REGRAS DO JOGO (Critérios de Avaliação)
O BÁSICO: Aqui vão as informações físicas do livro.
O BOM: Porque seria legal você ler ou ter este RPG. Hora de louvá-lo.
O MAL: Porque este RPG é ruim para você. Hora de criticá-lo.
O FEIO: Porque acho que faltou algo nesse RPG. Hora de malhá-lo.
…E O ESTRANHO: Anedotário e esquisitices. Hora de gozá-lo.
E VALE?: Porque eu adquiri esse livro e se acho que me arrependi.
O BÁSICO
Dungeon Crawl Classics Role Playing Gam (DCC)
Joseph Goodman
Goodman Games publisher
Edição de 2012. Versão em .pdf com 488 pgs (450 de regras e o restante se ilustrações e/ou propaganda). Capa colorida, miolo p&b com ilustrações coloridas e p&b
Versão física em capa dura disponível pela editora Goodman Games até o momento
Versão em .pdf disponível no site drivetrhurpg por U$ 24,99
A ser editado no Brasil pela editora New Order (newordereditora.com.br)
O BOM
Dungeon Crawl Classics ou DCC é um RPG de fantasia medieval que revive os antigos sistemas de jogo do início do hobby, da época da primeira edição do D&D. E que livro! Um megatério de mais de 400 páginas organizado como se fosse um conjunto de sugestões e orientações para você montar seu personagem, equipá-lo, conquistar feitiços, glória e fortuna, ou cair na cova dos esquecidos. Segue a sessão do Mestre (sim, Mestre, porque o DCC não se importa com estas frescuras de sistema cooperativo; tem um Mestre de Jogo e sua palavra é lei) com mais sugestões, mais dicas, criaturas e aventuras… Tudo embrulhado meio a ilustrações fantásticas em representar a ação dos aventureiros (medalhões como Jeff Easley, que ilustrava Forgotten Realms, ou Russ Nicholson, com seus painéis maravilhosos no Fighting Fantasy, ou mesmo Jim Holloway, cujos trabalhos figuram por todo AD&D, do Monstrous Compendium a Kara Tur e Spelljammer).
Eu digo dicas e sugestões porque o DCC, já no início, não tem pretensões de blindar seu sistema. Nas primeiras páginas ele esclarece que todas as regras podem ser personalizadas, ignoradas ou modificadas ao bel prazer dos jogadores. Ele não esconde que sua inspiração vem do D&D, dos livros que levaram a sua criação e do fulgor criativo dos jogos da década de 1970-1980. E isto é bom. É divertido e leve, agradável de ler e instigante de usar. Suas regras são claras, apesar de muitas vezes dependentes de tabelas, a resolução das situações bem sacada. O estilo também remonta da década de 80, com exemplos bem formulados e as regras bem definidas.
Algumas coisas se destacam no DCC; à saber:
A cadeia de dados: A progressão de dados (d2-d3, etc.) que amplia de modo inteligente a noção de probabilidade no RPG. Ao invés de somar ou subtrair ajustes (comum no d20), jogue um dado diferente, ou acrescente um dado diferente. Você pode se dar muito bem, ou rolar dois 1 com seus dados.
O funil de personagens: Esqueça builds, funções, equilíbrio do grupo. Você começa com um conjunto de personagens 0 nível (uns quatro ou cinco). São fazendeiros, açougueiros, etc. Uma boa parte VAI MORRER. Quem sobrar vai virar um aventureiro. Só esta idéia substitui páginas e páginas explicando motivações e criação de personagem.
Experiência: Ao invés de ficar fazendo cálculos, o DCC propõe ganhar experiência conforme o tipo de encontro, mas diferente de sistemas mais chiques, a coisa é bem simples. Foi difícil ou não, o Mestre viajou na sessão e mesmo assim o grupo sobreviveu ou ele subestimou o grupo e foi tudo muito fácil, etc. Os valores também são simples (0 a 4 xp dependendo da dificuldade), só existe uma tabela e quem atribui xp é o Mestre. Pode não parecer, mas Mestres mais velhos como eu há muito tempo abandonaram o equilíbrio de encontro pela liberdade em criar o encontro que quisermos (só não contem para os jogadores). O DCC “oficializa” e justifica esta ideia.
