LotFP: Veins of the Earth – O Underdark como você nunca viu (resenha)

Uma das recomendações mais unânimes para se tornar um bom Mestre de Jogo é ler, assistir, jogar e consumir o máximo de mídias possíveis. Ora, quanto mais vasta a sua biblioteca mental, mais ferramentas você tem para a narração, condução, improviso e “mestragem” em geral. Isso vale também para jogadores e, de certa forma, para a própria vida.

Voltando o foco ao jogo, ler vários suplementos, ler sobre história medieval, ler sobre um cenário, pode deixar seu jogo mais robusto sim, mas será que realmente a ciência dos elementos históricos ou do cenário bastam para transmitir a sensação de estar naquele cenário? Sim, descrição e retórica podem dar a imersão que você deseja, mas e quando se tem um próprio sistema que oferece elementos práticos para dar essa imersão? Aliás, é um pouco aí no que cada sistema se diferencia, né? Passando sensações específicas.

Quando joguei o módulo oficial de D&D 5ª Edição, Out of Abyss, uma campanha inteira – dos níveis 1 até potencialmente 20 (dá pra chegar lá se esticar um pouco) – passada majoritariamente no Underdark (o Subterrâneo), eu me esforçava como jogador para me sentir oprimido pela escuridão, pela sensação de ter quilômetros de rocha sob minha cabeça, pela ausência de vento, enfim, tentava visualizar esse lugar escuro e alienígena para que ele não fosse só mais uma masmorra escura genérica.

Alguns anos depois me preparei para mestrar Out of Abyss, acessei minha generosa coleção sobre elementos do Underdark e mesmo com toneladas de história e elementos das sociedades, espécies e geografia do continente subterrâneo, ainda não havia aquele elemento prático de imersão.

Até que um cara da internet me recomendou Veins of the Earth.

Veins of Earth é um suplemento, talvez seja mais tecnicamente um cenário, para o RPG OSR chamado Lamentations of the Flame Princess (LotFP). Foi escrito por um cara chamado Patrick Stuart, conhecido aí pelos forums como StuPat.

Veins of the Earth é brilhante em vários níveis. O texto envolve como um romance, as ferramentas de jogo propostas são extremamente práticas e exigem muito pouco preparo, o conteúdo bizarro e alienígena é inspirador e os recursos que o livro oferece permitem transmitir uma sensação de explorar o Subterrâneo de forma absolutamente imersiva.

Descrever uma cidade Drow de forma instigante, apresentar os perigosos bosques de fungos, relatar a aparição de um Devorador de Mentes, enfim, colocar elementos atraentes dos cenários na narrativa são excelentes práticas para a imersão e não devem ser subestimadas, mas nada disso passa a opressão que é estar no escuro, entre túneis, sem o céu, sem pontos de referências, sem as estrelas, sem os sons das planícies, aliás, não há planícies, não há montanhas, não há. Há apenas escuridão e pedra.

Veins of the Earth é sobre escuridão e pedra, numa guerra entre homens e madeira, os homens vencem, numa guerra entre homens e a pedra, a pedra vence. Um centímetro de rocha possui infinitas eras a mais de idade que as mais antigas civilizações. O texto é nessa tônica, é sobre opressão e loucura. Sobre estar sem esperança, desolado e perdido na escuridão de centenas de quilômetros de estreitíssimos túneis sem fim.

O jogo traz mecânicas que deixa o próprio Mestre de Jogo claustrofóbico, num sistema simples de geração de caverna os jogadores se espremerão por estalagmites numa galeria do tamanho da sua cozinha, quase sempre cegos na escuridão, em seguida entrarão numa fresta em que têm de se espremer e se arrastar até ralarem a cabeça e o queixo. Isso. Ralar a cabeça e o queixo. Num túnel da largura do seu travesseiro. Em fila indiana. Com o ar quente e rarefeito. Sem ver nada. Sem saber aonde chegará. Com infinitas toneladas de pedra sob sua cabeça.

