com a intensidade visceral (ou devassidão inconsequente) da típica festa de Carnaval da cidade”. Este é um suplemento para quem gostaria de explorar a sexualidade do vampiro de forma mais acentuada, misturando instintos de amor e ódio a todo momento. “A paixão é real – e com frequência, sombria”.

Mas não fica só aí: o Rio é muito mais que isso, pois a liberdade traz tentação, preocupações e consequências. O desejo traz a posse e isso requer força e egoísmo, gerando repulsa e ressentimentos. O Rio de Janeiro vive uma frágil neutralidade entre as seitas da Camarilla e Sabá, fazendo da cidade um campo minado tenso. Siga as regras de um e morra por desobedecer às regras do outro.

Agora, misture tudo isso num caldeirão, literalmente à 40° graus, com várias culturas e religiões, com o fascínio pela escuridão, com os demônios que tramam a séculos. Enfim, senhor Felipe, você conseguiu. Vamos embarcar no Hype Train, choo-choo!

O capítulo termina dando sugestões sobre música e filmes (alguns fora do padrão, o que é ótimo para os interessados em entender realmente o clima). E também com uma informação direta sobre a estrutura de poder das seitas e sobre outros moradores do Mundo das Trevas. É uma parte simples, mas superimportante. Logo de cara posso dizer, uma das melhores introduções de By Nights que já coloquei as mãos.

História

Cheio de mistérios e reviravoltas, a história do Rio de Janeiro é mesclada com mitos regionais, informações históricas e trechos de documentos, insinuando eventos sinistros que erguem os pilares da cidade.

Nascem as Seitas na Europa, guerras e Inquisição empurram os Membros para outros cantos do mundo devido às expansões marítimas, e as Terras de Santa Cruz são esperança. Assim, os primeiros Membros e seus asseclas pisam nessas terras, trazendo a maldição de Caim. Como não poderia ser diferente, Lasombras e seus padres são os primeiros a chegar, estando envolvidos com o massacre dos nativos. Não ficando para trás, a Camarilla envia os seus emissários e tenta firmar bases aqui também.

O que se segue é uma sequência de desgraças enquanto há, não somente o extermínio de nativos, mas as mazelas do tráfico humano permeando cada esfera da sociedade, humana ou cainita. Fica muito claro a soberba e poder da Camarilla, mesmo com o Sabá tendo sido os vanguardistas, a Camarilla conseguiu firmar sua corte quando assim desejou, rivalizando seus oponentes mesmo estando em desvantagem de números e influência. A coisa mais brasileira que você pode imaginar é o Pacto de São Sebastião, quando cansados de briga, todo mundo decide dar uma trégua. Nada é mais Brasileiro do que isso. Além disso, o escritor cruza o Pacto com o “nascimento” do Carnaval, usando o festival como uma espécie de “festa para fortalecer o pacto e firmar alianças”. Se humanos fecham negócios enquanto comem e bebem, por que com vampiros não seria igual?

Deste momento em diante, o Rio se torna conhecido como um lugar neutro para que as Seitas possam fazer negociações impossíveis. Um lugar para evitar as rivalidades do sangue, afastar-se das tradições restritivas, saborear desse gado festivo. Brasil, meu Brasil Brasileiro.

O autor se atenta a deixar toda essa época de festa e relativa paz para trás ao cruzar eventos reais conectados à expansão da cidade, com eventos conflitosos que lançaram Membros contra Membros. Assim, o século 20 inicia uma época de guerra para o Rio. Briga de classes, nascimentos de grandes favelas, crime organizado, urbanização feroz e desumana, por fim… Ditadura. Com ela nascem movimentos estudantis e grupos de arte, o Rio se torna conhecido mundialmente. Tensão extrema. Autoritarismo colossal. Usando essa guerra civil como cortina, os Membros se engalfinharam na escuridão.

Mas, independentemente do caos, da desgraça ou calamidade, o Rio de Janeiro continua lindo! Esse é o epicentro da coisa. Não importa o conflito, no fim todos passam um pano, “não é bem assim”, tapinhas nas costas e sorrisos amarelos. Então, há relativa paz novamente.

Enquanto busca sua redenção lasciva, sob a sombra do Cristo, os membros lutam as últimas noites com sangue quente e cheio de desejo. Para fechar lindamente, o capitulo conta com uma bela linha do tempo.

Eu gosto deste tipo de capítulo, mesmo com aquela voz zunindo no meu ouvido dizendo, “mas quem conhece essa história toda? Por que os cainitas conheceriam sua história de 500 anos atrás?”, tenho que aceitar que o capítulo ficou muito bom e que há nele muitas ideias bem executadas que permite muito espaço para novas criações.