Tendência: Se alguém não entendia porque o RPG tinha um ar de moralidade duvidosa em sua origem (além do politeísmo descarado, invocação de demônios ou violência relativa e estímulo a saquear ou pilhar tudo que enfrenta), a ideia de tendência no DCC pode ajudar. Bem e mal são secundários diante do caos, ordem e neutralidade. Apesar de aparentemente acharmos que a ordem seja boa e o caos ruim, na verdade existe um abismo de ambiguidade entre estes conceitos. E o DCC, brilhantemente, expõe estas escolhas sem descambar para o moralismo ou relativismo piegas e barato. Como na vida, não existem “espaços seguros”; a aparente tranquilidade que observamos decorre do empate temporário no confronto feroz entre a ordem e o caos. Os pobres mortais jogadores são peões no jogo sujo de forças cósmicas indizíveis, boas ou más, mas sempre manipuladoras. Isto é a receita para heróis.
Feitiços com efeitos escalonados: Para tudo no DCC você joga um dado. Também para lançar feitiços. Quanto melhor o resultado, melhor o efeito. Quanto pior, maior a chance de algo péssimo acontecer a você. Um mesmo feitiço lançado por magos diferentes vai ter efeitos diferentes. Muito legal.
Poucas regras: dizer que um livro com 450 páginas de texto tem poucas regras é gozar da sua cara. Mas no fundo é verdade. O DCC pertence ao gênero atual de OSR (old school revival) que emula jogos de RPG antigos. Um dos paradigmas deste gênero é a economia de regras. Pode não parecer, mas o esqueleto do DCC é bem simples. Também não existem regras para todas as situações, nem complicações de diversas classes e raças, ou vantagens, ou especializações. Depois do básico, o resto são sugestões e dicas de como levar o jogo. Na dúvida de alguma regra, quem decide é o Mestre.
Existem diversas outras coisas no DCC que valem a pena, como a habilidade Sorte, as características de cada classe, a personalização de feiticeiros e clérigos, o duelo mágico, o fluxo do combate, as descrições do “mundo conhecido”, os fenomenais apêndices, as duas masmorras finais, as criaturas e os itens mágicos, etc. Mas se demorar nisto pode estragar o prazer em descobri-los sozinhos, o que não é o objetivo desta resenha.
O MAL
O que eu anteriormente coloquei como dicas ou sugestões seriam as regras do DCC. Elas também são suas salvaguardas. Sem elas o DCC nada mais é que um híbrido estranho do AD&D com o d20. Argumente-se que os diversos cenários de d20 nada mais são que diversos híbridos de outros sistemas. De qualquer forma, podemos nos perguntar para quê comprar então outro híbrido. Não há resposta certa, mas quem não gosta de D&D, AD&D ou d20 pode não gostar do DCC.
O DCC não tem estrutura para ser um sistema genérico, como GURPS, BRP, FATE, Gunshoe ou d20. Simplesmente não é de sua natureza. Ele se presta para fantasia medieval. São necessárias adaptações para ajustá-lo em outros cenários.
Durante as décadas de evolução do RPG uma coisa foi sendo eliminada: tabelas. E o DCC está cheio de tabelas! Falhas e acertos críticos, efeitos de magia, corrupção, itens mágicos, equipamento, resultados… Muitas tabelas! Se você torcia o nariz para Rolemaster, suas entranhas vão se agitar no DCC.
Não espere um RPG interativo, lúdico cooperativo que faça você ter revelações catárticas de autoconhecimento que vai compartilhar na reunião pós-jogo em uma roda de contação de histórias com o DCC. Ele é feito para diversão pura e inconsequente. Sensibilidades delicadas precisam de alguns bules de chá de camomila para poderem adaptá-lo para algo mais alternativo.