Por horas.

Veins é sobre isso, há medo, insegurança, desespero e loucura. O livro é uma excelente ferramenta tanto no sentido prático, de criar mecânicas imersivas, quanto no sentido formativo, de armar o leitor de sensações e impressões bizarras e lamuriosas. O Subterrâneo nunca foi tão perigoso ou alucinante antes.

A Escuridão Sem Fim

O livro é um cenário para LotFP, começa já com um Monster Manual logo após a breve introdução. Tal formato pode ser inusitado, mas o livro tem a praticidade em suas veias e rapidamente o formato se mostra conveniente.

Todavia, nem tudo são flores. Alguns monstros ou criaturas possuem a avidez pela bizarrice típica de LotFP (algumas chegam a ser zoeira mesmo). O livro perde um pouco de universalidade e mostra traços mais particulares de StuPat, não que a particularidade seja ruim, seria uma honra estar numa mesa conduzida pelo autor, mas alguns elementos ou criaturas parecem tão focados em ser esquisitos que parecem descolar e distanciar do cenário, beirando o forçoso em alguns casos.

Patrick cria um Underdark diferente do clássico que estamos habituados. O Underdark clássico com Drow, Kuo-Toas, enormes cavernas com amplas paisagens e civilizações consolidadas, acaba parecendo um Parque Temático da superfície. O jogo no Underdark clássico muda só a pele, o cerne continua o mesmo. Veins consegue mudar justamente o miolo.

Na descrição dos mais de cinquenta monstros, StuPat mostra dois lados: um entusiasta em espeleologia (estudo de cavernas) e um escritor de ficção bizarra. Existe uma tensão entre essas duas facetas e boa parte do livro resulta dessa tensão: o subterrâneo é um lugar hostil, inabitável, de recursos muito escassos e de dificílima navegação, ao mesmo tempo monstros enormes extremamente bizarros povoam esse local sem alimento ou espaço nenhum. Essa proposta pode incomodar aqueles que demandam cenários mais coesos, mas lembre-se que esse é um RPG de LotFP e o bizarro e, as vezes, o ilógico, se mostram divertidos e imersivos, muitas vezes desconstruindo essa postura “realista” que algumas mesas exigem.

Os monstros sempre possuem uma descrição de seu cheiro e seus barulhos, já que a visão é um sentido muitas vezes negado, a caracterização dos monstros varia do alívio cômico, como os Cambrimen e os trágicos Trilobite Knights, aos aterrorizantes e perturbados AEelf-Adal (os Drow do cenário). Falando dos Adal, o livro descreve a dinâmica das principais culturas, que incluem os elfos pré-citados, os Dvargir (uma versão extremamente criativa de Duergares workaholics) e os esquizofrênicos dErO (uma versão AINDA mais insana que os Derros originais). Existem coisas que beiram o inacreditável, como a Antifênix, uma criatura que o livro recomenda rasgar a página após sua aparição, uma centopeia colossal que navega o subterrâneo, existem fósseis que navegam pela pedra atacando tudo aquilo que possui sangue e carne (que eles jamais terão novamente) e também há nojeiras como fungos que ejaculam (StuPat faz questão de usar o termo ejaculate…) fluidos viscosos nos jogadores.

Depois da descrição dos habitantes do subterrâneo, o livro migra para o sistema financeiro, onde luz é o bem mais precioso, seguido de comida, água e demais elementos para a sobrevivência. Falando em sobrevivência o autor estabelece um elegante subsistema de testes de habilidades para decidir o “grau de falha” seja na alimentação, seja para não se perder, seja na loucura. Até hipotermia o livro abrange de forma simples e prática.