Geografia

Essa é e sempre será a parte mais difícil de escrever um by night. Nos anos 1990, quando não tínhamos wikipédia ou google maps, os By Night só tinham a função de ser um guia de ruas e bairros, mas hoje isso seria irrelevante. Precisamos de mais do que isso, precisamos sentir o clima, a sintonia de um lugar, enquanto lemos suas páginas.

Esse capítulo ficou muito bem escrito, dividindo o Rio de Janeiro nas clássicas quatro zonas e apresentando o que há de mais marcante em cada uma delas. Se você é um Narrador super detalhista, você ainda precisará da internet, mas se você é um Narrador procurando boas ideias, aqui é seu lugar certo.

Cada uma das zonas apresenta localidades marcantes, como elísios e clubes famosos, apresenta também tags, marcadores (muito usado na 2ª Edição de Vampiro, me lembro de aparecer na aventura que vinha no livro básico, descrevendo Chicago com um grande conjunto de palavras). Essas tags nos ajudam a visualizar o que está em evidência em cada bairro.

Ponto alto desse capítulo são as coisas que permeiam o sobrenatural que não precisam de explicação (nem de crossover). Por exemplo, a região do triste Massacre da Candelária não foi usada de forma leviano ou apenas para criar conexão com aparições e o mundo espiritual. No lugar disso, o autor descreve que “os vampiros consideram o local um memorial sombrio e solene”. Além de charmoso e instigante, é delicado e respeitoso.

Levando-me para um lugar que teria dificuldade de me imaginar narrando, mas criando a vontade de experimentar, o ritual da briga de torcida é um show à parte. Um Jogo de Instinto do Sabá, que visa incitar e influenciar sua torcida a agir contra a adversária. Nada mais Sabá do que isso, nada mais libertador. Se quiser entender um pouco sobre isso, procure sobre a rivalidade e violência atrelada às torcidas organizadas na internet.

Cada lugar importante, quando necessário, possui alguma regra atrelada, como por exemplo, dizer que o Cemitério São João Batista é um ótimo lugar para práticas necromânticas e sobrenaturais, reduzindo a dificuldades para o teste de algumas habilidades ou disciplinas.

Novamente, falando de respeito, incrível com o autor conseguiu descrever esse evento urbano, vítima de preconceito social e indiferença política, com devido respeito. Digno de alguém que ou conhece a realidade, ou fez real questão de conhecer.

Diferente dos fãs boçais que endeusam filmes de violência na favela, como se fossem filmes de guerra americanos, as favelas são brevemente descritas, mas com o devido cuidado de entender a tragédia que ocorre ali e a forma como os vampiros tiram proveito disso.

Essa parte possui um pequeno trecho, um bilhete escrito pela minha e-friend de longa data, dos fóruns de Orkut, Lívia Von Sucro, interpretando sua personagem, Lívia Yorke, uma digna emissária do Sabá, advertindo seus fiéis sobre os perigos noturnos.

Concluindo esse capítulo, temos algo realmente útil que deveria estar em qualquer livro deste tipo: informações sobre transportes, estações, formas de entrar e sair da cidade, e seus perigos relacionados. Há mapas incríveis, bem divididos e de fácil compreensão acompanhando.

O livro nos traz as informações do Carnaval para os Membros, sobre os costumes e tradições que são instituídos ou abandonados durante os dias de festa.

Personagens

Há uma boa gama de personagens na cidade e todos eles muito bem apresentados. Não são apenas divididos por clãs, mas por grupos (círculos e bandos), com direito a mapa de relacionamento para cada um deles. Sob a fachada de resort de vampiros, o Rio conduz um jogo arriscado com jogadores ambiciosos.

Eu tenho problema em tratar os clãs como grupos/fraternidades/times, de verdade é a parte que mais me incomoda em vários materiais oficiais do V:aM, mas vou lhe dizer que aqui foi bem apresentado. Entretanto, achei que muitos dos personagens estão muito enraizados às suas histórias antigas, muito conectados à ancestralidade histórica da Corte e pouco conectados aos eventos modernos. Mas, no fim, são fiéis ao estilo V:aM (ao menos até a edição V20) de apresentar personagens, dando uma boa base histórica, explicando suas fundações e passado, acima de qualquer outra coisa.

Neste capítulo é que o autor fortalece a ideia de que o Rio é um campo livre e aberto para todos que conseguirem viver nesse caos sedutor. Então, possuímos um pouquinho de cada clã, além de representatividade marcante de linhagens pouco utilizadas, como Panders e Filhas da Cacofonia. Diga-se de passagem, são alguns dos personagens mais legais.

