Após pouco mais de duas décadas rolando poliedros exóticos e reunindo os amigos para longas tardes de muita diversão em torno de uma mesa coberta de livros, lápis e papel, decidi tentar contribuir para a comunidade de fãs do bom e velho “RPG de mesa” socializando um pouco do XP que consegui acumular, relatando um pouco sobre as origens de nosso hobby favorito.
Um anseio ancestral me instiga a compartilhar o pouco de uma história do qual todos nós, narradores e jogadores, fazemos parte. De uma forma talvez presunçosa, alega-se que as origens do que chegou até nós como “RPG de mesa” remonte à Commedia dell’arte, uma forma de manifestação artística que se disseminou pela Europa ainda no século XVI em contraponto ao Teatro Erudito. Nele, artistas itinerantes apresentavam espetáculos teatrais nas ruas, muitas vezes sem roteiro algum e sempre com base no improviso, onde a interpretação e a fantasia estavam a serviço da reflexão sobre a realidade, buscando satirizar escândalos locais, eventos atuais, ou manias regionais, temperando-as com piadas e bordões. Eles eram voltados para o público que não tinha condições de frequentar os teatros formais, ainda mais elitistas naquela época do que costumam ser hoje.
Alguém ainda mais rigoroso, ou pretensioso, poderia dizer o RPG remonta à ânsia primordial por partilhar histórias em torno de uma fogueira, sob o céu estrelado, permitindo que a audiência, de uma forma ou de outra, também ajude a contá-las.
O que a história oficial registra, entretanto, é que no não tão distante ano de 1969, o jovem norte-americano, militar da reserva, formado em física e aspirante a designer de jogos, Dave Wesely, em um encontro de entusiastas de wargames na universidade de Minesota, “narrou” uma sessão de sua mais nova criação, um wargame caseiro que chamou de Braunstein, onde cada jogador representava um único oficial ou revolucionário em uma cidade fictícia. Braunstein marcou a primeira experiência conhecida em que a interpretação de personagens foi usada em um jogo de estratégia, muito semelhante a uma sessão do que conhecemos hoje como “RPG de mesa”.
Entre os participantes dessa sessão pioneira esteve Dave Arneson, que em 1971, certamente influenciado pela experiência de 1969, usaria a ideia de incorporar a interpretação de personagens individuais ao seu próprio jogo de estratégia que chamou de Blackmoor, onde já estavam presentes muitos dos elementos que costumamos relacionar aos RPGs de mesa, como pontos de vida, classe de armadura, pontos de experiência e masmorras, além de, como muitos jogos de estratégia, incorporar miniaturas em um grid para representar os combates.
Foi também em 1971 que Gary Gygax, já veterano no meio estadunidense de wargames e aficionado por ficção científica, fantasia e capa e espada, após perder o emprego em uma companhia de seguros e dedicar-se a alguns trabalhos como desenvolvedor e editor de jogos, publica Chainmail, um jogo de guerra com miniaturas que simulava combates táticos na Era Medieval. Originalmente pensado como um cenário histórico, ele logo incorporou também elementos de fantasia.
Foi da parceria entre Dave Arneson e Gary Gygax que surgiria, em 1974, o primeiro jogo de RPG a ser publicado e disponibilizado comercialmente, o Dugeons e Dragons, nosso famoso D&D, que uniria ideias presentes anteriormente em Blackmoor e Chainmail.
A responsável por essa iniciativa pioneira foi a lendária TSR, empresa fundada um ano antes por Gygax em parceria com seu amigo Don Kaye, já com o objetivo de lançar D&D como um produto para um nicho muito especifico de consumidores. Gygax não espera vender mais do que mil exemplares de seu jogo pioneiro, mas precisou incorporar a sua parceria um investidor de nome Brian Blema, apenas para ter recursos suficientes para seu primeiro lançamento. Nenhum deles àquela altura poderia imaginar o sucesso a influência que teria seu despretensioso trabalho.
O início foi promissor, as primeiras mil caixas de D&D esgotaram em menos de um ano e o jogo logo se popularizou nas convenções de fãs de jogos de guerra e estratégia, até passar a ser também distribuído nas redes de lojas estadunidenses de jogos e livros.
A primeira edição do Guia do Mestre, publicada em 1979, incluiu uma lista de leitura recomendada de vinte e cinco autores e marcou o início de uma relação duradoura entre RPG e literatura. As referências literárias e mitológicas do primeiro Guia do Mestre de D&D, ajudaram a atrair novos fãs e a moldar toda uma geração de jogadores inspirada por obras de autores como J. R.R. Tolkien, Jack Vance, Poul Anderson, Robert E. Howard, Edgar Rice Burroughs e H. P. Lovecraft.
Em 1980 D&D já era uma grande febre e, em 1982, estreou o filme Labirintos e Monstros (Mazes and Monsters, no original), estrelado pelo jovem e pouco conhecido Tom Hanks, que contava uma história sobre RPG baseada na controvérsia sobre a suposta capacidade do jogo de influenciar negativamente a juventude nos EUA. Apesar disso, Labirintos e Monstros representou um grande impulso na popularização de D&D que teria sua alavancada derradeira em 1983, com a estreia de seu próprio desenho animado, o Caverna do Dragão (Dungeons e Dragons, no original), que marcou a infância de crianças do mundo inteiro ao longo dos anos 1980. Foi ainda durante aquela década que os jogos de RPG começariam a influenciar outras mídias, dando origem a um gênero próprio de jogos de videogames, muito popular até os dias atuais.
O jogo confirmaria seu sucesso com o lançamento do AD&D (Advanced Dungeons & Dragons), em 1987, e com o surgimento de gêneros alternativos como: Super-Heróis, com o sistema Champions, além de cenários de Ficção Científica, baseados em uma literatura já existente, como Cyberpunk, que nos anos 1980 discutia o impacto da realidade virtual e a hegemonia de grandes corporações privadas em um futuro próximo e decadente.
No Brasil, a primeira e segunda edições de D&D jamais chegaram a ser publicadas, mas alguns poucos exemplares imigraram dos Estados Unidos para alimentar sectos seletos de entusiastas ainda nos anos 1980, grupos que ficariam conhecidos como “Geração Xerox”. Jogadores brasileiros só iriam poder usufruir de uma edição do jogo em português em meados da década seguinte, quando a primeira Edição brasileira de AD&D foi lançada pela Editora Abril, quase simultaneamente com a 2ª Edição estadunidense.
Lá fora, ainda em 1986, a empresa Steve Jackson Games publicava o jogo GURPS (acrônimo na língua inglesa que poderia ser traduzido como Sistema Genérico e Universal de Interpretação de Personagens), uma grande inovação que permitia aos narradores usar um único sistema de regras para narrar aventuras nos mais variados gêneros e cenários com total compatibilidade.
Então vieram os anos 1990, aquela que seria década de maior disseminação do RPG de mesa no país. No Brasil, GURPS só chegaria oficialmente em 1991, pelas mãos da Devir, atualmente estamos na 4ª edição de GURPS, publicada em Julho de 2015, durante o XIX Encontro Internacional de RPG, realizado no Campo de Marte, em São Paulo. Contudo, o título de primeiro RPG nacional coube mesmo à Tagmar, publicado originalmente naquele mesmo ano de 1991 pela GSA, um jogo concebido e produzido por uma equipe 100% brazuca.
O boom da disseminação do RPG nos anos 1990 será o tema de um próximo artigo. Nos vemos lá!
Por Glailson Santos