Por fim, o livro oferece o seu absolutamente incrível sistema de geração de cavernas, seja na macro ou na micro-escala. Gostaria de poder descrever esse elegante, ágil e perverso sistema de geração aleatório. O sistema não é apenas uma tabela chata de encontros e formatos, ele usa coisas como a distância entre os d6 que você rolou na mesa, o lado que o “1” aponta, e toda uma gama de simples interações que transportam a mesa a uma tridimensionalidade que eu jamais vi um sistema de RPG oferecer em termos tão práticos. As cavernas de Veins of the Earth são absolutamente tridimensionais e, durante a sessão, isso se faz sentir: os jogadores escalarão por uma caverna em forma de rosquinha, entrarão numa fresta tão estreita que deverão passar um a um, se espremendo entre duas rochas enormes por mais de meia hora até chegar numa caverna com uma saída no teto (sempre no escuro).

Seguido disso, o livro oferece mais e mais recursos práticos, seja nomes e características de cavernas, sejam descrições dos tipos de escuridão (essa parte é simplesmente demais), coisas que você pode achar num corpo (a maioria com um gancho potencial), listas de artefatos deixados pela civilopede (a centopeia gigante que coleciona arte) e uma tabela de efeitos de loucura que vai muito além das tabelinhas que vemos no DMG e afins.

Veredito

Layout/Arte (5/6): Ótimo.

Poderia ser 6.

O design gráfico em geral é impecável, muito acima do que somos acostumados de ver em livros de RPG. Existe uma seriedade acadêmica na formatação, uma elegância simples e, acima de tudo, o livro é bonito e intuitivo de ler e folhear. Jez Gordon foi o responsável por esse acerto crítico e ele é famoso por isso. O livro realmente destoará dos demais.

A arte de Scrap Princess é essencial. Ela dialoga com o livro, cria a atmosfera perturbadora e insana que o texto propõe e transporta o leitor a escuridão e bizarrice do Subterrâneo. Mas é compreensível que nem todos gostem desse tipo de arte, uma boa parcela do público curte uma pegada mais Frazetta ou Elmore e acha que o estilo mais contemporâneo do Princess simplório ou tosco. Como dizia um professor meu ”às vezes demora para se apaixonar por Picasso, alguns nunca irão” – fazendo referência a relutância que alguns têm com a arte mais recente.

Portanto, apenas devido à falta de universalidade, temos quase um Sucesso Decisivo!

Texto (6/6): Sucesso Decisivo!

Incrível. Livro que se lê rapidamente, ele não lhe cansa, pelo contrário, ele lhe puxa mais e mais. O texto transmite a claustrofobia, a atrocidade e a bizarrice do eternamente escuro Subterrâneo como nunca.

O desencadeamento das ideias e dos conceitos é impecável (apesar do mapeamento em larga escala de cavernas ser um pouco complexo a priori). Enfim, a leitura é realmente fácil e agradável.

Conteúdo (5/6). Ótimo.

Alguns poucos detalhes são levemente desconexos, alguns monstros ou elementos são forçosos até mesmo para uma campanha bizarra (existe um encontro aleatório com belas mulheres indefesas em meio a escuridão, por exemplo).

Mas isso não ofusca o brilho (ou sombra) dessa obra incrível que realmente transformará suas sessões. Explorar o Underdark nunca mais será igual, o livro é informativo e formativo, além de carregar junto com ele toneladas de ferramentas práticas que tornarão a vida de qualquer mestre mais fácil.

NOTA FINAL: 5

Veins of the Earth é essencial para aqueles que querem se aventurar no Subterrâneo. Ele transporta a experiência do Underdark a um outro nível de imersão.

Você e seus jogadores jamais enxergarão as profundezas da Terra da mesma forma.

Você deve comprar esse livro se:

– Gosta de criar atmosferas verossímeis, onde heróis se desesperam, enlouquecem e se perdem. Onde a escuridão é um ente vivo que os persegue, onde apertadíssimos túneis sinuosos levam seus personagens ao limite, onde descer o abismo abaixo não o leva a um parque temático da superfície com tema “Caverna”, mas sim a uma terra onde a perdição e a escuridão imperam.

Numa guerra entre o homem e a pedra, a pedra vence.

Por Eduardo Vieira
Equipe REDE
RPG

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