O que faz um jogo de RPG ser bom?
Muitos podem dizer: “Ah, a diversão. Se o jogo foi divertido, foi um bom jogo!”
Bem, ser divertido é o propósito de qualquer jogo, seja futebol, pique pega, xadrez, buraco, damas, Counter Strike ou League of Legends. Se o jogo foi divertido, ele cumpriu o mínimo necessário para não ser um desperdício de tempo, afinal ninguém quer dispender horas de seu lazer em algo que não seja, pelo menos, divertido.
Ser divertido não é o que faz um jogo de RPG ser bom.
Sabe aquele filme cujas cenas lembramos por horas, às vezes dias, depois que terminamos de assistir? Sabe aquela série que nos deixa ansiosos pelo próximo episódio e nos sentindo órfãos quando a temporada acaba? Sabe aquele livro que nos faz passar por uma montanha-russa de emoções e nos sentimos tristes quando terminamos de ler a sua última página? Esses foram bons filmes, séries e livros. Eles não apenas nos divertiram: eles nos marcaram. Valeram cada segundo de nossa vida que gastamos neles e gastaríamos muito mais se pudéssemos.
Um jogo de RPG é bom quando marca.
Uma aventura de RPG pode ser assim? Pode nos marcar por horas e dias depois de ser jogada? Pode nos deixar completamente ansiosos pela próxima sessão? Pode nos deixar tristes quando a história acaba?
Claro que pode! De fato, uma aventura de RPG pode até ser mais marcante que um filme, uma série ou um livro.
Este é o segundo de uma série de artigos que dá algumas dicas sobre como fazer com os seus jogadores um jogo memorável. Essas dicas, se bem aplicadas, podem proporcionar muito mais do que uma sessão agradável. Seu grupo poderá ter histórias para contar por horas e horas depois que a sessão acabar. Seus jogadores podem ficar tão ansiosos pela próxima sessão que irão bolar planos mirabolantes para lidar com os problemas que você colocou para eles. Podem ficar tão chateados quando a campanha acabar que irão insistir para você continuar com ela por tanto tempo quanto vocês puderem.
Em jogos simples, os jogadores até se lembram com orgulho dos feitos dos seus personagens: “Meu paladino matou sozinho um exército de orcs!” “Meu mago lançou uma bola de fogo de 60 pontos de dano!” “Meu espião invadiu um centro de operações supersecreto e roubou planos supersecretos que destruiriam o mundo!” “Meu vampiro derrotou o ancião poderoso e chupou todo o sangue dele!” O problema é que, visto de fora, os personagens ainda passam aquela sensação de mais do mesmo: quantos paladinos não mataram orcs ou outros monstros? Quantos magos não lançaram bolas de fogo poderosas? Quantos espiões não roubaram planos supersecretos? Quantos vampiros não mataram anciões poderosos?
Como Mestre de Jogo, você pode proporcionar aos seus jogadores uma aventura em que eles sintam que seus personagens são únicos. Personagens que viveram uma verdadeira história, não simplesmente uma sequência de encontros com combates e testes de habilidade. Personagens que passaram por situações que proporcionaram emoções realmente inigualáveis, que fizeram brotar lágrimas de alegria ou tristeza dos olhos de seus jogadores.
“Ah, mas você não está pedindo muito de um simples jogo?”
RPG é o único jogo que conheço que simplesmente não tem limites, exceto os limites de quem o joga. Um jogo de RPG pode ser tão bom quanto for o esforço de seus jogadores para que ele o seja. E, em termos de emoções e diversão, as recompensas também não têm limite.
“Ei, eu me divirto muito com meus jogadores sem precisar fazer esse esforço!”
O objetivo dessa série de artigos não é ajudar o seu grupo a fazer um jogo divertido; é ajudar o seu grupo a fazer um jogo inesquecível. Algo que transcenda o rolar dados, matar monstros e ganhar poderes. Ele foi escrito para dar dicas de como superar o mediano, de como elevar seu jogo a um nível maior. É isso que você, como Mestre, deseja?
Se for, podemos continuar.
Vamos começar com algo que talvez seja o mais importante de uma boa aventura: os seus personagens.
Como fazer bons personagens?
Antes de qualquer coisa, um bom personagem, seja dos jogadores, seja do Mestre, precisa ter os seguintes aspectos internos em sua construção:
Antecedentes
O chamado background de um personagem é a sua história pregressa, o seu passado. É ele que diz o que fez o personagem ser quem ele é. Não precisa ser detalhado dia após dia – de fato, ninguém vive sua vida de forma tão relevante o tempo todo – mas precisa conter os elementos que o fizeram chegar até aquele momento na aventura.
