Como o mundo acabou? Essa pergunta é feita bem no início do capítulo inteiro que Mutant: Ano Zero dedica à Arca na seção dos jogadores (Cap. 7). Na verdade, não acabou, há um mundo de ruínas, lixo e podridão do lado de fora da Arca, com tantas e tão terríveis criaturas, muito além do que um cronista ou batedor, por mais loucos que sejam em mergulharem profundamente na zona, poderiam narrar. E a Arca? Não existe um lugar que poderiam chamar de porto de seguro, mas o mais próximo disso certamente será sempre a Arca. Se na Zona os mutantes não devem ter tréguas ou descanso, a Arca precisa dar esse momento para respirarem no mais próximo do que acreditam estar seguros. A relação entre Arca e Zona são o coração de Mutant: estar aqui e viver nossa vidinha segura ou mergulhar na Zona porque é preciso encontrar um novo mundo longe desse lugar, que claramente está ruindo, deve dividir os personagens, deve opô-los aos seus antagonistas e aproximá-los daqueles que lhe oferecem uma mão. A fome, a sede, as doenças, os inimigos cada dia mais próximos e a própria senilidade do ancião vão empurrá-los constantemente para lá desse cercado de sucatas que chamam de lar. É para a Arca que sempre deverão voltar, mas não vamos mentir para nós mesmos: ela está longe de ser o éden sonhado.
Já escrevi em outro texto por aqui sobre minha dificuldade inicial com a liberdade narrativa de Mutant, já que venho de anos de uma narrativa muito mais dura. Mas sempre fiz um esforço muito grande nesse sentido e falhei feio quando esqueci disso, sobretudo no tocante à construção e ao desenvolvimento da Arca, que deve um momento de muita diversão, deixando que os jogadores soltem sua imaginação. O excelente passo a passo do livro e uma boa dose de incentivo e criatividade da Narradora devem garantir o brilho desse momento:
A) Para pensar a Arca você deve pensar a Zona: A Pensamento Coletivo ofereceu duas excelentes opções prontas de mapas da Zona, uma para o que foi um dia a cidade do Rio de Janeiro e outra para São Paulo, o Caldeirão de Maravilhas e Terra da Garoa Ácida. Mas mesmo sem nenhuma experiência no jogo, dá para criar seu próprio mapa usando aplicativos e ferramentas simples de desenho ou criando com base no mapa genérico apresentado no livro. E porque pensar a Zona antes de pensar a Arca? Ora, porque quase tudo que vai ajudar no desenvolvimento e o que vai ameaçar sua Arca está ao redor dela, nesse ermo infernal infestado de inimigos. “Quase” porque muitas ameaças não estarão na Zona, mas dentro de casa e é essa parte que vamos dar dicas para explorar. Em nossa mesa optamos pelo Caldeirão das Maravilhas. Com tudo pronto, adquirimos um grande mapa da atual cidade do Rio de Janeiro e fomos tentando reconhecer os lugares no mapa da arruinada Cidade Maravilhosa. Quando estávamos prontos, escolhemos onde queríamos localizar nossa Arca, seguindo a dica do livro, nem no perigoso centro da zona e nem na borda, mas entre os dois, dentro de uma antiga reserva ecológica, bem aos pés do Corcovado. Agora era decidir o tipo de Arca que queríamos.
B) Onde afinal vocês dormem e guardam suas sucatas e seus artefatos? Entre um estacionamento e um shopping, escolhemos um velho boeing para ser a Arca. Ao redor dele, estavam espalhadas dezenas de carcaças de automóveis que serviam de toca aos jogadores e demais habitantes. Um jogador mais criativo resolveu criar um protótipo do avião em tamanho significante, utilizando materiais reciclados, verdade que não chegou ao final dessa obra de arte, mas o que vale aqui é criatividade. Quanto maior a liberdade na criação, mais os jogadores vão sentir que aquele é seu lar que deve ser protegido. No lugar dos antigos tanques de combustível, nas duas asas do avião, estava a única reserva de água, já escassa e que motivaria a primeira entrada dos personagens na Zona (se você for Narradora, pode dar uma olhada no setor especial da Zona “Por um gole d´água”, pág. 203 do livro). Se ao redor do velho pássaro de ferro estavam espalhados quase todos os mutantes, na parte interior da enferrujada aeronave moravam o ancião e os três mais poderosos chefões, tirados diretamente da ficha dos jogadores, dos antagonistas que eles mesmos criaram, um gancho para colocar a própria história de cada um no coração da Arca. Assim nasceram as primeiras intrigas que um dia derrubariam literalmente seu lar. Nada aqui deve limitar os jogadores – o bacana é construir juntos, decidir como e quem serão aqueles que comandarão a Arca. Será um déspota? Um agitador? Como os próprios chefões, negociadores se relacionam uns com os outros? Como se relacionam com os jogadores? Há um espaço privilegiado na ficha de personagem que deve ser utilizado para isso. Não se trata apenas de um distribuidor de experiência, mas de um excelente construtor de histórias, explorem sem muita pressa o espaço reservado aos relacionamentos.
