Ao longo dos anos 1990 surgiram inúmeros títulos de RPG por todo o mundo, oferecendo variações no jogo ou nos cenários. O período também foi marcado por uma grande revolução no cenário mundial do jogo, como o lançamento nos EUA da primeira edição de Vampiro: A Máscara, em 1991. Ele inaugurava a linha Storyteller, do clássico World of Darkness (Mundo das Trevas), voltada para um público mais maduro, que tinha crescido jogando AD&D, mais pedia por uma temática mais sombria, que levasse o jogo para além dos limites da necessária e sempre bem vinda diversão. O mais próximo disso que tínhamos tido até então era o cenário de horror gótico de Ravenloft, publicado originalmente em 1983 para D&D.
Com a linha Storyteller, a editora estadunidense White Wolf ofereceu ao público jogos produzidos por escritores que migravam da literatura para o designer de jogos, fazendo o caminho inverso dos autores do clássico D&D. Sua proposta era sobressair os aspectos narrativos à mecânica e usar a fantasia para trazer profundas reflexões sobre a realidade contemporânea e a natureza humana. Seus jogos eram ambientados em um cenário que emulava, sob muitos aspectos, nosso mundo real, ressaltando suas contradições e aspectos sombrios. Essa linha de jogos foi um verdadeiro sucesso mundial, chegando a ameaçar a hegemonia de D&D, além de fomentar e consolidar a presença feminina em um meio desde sempre hegemonizado pela presença masculina. O Mundo das Trevas abriu caminho para que muitas garotas fossem introduzidas ao universo do RPG, não apenas como jogadoras, mas também como narradoras, designers e autoras de cenários e jogos.
Vampiro: A Máscara receberia uma edição brasileira em 1994, com a tradução de sua segunda edição norte-americana. Lobisomem: O Apocalipse, segundo título da linha, possui uma das comunidades mais ativas de fãs no Brasil na atualidade, o Nação Garou, que mantém um canal no Youtube com podcasts sobre o jogo.
Outros dois títulos desse universo, um pouco menos conhecidos são: Changeling: O Sonhar – que chegou a receber uma controversa edição em português e mantêm uma pequena, mas ativa comunidade de fãs – e Wraith: The Oblivion, que nunca chegaria a receber uma edição oficial no Brasil, resultado do vazamento de uma versão em PDF do livro em processo de tradução, embora tenha sido elevado ao status de “cult” pela critica especializada e tenha conquistado alguns entusiastas entre os jogadores brasileiros. Dos demais títulos da linha, Múmia: a Ressurreição e Demônio: A Queda, até chegaram a receber edições nacionais, mais sem obter sucesso dos anteriores. Já Hunter: The Reckoning (Caçador: A Revanche) nem mesmo teve a chance de uma edição em português.
A efervescência do cenário internacional na década de 1990 se refletiu na chegada e disseminação do RPG no mercado nacional. Em 1991, a GSA, empresa pioneira do ramo no país, lança Tagmar, o primeiro jogo de RPG disponível comercialmente em língua portuguesa para o público brasileiro, um jogo de fantasia medieval inspirado na obra de Tolkien, mas com uma mecânica bem diferente de D&D. O jogo foi considerado um grande sucesso comercial e abriu caminho nas prateleiras para outros jogos nacionais.
O ano de 1992 foi outro um marco para o RPG tupiniquim, com o lançamento de Desafio dos Bandeirantes, também pela GSA, o primeiro RPG de Mesa a abordar temáticas genuinamente brasileiras. Um RPG de fantasia histórica, passado numa versão mítica do Brasil colonial, onde os jogadores eram convidados a interpretar personagens como pajés, jesuítas, babalorixás e bandeirantes, além de interagir com personagens do folclore nacional. Apesar de usufruir de status cult e ter sido utilizado como material de apoio por professores de História em todo o país, acabou sendo vitima das dificuldades no mercado nacional de RPG, como a falta de incentivos, a má distribuição e a síndrome de vira-latas que ainda leva muitos jogadores e narradores a torcer o nariz para a produção nacional. Sobretudo quando ela se atreve a abordar temáticas tipicamente brasileiras, o que levou Desafio dos Bandeirantes a sair de catálogo desde o fechamento da GSA em 1996.