Para quem reclamava de ter de calcular ThAC0, a cadeia de dados do DCC é um porre. O livro explica como simular os diferentes dados, mas o mais fácil é adquiri-los. Adquirir dados de RPG em terras tupiniquins sempre foi um problema; seja para achá-los, seja pelo preço cobrado. Vão dizer que no financiamento você podia adquirir estes dados, que você pode simular no tablet e no rolld20, que pode pedir pela net ou que a editora vai produzir, ou as lojas especializadas vão ter, mas o fato é: se quiser os dados vai ter que achar e comprar. Sabemos que existem sistemas que usam d6 e d10, mais fáceis de obter.
Como todo RPG do estilo OSR, o livro básico do DCC tem tudo que é necessário para fazer uma campanha (bom, qualquer campanha com algum esforço por parte do Mestre). Por incrível que pareça, esta abertura total inerente do sistema pode ser assustadora para gerações preocupadas com um tutorial.
O DCC não tem exemplo de partida, ou o que é RPG, ou um glossário de termos. Ele na verdade é meio hostil no que se refere a tutorial. Isto acontece porque (pasmem) sua abordagem é adulta e coerente: ele imagina que hoje você sabe o que raios é RPG, ou tem algum grupo ou vídeo na internet que vai explicar para você. Ele também respeita sua inteligência e coragem para conseguir extrapolar as regras, usar e modificá-las. Se tiver dúvidas ou dificuldades, procure uma aventura pronta (tem duas no fim do livro!) e desenvolva à partir daí. Todos os atuais RPG OSR fazem isto em maior ou menor grau, o que não é ruim, mas não é o usual.
O FEIO
Desde sua escrita ao seu projeto gráfico, assim como suas chamadas e propagandas, o DCC foi engendrado para ser uma réplica fiel de um livro de RPG dos anos 1970-1980. Um cuidado tão grande nos mínimos detalhes torna difícil identificar o que foi feito de propósito ou foi simplesmente uma omissão. Decidi procurar detalhes técnicos e conjecturar uma impressão pessoal de um veterano que não tem contato direto com a comunidade editorial rpgística atual.
Tecnicamente, existem partes no DCC que têm a leitura difícil, principalmente na sessão do ladrão e do guerreiro (as ordens de cavalaria e os tipos de ladrões). O layout gráfico ficou muito confuso e difícil de ler, talvez apenas na cópia em pdf.
Falta para mim uma ficha de personagem. Eu sei que você pode baixar da internet, ou escrever no caderno como fazíamos (e ninguém ia maltratar seu livro xerocando ou arrancando as páginas), mas sempre é legal você ter uma impressão de como os autores imaginaram a ficha de personagem em seu sistema.
Depois de um maravilhoso texto de como cuidar dos problemas monetários em um mundo medieval, na parte de tesouros, o livro acaba por sugerir que você use a tabela de seu RPG preferido. Fiquei desejando uma tabelinha, por mais furreca que fosse, com as ideias do autor do que seriam tesouros monetários.
Com 488 página, meu atavismo bibliófilo sentiu falta de um índice remissivo. Vi imagens do livro físico com fitas de índice ou divisores de capítulos incorporados na borda frontal do livro, o que resolveriam este problema.
Quanto à minha conjectura: para uma geração acostumada com o projeto gráfico de RPGs como Pathfinder, Dragon Age, Shadow of the Demon Lord, D&d 5ª Edição e outros, o DCC é feio, seu projeto um pesadelo, seu texto denso e sem pausa, suas imagens ou toscas ou beirando o ofensivo estereotipado e politicamente incorreto.
Bom, saibam que TODO LIVRO DE RPG DA ÉPOCA ERA ASSIM! O DCC simplesmente concentrou em uma edição uma dose cavalar de tudo que tínhamos nos primórdios do hobby. Hoje só temos estas belezuras gráficas e globalizadas devido ao genitor feio que as antecedeu, com sua psicodélica e vibrante estranheza moralmente duvidosa mas cheia de possibilidades, que pavimentou o caminho para a evolução fantástica que temos hoje. Chamou minha atenção a capacidade do autor em concentrar tantos exemplos em um livro, o que deve chocar o jogador novo, pouco acostumado com um projeto tão diferente.
