Qualquer jogador já iniciado de D&D conhece – ou ao menos ouviu falar – de Forgotten Realms, provavelmente o cenário mais famoso e bem-sucedido do D&D (e talvez dos RPG’s como um todo). Caso nunca tenha ouvido falar, Forgotten Realms foi criado na década de 60 por Ed Greenwood para servir de cenário para suas histórias de infância e eis que vinte anos depois o cenário é transportado para o universo do D&D e se consolida como o cenário mais popular do mundo.
Numa primeira análise o cenário é um exemplo praticamente didático de fantasia medieval, há castelos altivos, dragões voando, camponeses plantando, elfos nas florestas, anões nos subterrâneos e orcs nas montanhas. Mas não parou por aí, a crescente fama dos Reinos (como foi oficialmente traduzido no Brasil) abriu espaço para outros autores e a imensidão do cenário viabilizou que inúmeras temáticas fossem abordadas, mesmo que não fossem correlacionadas cronologicamente se comparadas à História real (Babilônia e Renascimento ao mesmo tempo? Quem se importa?). Quer ir para a Espanha de El Cid? Vá para Amn. Quer ir aos impérios francos? Vá a Cormyr. Até a opção Asteca e Maia existia no continente Maztica. Enfim, para tudo que é tema parecia haver alguma alternativa.
Porém essa vivacidade de publicações e materiais parece cada vez mais escassa nos dias de hoje. Aparentemente Forgotten Realms é o cenário temático da Quinta Edição, seus livros levam nome de personagens icônicos dos Reinos, como Volo e Xanathar, a Green Ronin publicou junto à própria Wizards of the Coast (empresa detentora dos direitos do D&D e do Forgotten Realms) Sword Coast Adventurer’s Guide, mas ainda assim há vários pontos de interrogação sobre o paradeiro de Faerûn. Onde está o nome de Greenwood nas publicações? Vão se ater somente à Costa da Espada (Sword Coast, região populosa e rica na parcela ocidental do continente principal de Forgotten Realms)? E o resto de Toril (Nome do planeta em que se situa Forgotten Realms)?
Essas perguntas não podem ser respondidas com absoluta certeza, mas nós investigamos e tentamos achar algumas pistas em meio a podcasts enterrados, tweets debaixo de tijolos e notícias obscurecidas. Para entender essa faceta de “sumido, mas nem tanto” dos Reinos, vamos dar uma olhada rápida na história das publicações do cenário.
A ERA DE OURO DOS REINOS
Na década de 1980, a TSR (editora que lançou o D&D, posteriormente comprada pela Wizards) estava interessada em saber se havia um “mundo” por trás daquele monte de material que um tal de Greenwood produzia para uma tal Dragon Magazine (a revista de D&D). E sim, havia. A TSR comprou o mundo de Greenwood e, em 1987, lançou a famigerada Grey Box, a primeirona do cenário. Lançava-se também os dois primeiros romances passados nos Reinos.
Em seguida veio a avalanche de publicações da época do AD&D. Box Sets maravilhosos, com mapas de tecido e todo o tipo de tema foram lançados. Conforme já mencionei, havia material para todo gosto, do Alto Egito à Veneza mercantilista. Aventuras, guias de tavernas (estilo o guia Quatro Rodas para restaurantes, é sério, fizeram isso), infindáveis romances e inúmeros suplementos descrevendo as diversas regiões dos reinos. E, ao mesmo tempo, os detalhes acumulavam…
De 1987 a 2007, mais e mais material foi adicionado ininterruptamente aos Reinos, até um ponto que começou a se tornar desafiador criar algo novo sem contradizer algo já feito ou simplesmente fazer algo “errado”. O detalhismo dos reinos passa a ser intimidador na mesma medida que é fascinante, principalmente para os jogadores mais novos.
A QUARTA EDIÇÃO E O “RESET” DO CENÁRIO
Quando folheei o Player’s Handbook da Quarta Edição pela primeira vez, uma das primeiras coisas que me veio à mente foi: “caramba, a mecânica das magias parece diferente, como isso afetará os cenários?”. A conturbada Quarta Edição rompeu aspectos mecânicos que definitivamente impactavam na forma como alguns PdMs lidavam com o cenário, como eles ajeitariam isso? A solução foi dura.
Há quem diga que uma das causas da fama ruim da Quarta Edição é a desconstrução do cenário que ela implicou. Na época lembro de ter ficado indignado, porém hoje em dia entendo que essa escolha ia além de adaptar as mudanças mecânicas para a realidade de cada cenário.
A Quarta Edição decretou a morte da deusa da magia Mystra, adiantou cem anos no tempo, criou a Spellplague (um cataclismo que ocorreu e revirou o universo de Forgotten Realms) e devastou o planeta inteiro. Anos de publicação foram incinerados ou soterrados (adeus, Thay) e os Reinos passaram a ter uma abordagem muito mais superficial do que em qualquer época.
No fim, Faerûn passou a ser um mundo mais ralo e ao mesmo tempo mais acessível. Você não precisava mais ser um gênio dos Reinos para criar algum material para seus jogadores.