C) O diabo mora nos detalhes: E uma grande parte dos muitos detalhes de Mutant moram certamente nos 12 pontos de iniciais de desenvolvimento da Arca. Não pense apenas pontinhos a serem distribuídos, mas como desejam que sua Arca seja vista por seus inimigos. Se um dia vierem a encontrar outros povos, o que seus inimigos desejarão de vocês? Como eles olharam para vocês? Sua tecnologia atrairá cobiça? Um dia suas luzes poderão ser vistas a léguas de distância mesmo na densa poeira da Zona? Suas muralhas fortificadas devem manter longe até mesmo os mais ousados? Sua comida e sua água manterão o povo em paz ou quem sabe permitirá poderosas alianças? Permitam-se debater tudo isso em grupo.
Cada um desses detalhes é sobre o importante momento inicial de construção, mas a vida continua e quando tudo estiver pronto para que as aventuras finalmente comecem, a Arca e os próprios personagens, serão apenas um grande esqueleto e será preciso colocar músculos e peles sobre tudo isso, será preciso desenvolvê-la e torná-la mais forte. De forma bem básica – e não pobre, o jogo apresenta as duas formas possíveis de desenvolvimento:
1) Encontrar artefatos na Zona e trazê-lo para o cofre da aurora, onde ficará sob a guarda de um cronista, sob o olhar dos chefões e sobre a cobiça dos negociadores, sendo usados para ensinar ao povo da Arca coisas do mundo antigo e fazê-los trabalhar para progredi-la. É importante que os personagens se encontrem sempre divididos entre um item valioso e a segurança e bem-estar de seu povo.
Já tivemos conflitos entre os jogadores quando alguns esconderam embaixo de suas roupas surradas algum item valioso, se o grupo for maduro vai saber fazer disso história, é o que Mutant tem de melhor: oportunidade de construir histórias. O livro básico oferece uma quantidade significativa de itens, mas podemos sempre criar, o jogo convida à criação. Certa vez, ao caçarem uma máquina de guerra que caiu dos céus em uma noite como sempre escura e sinistra (se você for Narradora, olhe a ameaça “estrela cadente” no livro), o grupo de mutantes, motivados pela engenhoqueira, decidiu abrir o tal robô sentinela (era uma sentinela na imaginação deles, bem ao estilo X-Men) e encontraram um tubo de luz reluzente, não sabiam para que diabos servia aquilo, mas pelo desligar geral da destroçada maquinaria, calcularam que aquilo a mantinha ligada e funcionando. Daí em diante, surgiram mil e um planos, usar aquele estranho tubo para gerar energia para a Arca, construir uma poderosa bomba para destruir uma Arca vizinha. Ao final de tudo, a cobiça pelo objeto foi tanta que gerou uma guerra entre três diferentes Arcas, um dos momentos mais fantásticos de nossa longa campanha.
Tudo em Mutant é risco, deixe o grupo perceber como é importante evoluir sua Arca entregando seus artefatos, mas também o valor de preservar para si determinadas coisas. Ao mesmo tempo, mantenha viva a regra máxima “se você tem os outros irão desejar”.
2) É necessário pensar os projetos que estarão sempre desenvolvendo em sua Arca e a lista é grande (Capítulo 7). A mecânica do jogo é bem objetiva nesse sentido: se os jogadores começam uma aventura na Arca, terá uma assembleia onde devem ser pensados os novos projetos. Uma deliberação simples entre os jogadores (e não entre os personagens) e os projetos serão anotados e trabalhados pelos próprios personagens ao longo das próximas aventuras, até que estejam concluídos. Pronto, simples assim? Nada, o primeiro desafio é que os jogadores consigam desligar-se de seus personagens e pensar como “povo” nessa hora.
Já inventamos dezenas de estratégias, uma para cada momento. Na mais ousada delas, os jogadores (e não os personagens) literalmente discursavam aos demais em defesa de um determinado projeto e depois de concluídos os discursos votavam nos projetos apresentados, mas sem poder votar naquele que havia defendido. Isso colaborou para bastante para saírem de si e estarem atento ao que o outro poderia lhes oferecer, favoreceu ainda acordos (vulgo tretas) entre eles a favor deste ou daquele projeto. É uma dica, não uma lei escrita em tábuas de pedra. Não funciona sempre, em alguns momentos faça simplesmente o que o livro indica, uma deliberação simples, já que assembleias longas em todas seções são extremamente cansativas e nem sempre os jogadores estão a fim de discursar. Respeite quando simplesmente desejarem ir logo para a Zona tirar a ferrugem de seus velhos rifles.