O ESTRANHO
Ler o DCC é uma viagem no tempo. Me peguei desejando a cópia física para compará-la com o Dungeon Master’s Guide do AD&D, tantas são as referências nele existente. É uma sensação agridoce de nostalgia e felicidade, das piadas internas e dos quadrinhos espalhados pelo livro, das ilustrações simplórias e ao mesmo tempo tão detalhadas. Das cores desbotadas e dos biquínis de cota de malha, ou das descrições dos acertos críticos (meu preferido é o dragão arrancar o coração da vítima e usá-lo para espancar o resto do grupo).
E ao mesmo tempo é um sistema tão comportado! Seja a ser cândida a propaganda nacional do DCC com sua chamada ao som de heavy metal e promessa de brutais aventuras. O grau de violência do DCC não era maior que os medalhões da época (mesmo com meu crítico favorito acima). Quem jogou AD&D ou gramou no Tomb of Horrors original sabe disso. Atualmente, ele é mais comportado do que, por exemplo, Lamentations of the Flame Princess, ou mesmo o Shadow of the Demon Lord. A diferença é que o DCC não esconde sua violência ou a glorifica, mas a apresenta de forma vibrante e como um elemento de jogo normal. A morte faz parte do jogo de aventura de RPG, então por que não fazê-la memorável?
Falando em referências, elas são muitas. Você sabe que deixou de ser um dinossauro do RPG e se tornou antediluviano quando não pára de achar referências no livro de todos os RPGs que você já folheou. Poderia passar horas apontado um e outro detalhe de tantas existentes. Fico curioso em como isto se traduzirá para o português, uma vez que o RPG aqui evoluiu diferente de onde foi criado e muitas piadas, termos e referências talvez fiquem perdidos para os mais jovens, já que os jogadores veteranos são pródigos em se fechar em seus cascos e se comunicarem apenas com seus semelhantes cronológicos (precisamos de algumas cervejas para começar a soltar a língua).
Por fim, os apêndices. Que divertidos apêndices! O apêndice N pode passar despercebido em sua importância, mas caso você queira realmente saber o que é RPG, em sua verdade absoluta e original, melhor do que qualquer blogueiro ou youtuber jamais conseguiria explicar, leia o apêndice N, e depois leia a página 10. Talvez lá você encontre a iluminação.
E VALE?
Você é um antediluviano no RPG, com trocentos suplementos em casa, com seu blog maneiro e antenado, ou apenas escondido nos recônditos de sua mesa de jogo com os amigos, ou talvez jogue todo mês e esteja pensando em migrar para jogar em rede (o último hype do momento). Ou está casado, com filhos e deixou estas coisas infantes de lado, vale à pena comprar o DCC?
Quando homens eram homens e elfos não, existiam as bestas cthônicas que levantavam suas cabeçorras hediondas e ameaçavam a criação. Éramos poetas guerreiros que não se importavam com o resultado de seus atos. Se você em seu íntimo anseia por reviver esta época, o DCC é a besta que ameaça a criação. Ele vai fazer você lembrar das glórias passadas. Talvez você não jogue, talvez você leia escondido com vergonha dos seus instintos naturais. Mas ele vale a pena, nem que seja na versão pdf mais barata.
Você começou a jogar agora RPG, tem medo de ser chamado de noob, ou está em dúvida do que fazer para equilibrar sua party e ter um build vantajoso para depois postar no Facebook, ou criar um avatar legal e aparecer na net na sua sessão de RPG em rede com os amigos, ou na verdade não sabe porque esta porcaria é mais legal do que, digamos, Dark Souls ou Bloodborn, vale à pena comprar o DCC?
Você vai descobrir que dá para jogar com papel, lápis e dados. E que isso é muito legal. Que você pode se divertir ao jogar sem precisar se preocupar. Que morrer faz parte da aventura, e tudo é só um jogo, uma desculpa para encontrar os amigos. Sim, vale à pena, mas fique avisado que ele é uma amante geniosa, que em troca exigirá a coragem de você se entregar ao completo acaso. E isso será muito bom.
Por Marco Poli de Araújo
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