Óbvio que os fãs ficaram indignados e é facilmente constatável que Forgotten Realms não teve muito sucesso na Quarta Edição. Um pulo de cem anos matou um monte de personagens dos romances e ou autores ficaram bem bravos também. O próprio Elminster (um dos principais e mais icônicos personagens dos reinos, praticamente um avatar de Greenwood, criador do cenário) ficou um senhor incapaz e delirante (seria um protesto do próprio Greenwood?) no período. Mas ali foi plantada a semente de um conceito interessante, o de desenvolver o cenário JUNTO aos jogadores.
Em programas chamados D&D Encounters e Living Forgotten Realms os jogadores ajudavam a contar a história dos reinos em jogos organizados. A Quarta Edição trouxe isso também, a sua mesa se torna maior que o cenário. É isso que eu não havia percebido quando estava raivoso com a WotC por ter arruinado meu cenário favorito. Passamos anos cultuando tanto a história de cenários em seus romances e belos suplementos que acabamos deixando que esses cenários tomem conta de nossas mesas. É como se Greenwood fosse um Mestre de Jogo acima do Mestre de Jogo e isso muitas vezes acabava limitando os desfechos das mesas e tirando um dos elementos mais fascinantes do RPG, que é a liberdade.
Voltando à Quarta Edição, não é que tudo que foi publicado seja essencialmente ruim. O Neverwinter Campaing Setting é aclamadíssimo, um dos melhores já publicados segundo críticos, mas a verdade é que foram poucas publicações e muitas dessas poucas foram fortemente rejeitadas. Acabava que boa parte dos jogadores optava por jogar com os livros antigos nos Reinos que eles amavam e conheciam.
O “RESET” DO “RESET”
Com a Quinta Edição em vista, num mundo onde o acesso ao cliente era cada vez mais fácil por meio das tecnologias da internet, os designers da WotC resolveram reconquistar o séquito de fãs perdidos na Quarta Edição. A fórmula seria trazer as coisas de volta aonde estavam antes. Mas como desfazer os males da Spellplague? A ideia era fingir que nada daquilo tivesse sequer acontecido, mas não foi bem assim…
O que é irônico é que depois de obliterar 100 anos de história, os designers não queriam deletar os seis anos que se passaram na Quarta Edição. Não estavam dispostos a jogar aquele seu trabalho no lixo. Mas qual seria a solução? Seria possível ter o melhor dos mundos, retomar a Faerûn de antes, mas sem desfazer os acontecimentos da Quarta Edição? Sim e a resposta veio com o “levemente forçado” evento (colocaria mais um par de aspas se possível, mas tudo bem, mudaram para melhor) The Sundering.
A Quinta Edição vem com as consequências do The Sundering. A primeira e mais óbvia é a separação dos mundos (na Quarta Edição o Mundo das Sombras se junta a Toril, o que gera uma série de dores de cabeça para todo mundo), levando a uma remontada geográfica para o que era antes na época da Caixa Cinza ou do seu livro bege da Terceira Edição. Para detalhar alguns desses acontecimentos, a WotC montou um time de novelistas, incluindo Greenwood e Salvatore (autor de romances famosos sobre o drow Drizzt Do’Urden). Alguns personagens queridos e divindades foram ressuscitados e, ao que parece, os fãs estão felizes com as novidades. Não fosse um fato. Como o The Sundering afetou Toril inteira? Como está Thay agora? Como estão as coisas na Terra dos Vales? Aonde está aquele livrão do cenário assinado pelo Greenwood?
Pelo visto a estratégia de publicação da WotC tem sido apresentar a “nova velha cara” dos Reinos paulatinamente. Storm King Thunder mostrou o que se tornou o Norte, Tyranny of Dragons mostrou uma Costa da Espada um pouco diferente, Out of Abyss revelou acontecimentos surpreendentes no Subterrâneo e a Tomb of Annihilation mostrou que Chult (região na parte Sul com clima tropical) voltou a ser uma península. É claro que há algumas contradições na timeline (algumas delas identificadas por brasileiros!), mas os designers sabem que é impossível competir com a “marble tower” (quando os fãs reviram algum conteúdo publicado e constatam elementos além da percepção dos próprios autores).
Além disso a Adventurer’s League é o nome dado aos jogos organizados em que as mesas também ajudam a construir os cenários cooperativamente. Ao que parece a AL é um sucesso. E por último existe o espaço para os romancistas e novelistas darem cor e vida ao cenário (apesar do boato constante que autores como Salvatore e Greenwood estão cada vez mais próximos da aposentadoria).
Sim, o nome dos figurões como Greenwood ou Wyatt (game designer autor de várias publicações relevantes anda sumido das publicações), mas ao que parece o cenário está vivo. Provavelmente você não vai saber o que se passa em Mulhorand pós-Sundering, mas ao que parece os Reinos não estão tão diferentes daqueles que você conhecia não. Outro aspecto interessante é que você pode publicar seu suplemento dos Reinos na DM’s Guild e parece que há muita coisa boa por lá! Lentamente os fãs vão construindo uma Faerûn robusta e vívida como na Era de Ouro.
Eu ainda sinto falta de um livro cobrindo Faerûn inteira, quem sabe no futuro. O que nos resta é acompanhar os lançamentos e aproveitar o trabalho que os fãs têm criado nessa era com mesas online e informações intercontinentais. Os Reinos vivem, com um pouco de mistério é verdade, mas vivem.
Por Eduardo Vieira
Equipe REDERPG