Os antecedentes contam o que o personagem se tornou e, principalmente, como ele se tornou o que é. Além disso, ajudam muito na construção do próximo aspecto: a visão de mundo.
Visão de Mundo
Todas as pessoas têm uma visão particular e individual de mundo, mas poucas se dão conta disso. Em geral, a visão de mundo é construída a partir dos antecedentes do seu personagem, mas é no presente que ela atua.
A visão de mundo define como o personagem enxerga tudo que está ao seu redor. Um nobre de um castelo medieval só é leal ao seu senhor se isso fizer parte de sua visão de mundo: ou o nobre entende que a lealdade é uma virtude importante ou ele concorda com a visão de mundo de seu suserano. Se nada disso for atendido, é muito provável que o nobre traia seu suserano na primeira oportunidade em que puder conseguir algum benefício com isso. Esse benefício não precisa ser egoísta: a traição pode ser soltar um criminoso preso injustamente, por exemplo.
A visão de mundo reúne quais são os valores do personagem, como ele julga a estrutura da sociedade ao seu redor, como ele avalia as outras pessoas e como ele se posiciona em relação aos aspectos da sua vida, especialmente os mais dúbios. A visão de mundo traz muito do caráter do personagem.
Todas as ações de um personagem são influenciadas pela sua visão de mundo, que é construída a partir de seus antecedentes. Gastar um bom tempo fazendo o antecedente de um personagem ajuda a deixar ainda mais clara sua visão de mundo e compor o último aspecto: a motivação.
Motivação
Se o antecedente falava sobre o passado e a visão de mundo dita as ações do presente, a motivação de um personagem é sua perspectiva de futuro. O que o personagem quer? O que busca? O que espera de si mesmo no futuro? O que o faz agir?
Ninguém vive simplesmente por viver, todas as pessoas têm um motivo para se levantar da cama a cada dia. Motivações podem ser metas factíveis, como sair da cadeia, ou objetivos inalcançáveis. Um bom policial pode ter como motivação aumentar a segurança nas ruas, mesmo sabendo que isso será uma luta constante. Um ladrão pode ter como motivação ser a pessoa mais rica do mundo, mesmo sabendo que nunca vai chegar lá.
É a motivação que dá ao personagem um sentido para tudo o que faz. Sem motivações, ele perde o sentido da própria vida.
Trabalhando esses três aspectos – antecedentes, visão de mundo e motivação – você pode criar, realmente, um personagem tridimensional. Algo único e profundo. É a interação entre as motivações, visões de mundo e antecedentes de diversos personagens que causarão as situações que darão a trama da sua aventura.
Como fazer boas aventuras a partir dos Personagens do Mestre
“Quer dizer que eu vou precisar escrever páginas e páginas de texto dizendo os antecedentes, visões de mundo e motivações de todos os personagens da minha aventura?”
Claro que não! Você não precisa descrever detalhadamente os aspectos internos de cada personagem de sua aventura! De fato, eles não precisam nem ser escritos, mas precisam ser sabidos. Você, como Mestre, precisa ter pelo menos uma noção de todos eles.
A complexidade de cada um desses aspectos depende diretamente da relevância daquele personagem na sua história. Personagens mais relevantes terão seus antecedentes, visões de mundo e motivações mais detalhados que personagens irrelevantes ou temporários. Esses aspectos não precisam apenas influenciar uma aventura já criada, eles podem inclusive lhe ajudar a construir sua aventura!
Você pode construir uma aventura a partir dos personagens da seguinte forma:
– Crie personagens que tenham relação com o que você pensou para a aventura. Por exemplo: cientistas de um laboratório de zoologia.
– Crie antecedentes para os personagens mais importantes. Um dos cientistas tinha uma vida pregressa com muitas dificuldades financeiras, o que lhe atrapalhou nos estudos, mas o fez ser mais sensível às questões humanas. Outro nasceu em berço de ouro e é filho de outros cientistas, o que o ajudou a ter uma visão mais fria e pragmática do mundo.
– Aproxime visões de mundo conflitantes. A divergência entre a visão do mundo dos cientistas os fez terem opiniões diferentes sobre seus experimentos. Um é a favor da humanização das pesquisas, o outro visa apenas os resultados. Por questões políticas, o mais pragmático acabou sendo o chefe do mais sensível.
