A Cultura do Estupro no RPG

“Usuário: Cara, estupro coletivo em PJ é foda de fazer, considerando que no jogo se presume que pessoas “normais” (não PJ) tem 10 de atributo no máximo. Esse é o tipo de cena que tem ser extremamente bem planejado para que tenha um contexto realista na história em curso e não as fantasias punheteiras de 1 ou 2.”

MODERAÇÃO: Esta comunidade não é nem de longe o lugar para discutir mecânicas de estupro coletivo in-game. Favor NÃO COMENTAR, nem incentivar este tipo de postagem.

MODERAÇÃO: Novamente, NÃO COMENTEM SOBRE ESTE POST. ELE SÓ NÃO SERÁ APAGADO PARA SERVIR DE EXEMPLO. ESTE TIPO DE ATITUDE É ABSOLUTAMENTE CONDENADA PELA MODERAÇÃO DESTE GRUPO.”

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O comentário acima e a pronta resposta da Moderação aconteceram semana passada no nosso grupo D&D Next do Facebook, em uma postagem feita por mim. A postagem foi, ironicamente, um compartilhamento de uma campanha que foi divulgada pela fanpage do blog Livro dos Espelhos, sobre a ética em jogos de mesa como o RPG: #NãoNaMinhaMesa. O usuário do comentário, obviamente, foi banido do grupo.

Na mesma semana, aconteceu o hediondo caso do estupro coletivo de uma moça de 17 anos por 30 homens que chocou o nosso país. Tanto a postagem do infeliz, quanto o crime hediondo, são partes do mesmo problema: a Cultura do Estupro na sociedade brasileira. E sim, infelizmente, existe a Cultura do Estupro também no RPG.

Mas o que é a Cultura do Estupro? A imagem abaixo explica de forma bem objetiva:

Cultura do Estupro

Antes de explicarmos como a Cultura do Estupro acontece nas mesas de RPG, é preciso deixar uma coisa bem clara: nenhum problema você usar temas mais “pesados” em seus jogos de RPG, desde que todos os jogadores sejam maiores de idade, desde que o Mestre/Narrador informe previamente que irá usá-los, e desde que TODOS os jogadores concordem com o uso deles. Não é disso que estamos falando.

Não estamos falando de jogos em que temas como esses fazem parte do cenário e são tratados dentro do contexto da ambientação, como em Guerra dos Tronos RPG.

Existe uma enorme diferença entre um jogo onde pode existir a possibilidade de acontecer um estupro de um personagem, e um jogo em que o estupro vai acontecer porque existe uma personagem feminina ou, pior ainda, porque quem interpreta essa personagem é uma jogadora. E vai acontecer porque o Mestre/Narrador quer ou permite, porque jogadores da mesa querem estuprar a personagem de outro jogador, e porque os demais jogadores sentem prazer em que isso aconteça ou simplesmente se omitem.

Nós já falamos aqui na REDERPG há dois anos sobre casos de assédio nas mesas de RPG em um artigo traduzido que publicamos. E recentemente tivemos uma vídeo-resenha sobre o Machismo no RPG.

Mas diante do que tem acontecido aqui no nosso país, onde a Cultura do Estupro tem predominado em nossa sociedade, percebemos que ela se reproduz, infelizmente, também nas mesas de RPG. Além dos casos de assédio sexual às jogadoras.

Desde o primeiro artigo, vários casos vieram à tona. As próprias jogadoras passaram a se organizar e lutar contra isso. Se nem sempre essas situações se configuraram como assédio, com certeza elas mostram como a Cultura do Estupro é comum no nosso hobby.

A jogadora V. é apenas um dos muitos exemplos do que acontece. Ela teve duas personagens dela estupradas, duas personagens diferentes em mesas diferentes. Assim como ela, várias jogadoras passaram por isso. Suas personagens foram estupradas porque eram personagens femininas interpretadas por jogadoras. Não havia contexto, não havia história. E os cenários não necessariamente se propunham a esse tipo de coisa. Os estupros aconteceram porque o Mestre quis fazer a cena ou permitiu que outro jogador fizesse usando o personagem dele para executar o ato contra a personagem da jogadora.

Estamos falando de simulação de violência sexual gratuita e sem contexto em uma atividade lúdica, que deveria ser divertida para todos. Diversão para todos: esse é o grande objetivo do RPG.

Então, se uma pessoa sai abalada, ofendida ou humilhada de um jogo de RPG, tem alguma coisa errada com esse jogo, não com a pessoa. E não, não é porque tem que ser politicamente correto (como se isso fosse errado) ou porque a pessoa é “sentimental”, “sensível” ou está fazendo “mimimi”. O jogo está errado, não a jogadora. Culpar a pessoa aviltada, a vítima, é a principal característica da Cultura do Estupro.

E quando esse tipo de coisa é questionado, ouve-se a “pérola”: “Não gostou, sai da mesa!”. Nada mais reprodutor da Cultura do Estupro do que essa frase.

É a inversão total de valores. Ou seja, uma jogadora tem sua personagem estuprada gratuitamente e ela é a errada, enquanto que quem tem o prazer doentio de fazer isso é que está certo?! Essa é a pura reprodução da Cultura do Estupro dentro do RPG.

É ao mesmo tempo a banalização e glamourarização de um crime hediondo dentro de um ambiente lúdico.

Que tipo de jogador é esse que não respeita uma mulher na mesa, que não tem empatia com o próximo (imagina se a jogadora já sofreu algum tipo de abusou ou ataque sexual na vida e vê isso acontecer com sua personagem em um jogo de RPG?), que tem prazer em fazer seu personagem cometer um estupro, e ainda acha que está certo?!

Esse é o tipo de jogador que não pode mais existir no nosso hobby.

Não que eu ache que esse tipo de gente um dia vá cometer um estupro de verdade (pelo menos, assim esperamos). Mas é o mesmo tipo de cara que também têm prazer em assistir um vídeo de 30 criminosos estuprando uma moça. É um reprodutor da Cultura do Estupro.

Eu quero acreditar que muitos são apenas jovens sem noção, que acham que tudo é “zoeira”, e que não têm empatia pelo sexo feminino. Mas está mais do que na hora de se tocarem, de perceberem que estão sendo misóginos, machistas e coisa pior. Estão trabalhando contra o RPG e afastando jogadoras em potencial. Estão denegrindo o RPG.

Colocar elementos de violência sexual em seu jogo de RPG não o tornará mais “maduro”, fidedigno ou verossímil. Ele se tornará apenas mais violento e mais propenso a ofender algum jogador ou jogadora.

Ninguém quer que seu personagem seja estuprado. Se alguém disser o contrário estará mentindo e sendo hipócrita. Então não faça isso “de zoeira” com o personagem alheio o que você não iria gostar que fizessem com o seu.

Quer realismo? Trabalhe mais os aspectos econômicos e políticos. São eles que moveram a História do mundo real, não a violência sexual.

O RPG é um hobby de todo mundo e para todo mundo. É, dentre muitas coisas positivas, uma poderosa ferramenta de inclusão social. Não de preconceito e de exclusão.

E acima de tudo: respeitem as jogadoras! E vamos acabar com a Cultura do Estupro dentro do RPG!

Por Marcelo Telles
Coordenador da REDE
RPG

Estupro na D&D Next

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