Lá fora, ainda em 1993, o cientista da computação Peter Adkison e o matemático Richard Garfield, lançaram um jogo de cartas competitivo com uma reminiscência de RPGs de fantasia chamado Magic: The Gathering. O jogo foi extremamente bem sucedido e a empresa que os dois fundaram, a Wizards of the Coast (WotC) experimentou um crescimento fenomenal, que a levou a comprar a combalida TRS, detentora dos direitos de D&D, em 1997. Magic: The Gathering inaugurou um novo gênero de jogos de cartas colecionáveis que emergiu, criando um novo nicho também relacionado ao RPG.
Ainda em 1994, no frisson do lançamento eminente de AD&D no mercado nacional, foi lançada pela Editora Trama (mais tarde renomeada como Editora Talismã até, por fim, assumir o nome de Melody), a memorável revista Dragão Brasil, cuja última edição viria a ser datada de Agosto de 2007, em torno da qual surgiram ou foram divulgados títulos icônicos do RPG nacional como: Defensores de Tóquio (atualmente disponível em sua 6ª versão, de forma extremamente confusa, chamada de 3D&T Alpha Revisada); e todos os títulos do sistema nacional Daemon: Trevas, Arkanun, Anjos – A cidade de Prata, Demônios – A Divina Comédia, Anime RPG, Supers, Invasão, Hi-Brazil, Tormenta e NeoKosmos. Em 2016, a Jambô Editora anunciou a volta da revista em formato digital, porém, sem o mesmo sucesso de outrora, ela vem tentando manter sua publicação através de uma campanha de financiamento coletiva no Apoia.se.
Buscando manter lucrativo um mercado que sempre sobreviveu como um hobby alternativo, o então responsável pelos títulos de D&D, Ryan Dancey, no inicio deste século, introduziu uma política na qual outras empresas poderiam publicar material compatível com o sistema de D&D sob um padrão conhecido como Licença Aberta. Isso deveria dispersar o custo de desenvolvimento de suplementos e aumentar as vendas dos livros básicos, que só poderiam ser publicados pela própria Wizards of the Coast (WotC), então detentora dos direitos de D&D.
Uma iniciativa que em 2004 seria seguida, em outros termos e de maneira ainda mais radical, pelos criadores do pioneiro Tagmar, que decidiram liberar totalmente e gratuitamente os direitos comerciais do RPG, desde que não fosse para fins lucrativos, o que permitiu o desenvolvimento de Tagmar 2, que segue sendo desenvolvido e disponibilizado gratuitamente para qualquer interessado através de um site oficial.
Em 1999, a WotC foi comprada pela gigante do ramo de brinquedos e jogos eletrônicos, Hasbro. Desde então, a empresa têm sido a detentora dos direitos tanto de D&D como de Magic: The Gathering e é a responsável pelas 3ª, 4ª e 5ª Edições de D&D. Tendo instituído ainda na época da terceira edição, as novas regras de Licença Aberta de D&D ficariam conhecidas como OGL (Open Game License), uma estratégia que obteve sucesso em gerar um grande volume de material compatível, que, desde então, tem sido publicado por todos os cantos do planeta, embora essa política tenha sido parcialmente mudada na quarta edição de D&D. O Pathfinder, da pequena e audaciosa Editora Paizo, que ousou enfrentar a gigante Hasbro para revisar e ampliar o sistema da 3ª edição de D&D, valendo-se da política de Licença Aberta, obteve sucesso em atrair as atenções muitos fãs frustrados com a 4ª edição e embora só tenha sido lançado em português pela Devir em 2015, já se encontra com a tiragem completamente esgotada. Também em 2015, a Wizards of the Coast, sob controle da Hasbro, lançou a 5ª edição sob a OGL original, marcando um retorno ao formato de Licença Aberta que havia sido interrompido durante a 4ª edição.