Por fim, quando os personagens iniciarem uma aventura na Zona e não na Arca, é a Narradora que deve escolher o projeto a ser desenvolvido. Penso que é um recurso que não deve ser utilizado com muita frequência – uso em excesso pode provocar frustração nos jogadores ao perceberem que a cada sessão estão menos no controle dos destinos da Arca, mas o uso pontual pode gerar coisas bem bacanas. Imagine os personagens voltando de uma longa jornada e descobrindo que o chefão rival construiu para o povo uma gigantesca estátua de si próprio. É meus amigos, o pau vai quebrar, principalmente se entre os jogadores houver um outro chefão. Aqui está também um grande incentivo para não passarem longas temporadas longe de sua Arca – vá sempre, cada dia mais longe, mas não esqueçam que voltar é preciso.
USANDO PROJETOS: Como o trabalho nos projetos afeta a representação depende do grupo. Você pode lidar sumariamente — só rolar dados e seguir em frente — mas os projetos e o trabalho neles podem também gerar eventos dramáticos em detalhes. Eles podem ser ameaçados ou mesmo sabotados sendo frequentemente uma fonte de conflito intenso. Também podem ser usados como pano de fundo para outros eventos no jogo. (Mutant: Ano Zero, pág. 106).
Por fim, como diria Karl Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar” e em Mutant se desmancham muito rápido. Negociadores estão sempre à espreita para sabotar um ou outro projeto e prejudicar seus concorrentes, constantemente um ou mais brutamontes estarão prontos para executarem o serviço a um bom preço. Fora da Arca, nem todos os inimigos são bestas irracionais, muitos sabem que fazê-la ruir por dentro é muito mais inteligente. É preciso explorar com inteligência a fragilidade de tudo que se constrói, não para castigar e deixar os jogadores em um eterno ciclo de frustrações, mas para incentivá-los a estarem sempre alertas, nunca acomodados. É valor de quem sabe a importância de ter sempre uma bala na agulha e um amigo fiel.
Outras Dicas
Artefatos, ameaças e inimigos: sortear ou escolher?
Na grande maioria das vezes, minha opção é sortear, vejo a aleatoriedade como um grande trunfo de Mutant para ser algo original e surpreendente. O uso de cartas é sempre muito divertido. Deixar que os próprios jogadores retirem as cartas de inimigos, ameaças, artefatos e sucatas é melhor ainda. Se não possuírem as cartas, sortear a partir das listas apresentadas pelo livro também funciona. No fim, vão perceber, do ponto de vista dos artefatos encontrados, que estarão dando aleatoriedade ao próprio desenvolvimento da Arca, e que nem mesmo a Narradora é dona de seu destino no jogo. Isso é simplesmente fantástico, mas também não é uma lei em tábuas de pedras e algumas vezes a escolha do inimigo, do artefato ou da ameaça deve ser mesmo pontual A Narradora deve fazer isso quando perceber que seu grupo está pronto para aquele desafio específico e esse é o momento certo de apresentá-lo.
Não tenha pena de brincar com o passado
Certa vez os jogadores sortearam um artefato encontrado em um velho museu e veio a grata surpresa: um gibi. Como na mesa tínhamos fãs da Mulher Maravilha, não tive dúvidas e descrevi como aquela mulher de roupas coloridas estava fantástica nas cenas de luta, usando seu poderoso laço e sua espada e salvando o povo.
Os jogadores colaboraram também, criaram fantasias sobre àquela que passaram a ver como uma poderosa mutante do povo antigo, uma mutante perfeito, quase uma deusa. Pronto! Estava arrumada a intriga e a Grande Maravilha passou a ser adorada como uma deusa na Arca, construíram uma grande estátua, passaram a utilizá-la quando conveniente para seus próprios interesses e o que era um simples achado, acabou interferindo nos destinos da Arca. O clima em Mutant já é bastante pesado, então dê toques de bom humor, não precisa virar comédia pastelão, mas garantam a dose certa de boas risadas.
Em outra ocasião, era um chefão antagonista do grupo que tinha em sua toca um grande pôster encontrado na Zona, não por acaso tinha se autodenominado Johamed, em homenagem ao seu grande ídolo Johamed Ali, uma história que algum batedor deve ter encontrado na Zona e algum cronista deve ter ajudado a interpretar da forma como convinha ao arrogante chefão.
Johamed era um cara mal, mas um tipo tão cativante que quando morreu todos nós lamentamos muito. Brincar com o passado do povo antigo é sempre muito divertido! Não pense apenas em grandes projetos e muralhas intransponíveis, desenvolver a Arca é também desenvolver de forma cativante os personagens e seus antagonistas.
Por fim, chega de histórias ao redor da fogueira, vamos voltar às torres desguarnecidas, o inimigo não descansa lá fora. Em algum outro dia ou noite, quando o smog não nos encurralar em nossas tocas, nos encontraremos.
Por A.F. Silva
Equipe REDERPG
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