Ao fim das apresentações dos personagens, temos outras personalidades cheias de história e mistérios para serem usados de forma pontual, mas não menos importante. Indo do casal Teodoro e Ângela, pilares de seitas inimigas que se amaram e deixam ecos que podem ser ouvidos até hoje. Até Gratiano, o grande Lasombra conhecido mundialmente.

Como já havia dito, após apresentar cada personagem, o livro traz um mapa de relacionamento para cada clã, depois para cada círculo ou bando principal, incluindo Primigênie e Bispos do Sabá. Não é uma tarefa de iniciantes entender todo o potencial de tramas e conspirações possíveis, mas é, ao mesmo tempo, um trabalho de qualidade ímpar.

Cada mapa de relacionamento pode gerar uma história por si só. Caso não queira utilizar a Corte de forma macro, focando na não vida, amor e paixão de forma mais individual, o mapa lhe dará tudo que você precisa.

Narrativa

Diferentes de alguns By Nights oficiais, que apenas te entopem com um monte de informação, como se dissessem “se vira aí”, este capítulo tenta balizar e auxiliar o Narrador a ter uma boa experiência narrativa enquanto experimenta o Rio de Janeiro.

Como a Neutralidade é um fator central do jogo no Rio de Janeiro, o autor nos apresenta como representar isso dentro do seu jogo. Assim, apresenta-se primeiro os termos gerais do Pacto de São Sebastião, depois há suporte de como guiar a escolha dos clãs dos jogadores. Quais são as melhores opções? Será que o cenário suporta mistura nada ortodoxas? Ao mesmo tempo, seria possível um grupo todo focado em uma seita, agindo como seus arautos e visionários?

Mas falando sobre o Carnaval, como usar ele em seu jogo? O suplemento nos apresenta diferentes tipos de eventos e suas regras atreladas, para usar ao longo dos dias de festa na sua mesa. Indo do Baile Sangue Azul, tradicionalmente realizado no sábado de Carnaval, um baile de gala do Copacabana Palace que é o apogeu do luxo e do requinte. Até o bloco de rua de tradição malkaviana chamado Bloco do Circo em Chamas. São opções válidas que ditam o ritmo esperado pelo jogo. A mais impressionante e charmosa é a Última Dança, uma espécie de festa tão sigilosa que é uma lenda entre os cainitas. Poucos são convidados e ninguém negará comparecer. Para deixar você ainda mais munido, há ideias de aventuras casadas às festas. É puro amor.

Para quem espera outro tipo de jogo, talvez viajando pelo Rio de Janeiro conhecendo seus mistérios e sobrenaturalidade, há muito suporte também. As façanhas do Lasombra Teodoro foram, sem dúvida, impressionantes. E por ser fascinado pelo sincretismo brasileiro, colecionou itens bizarros de vários tipos. Esses itens podem servir como armas políticas, objetos de devoção ou outros. Enfim, há exemplos de relíquias e mais ideias de aventuras focadas nesse espectro do cenário.

Mas não só isso, se prestar atenção, há muitos mais ganchos de aventura soltos pelo livro. Muito mais.

Considerações

Enfim, sou um consumidor criterioso de Vampiro: A Máscara, minhas melhores e piores experiências de narrativa e leitura RPGísticas normalmente envolvem esse jogo. Surpreendentemente, fui fisgado pelo V5 e tenho consumido materiais antigos (V20 e anteriores) com muito cuidado e sabedoria, para não me “influenciar” pelo clima passado. Mas, ler o Rio de Janeiro Noturno foi uma surpresa agradável.

Não apenas pelo cenário, mas principalmente pela ótica aprazível, amigável e sensível do escritor. Facilmente é possível notar seu respeito pelo cenário e pela riqueza da construção, casando toda a mistureba do Mundo das Trevas com primazia e amor.

É facilmente perceptível que Rio de Janeiro Noturno foi jogado e re-jogado, testado e re-testado, terminando num trabalho muito, muito bom. Você consegue sentir (até onde é possível num material de RPG com 140 páginas) o clima do ERREJOTA na medida certa, permitindo um jogo de alto poder, controlando os senhores da noite, até um jogo de rua, com bailes funk, transporte público apertado e, talvez, milicianos.

Um compra certa, garantida, não apenas pela sua qualidade de jogo, mas pelo que esse suplemento representa para o cenário nacional do RPG, um verdadeiro incentivo para outros fãs criarem seus próprios mundos cheios de trevas.

Por Rafão Araújo

Link para comprar o PDF: storytellersvault.com/product/261807/Rio-de-Janeiro-Noturno

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