No outro grande filão do mercado, explorado pela White Wolf, a opção dos executivos responsáveis pela linha de jogos do clássico Mundo das Trevas foi de encerrar sua linha de jogos em 2004, abrindo espaço para uma nova linha que ficaria conhecida na atualidade como Chronicles of Darkness (Crônicas das Trevas), encabeçada por Vampiro: o Réquiem, que buscava atender às exigências de um público de jovens que atingia a maturidade já no século XXI e era disputada pelos games. Essa nova linha, embora tenha conquistado uma comunidade significativa de fãs, não conseguiu obter todo o sucesso que um dia teve a linha clássica, embora conte com seu próprio secto fiel de entusiastas.
A mobilização de autores e fãs faria ressurgir, a partir de 2012, os títulos originais do Mundo das Trevas Clássico, com o lançamento das edições comemorativas de 20 anos, que causaram um verdadeiro frisson entre os fãs de RPG em todo o planeta e consolidaram uma nova tendência de financiamentos coletivos para fomentar a produção profissional de RPGs de Mesa. Assim, foram bem sucedidos os lançamentos do V20 (Vampire: The Masquerade), W20 (Werewolf: The Apocalypse) e M20 (Mage: The Ascension) e das edições comemorativas de Wraith: The Oblivion e Changeling: The Dreaming, ambos bem sucedidos em atingir suas respectivas metas de arrecadação embora tivessem sido cancelados bem antes do encerramento do restante da linha em 2002. O que abriu caminho para novas edições e possíveis reboots desses jogos tradicionais, embora, infelizmente nenhuma dessas edições comemorativas esteja disponível ou tenha previsão de lançamento em língua portuguesa para o mercado brasileiro.
Enquanto todas essas reviravoltas agitavam o maistream do cenário mundial de RPG, no lado underground desse universo, ainda no final dos anos 1990 e inicio dos anos 2000, a comunidade rpgística mundial testemunhava o surgimento da autodefinida “comunidade de RPGs Indies“. Surgida na internet, ela buscava explorar novas possibilidades para o velho RPG de mesa, usufruindo de toda a comodidade e flexibilidade que trouxeram os adventos da impressão sob demanda e da publicação em PDF, o que tornou possível a produção de jogos com designs bem focados e experimentais, driblando as tendências dominantes da indústria.
Indie é uma expressão que, na prática, define o que chamaríamos de “alternativo”. Assim, o RPG, um passatempo alternativo por excelência, tem nos jogos “indies” formas ainda menos convencionais de se jogar e contar histórias, onde se prioriza enormemente a interpretação, algumas vezes abrindo mão dos dados e, em alguns casos, até mesmo da tradicional figura do narrador, curiosamente expressando uma tendência à retomada do mítico vinculo entre o jogo e a reflexão critica e subjetiva da Commedia dell’arte. Um dos exemplos mais emblemáticos dessa nova forma de pensar e jogar RPG é o aclamado, Abismo Infinito, do escritor e game designer paraense, John Bógea.
Apesar de todas as inovações e os desafios que sempre marcaram a história do surgimento e desenvolvimento dos jogos de RPG, a adoção, pela White Wolf, de uma variante da política de Licença Aberta para a produção de novos suplementos para o Mundo das Trevas clássico através do Storytellers Vault (onde já pode ser encontrado material disponível em português), o anúncio recente do lançamento da 5ª edição de Vampiro: A Máscara, além do sucesso de Pathfinder no mercado nacional e do anúncio do retorno de Desafio dos Bandeirantes pela New Order Editora, nos fazem acreditar que as tardes de diversão em torno das mesas bagunçadas rolando todo tipo de poliedros exóticos ainda se estenderão por muitos e muitos anos. Assim esperamos e por isso estamos todos dispostos a lutar. Não é mesmo, aventureiros?
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Por Glailson Santos
Administrador da fanpage Brasil in the Darkness
Link para a primeira parte: rederpg.com.br/2018/08/07/um-pouco-sobre-historia-do-rpg-parte-1-origens/
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Boa tarde! Glailson, estou fazendo meu TCC e gostaria de referenciar uma boa quantidade de informações aqui presentes! Mas você conseguiria também me guiar sobre quais trabalhos você usou ou conseguiu essa base de infos? Tipo, autor mesmo ou trabalhos, afins… Principalmente sobre o início do RPG no Brasil e etc. Agradeceria muito.