– Defina suas motivações. O chefe do laboratório tinha como objetivo aumentar a capacidade intelectual humana e resolver distúrbios de demência a partir de experimentos com chimpanzés. O outro, o mais sensível, deseja tornar a ciência mais humana, trabalhando de forma mais ética e compassiva dentro do laboratório. O segundo cientista era mais próximo dos chimpanzés e não concordava com os maus tratos a que o primeiro cientista os submetia.
– Crie o conflito a partir de uma determinada situação impactante. Em um dado momento, o chimpanzé mais inteligente escapou e, em vez de impedi-lo, o cientista mais sensível auxiliou a sua fuga. O problema é que esse chimpanzé conseguiu influenciar outros símios a se voltarem contra os seres humanos, o que gerou a escravização de toda a Humanidade e a criação do Planeta dos Macacos!
Veja como, de uma premissa comum de história (a dominação do mundo), todo um background envolvendo os personagens tornou a premissa muito mais crível e singular. O enredo que deu origem à história surgiu de um conflito natural entre visões de mundo e motivações, ativado por uma determinada situação crítica. Tudo que o autor precisou fazer foi juntar pessoas de posturas opostas e, com um simples gatilho (a fuga do chimpanzé), voilà! todo um enredo de história acontece.
Com o desenrolar da aventura, a interação entre os personagens dos jogadores e os do Mestre fica muito mais fácil se os antecedentes, visões de mundo e motivações forem bem definidos. Naturalmente, conflitos entre aspectos que forem díspares irão surgir e deixar tudo ainda mais interessante!
Sobre os principais personagens do Mestre: Os Vilões
Por último, os antecedentes, visões de mundo e motivações ajudam muito na construção do personagem do Mestre mais importante da história: o “Vilão”.
Primeiro, esqueça os antagonistas caricatos que se colocam como vilões desde o início. Que parecem estar ali somente para dar oportunidade ao mocinho de parecer heroico.
Há algo que faz toda a diferença em uma narrativa com bons vilões:
“Ninguém é o vilão de sua própria história!”
Em uma das obras de Dan Brown, “Inferno”, aparece um vilão que deseja destruir um terço da humanidade. Esse simplesmente foi um dos melhores vilões que já vi em muito tempo. Sem dar spoilers, ele acreditava piamente que matar mais de dois bilhões de pessoas poderia salvar a raça humana da completa extinção. E ele deu bastante trabalho. Alguém que acredita fazer o bem – um vilão que se vê como um herói – pode ser um dos tipos de vilões mais difíceis de serem impedidos.
Bons vilões não se veem como vilões. Eles podem até ter motivações altruístas, acreditando piamente estar fazendo algo bom, mesmo que por meios radicais. Mas há outra perspectiva para se criar um bom vilão. O jovem ator, cantor e escritor de livros de fantasia Chris Colfer (da série Glee e do romance “Terra de Histórias: o Feitiço do Desejo”) tem uma frase incrível:
“Um vilão é apenas uma vítima cuja história não foi contada.”
E se vilões fossem, simplesmente, vítimas das circunstâncias? Por exemplo, Lorde Darth Vader. O que faz Vader ser tão fantástico, muito além de seu visual sinistro e sua respiração assustadora, muito além de seu controle incrível da Força e sua habilidade com o sabre de luz, são seus aspectos internos. Vader foi um jedi que teve como antecedente o fato de ter sido escravizado quando criança e sua mãe ter sido morta em um momento em que ele não estava presente para salvá-la. Sua visão de mundo sempre foi de alguém contrário à ordem e à hierarquia, um rebelde que se achava melhor do que tudo e todos, mas que nunca conseguiu nada do que realmente quis: ter sua família livre e viver seu amor com Padmé.
Sua motivação foi voltar-se contra essa ordem até o momento final de sua vida, quando se redimiu ao ver no seu filho a concretização da família que nunca teve.
Bons vilões costumam conduzir suas ações “vilanescas” por causa de um desses dois motivos: a busca de um objetivo muito importante, às vezes até altruísta (sob seu próprio ponto de vista), ou colocando-se como uma vítima das circunstâncias e reagindo contra o mundo. Crie seus aspectos internos, junte a eles um poder considerável e um bom visual “vilanesco” e, voilà! você sempre terá o vilão perfeito para as suas aventuras.
No próximo texto falo mais sobre elementos de uma boa história e outras dicas de como fazer suas sessões de jogo serem inesquecíveis.
Um grande abraço!
Por Fábio Firmino
Equipe REDERPG
Primeiro artigo da série:
Como jogar um bom jogo de RPG: Tornando-se um bom Jogador!