Fu Leng, o kami negro, o filho maldito do Sol e da Lua.
Abandonado por seus irmãos em uma cova perdida que levava ao mais profundo dos infernos. Obrigado a contemplar os mais terríveis horrores, até dominá-los e se tornar o senhor do Jigoku. Corrompido pelas Terras Sombrias, carregou sua mácula até rastejar de volta à superfície, onde viu a esplêndida terra que seus irmãos haviam erguido sem ele.
Repleto de mágoa e inveja, corrompido pelo ciúme e o desejo febril de destruir tudo que seus irmãos construíram, Fu Leng reuniu os pesadelos do Jigoku e formou um exército de demônios, partindo para cima do Império com horrores que os homens jamais puderam imaginar. Foi quando um pequeno homem estrangeiro, chamado Shinsei, conseguiu reunir os mais valorosos homens de cada clã e, penetrando nas terras de Fu Leng, derrotar o kami negro e aprisioná-lo em doze pergaminhos. Estes foram os Primeiros Trovões.
Mil anos depois, em uma escavação nas profundezas do Palácio Bayushi, o Campeão do Escorpião encontrou pergaminhos com uma estranha profecia que anunciava que o último Hantei permitiria o retorno de Fu Leng e traria a danação ao Império. Vendo que as outras previsões a ela relacionadas poderiam referir-se ao seu tempo, Bayushi Shoju entendeu que a profecia tratava do Imperador Hantei XXXVIII, que ocupava o trono, e planejou uma forma de matá-lo.
Seu golpe foi bem-sucedido, mas o filho de Hantei ainda estava vivo e assumiu como o novo Imperador. Shoju foi morto e sua esposa, Kachiko, tomada como concubina. Por vingança, Kachiko envenenou aos poucos o novo Hantei, enfraquecendo seu corpo, ao mesmo tempo em que Yogo Junzo, um shugenja fiel a Shoju, abriu o primeiro Pergaminho Negro.
Uma série de acontecimentos terríveis varreu o Império. Demônios marchavam em direção à capital. Alguns Mestres Elementais, os maiores shugenja de Rokugan, foram corrompidos. O Imperador, enfraquecido pelo veneno de sua concubina, foi possuído pelo espírito de Fu Leng, que crescia em poder para cada Pergaminho Negro que era aberto.
Um novo grupo de Trovões foi convocado, desta vez liderado por um enigmático personagem conhecido apenas como o Ronin Encapuzado. Com a ajuda de Togashi Yokuni – que se revelou o primeiro Togashi, irmão de Fu Leng – e de Kachiko, os Novos Trovões puderam chegar à Sala do Trono e enfrentar o kami negro encarnado no corpo do Imperador.
Fu Leng foi derrotado quando Mirumoto Hitomi retirou o último Pergaminho Negro do peito de Yokuni e o abriu, permitindo a possessão completa do grande kami, mas ao mesmo tempo tornando-o mortal. Distraído por Kachiko, Fu Leng recebeu um golpe mortal de Doji Hoturi em seu coração e um de Toturi cortando sua cabeça, garantindo a segunda vitória de Rokugan sobre o Deus Negro.
Mas o que aconteceria se ele não tivesse sido derrotado? Se, contrariando os planos de Togashi Yokuni, os Trovões não tivessem conseguido matar Fu Leng e ele realmente conquistasse o Império?
É disso que trataremos nessa série de contos. Nas profundezas do Jigoku, Fu Leng sonha com um Império sob seu comando. Venha, samurai, e enfrente o que acontece quando os demônios dominam a terra. Quando a Mácula é um presente e a morte sua única escapatória. Quando a honra torna-se apenas uma vaga lembrança de tempos melhores e o medo é tudo o que impede os poucos sobreviventes de serem aniquilados… ou pior.
Penetre os sonhos vis de Fu Leng e viva Mil Anos de Trevas.
O Trovão Partido
“O Dia do Trovão mudaria o mundo como o conhecíamos, revelando o nascimento de uma nova e magnífica Rokugan.”
– Miya Satoshi, Arauto Imperial, 1128 pelo Calendário Isawa, o sexto ano do Glorioso Reinado de Hantei XXXIX.
O palácio tremeu com o som de um trovão. Os olhos de Doji Hoturi se estreitaram quando ele olhou pelo espaço de uma ameia. Ele mal conseguia ver o campo de batalha lá fora, por causa da fumaça. Raios golpeavam a terra como se estivessem sob o comando de um shugenja invisível. Ele podia sentir o cheiro dos mortos-vivos. Os estandartes dos clãs tremulavam sobre o caos. A maioria estava rasgada, rota e queimada.
“É apenas uma batalha,” disse o estranho. “Você já viu outras antes.”
“Não como essa,” disse Hoturi. “Viemos salvar o Império do Jigoku, mas ele já chegou. Que vitória poderíamos aspirar ainda após esta perda?”
“Você se surpreenderia com o quanto ainda tem a perder,” disse o estranho. “Ainda há esperança.”
“A que custo? Somos samurais planejando matar o Imperador. Se vencermos esta batalha, a que propósito serviremos em seguida?”
O estranho deu de ombros. “Se eu simplesmente lhe desse a resposta, você não teria aprendido nada.”
Hoturi riu.
“Reflita sobre isto,” disse o estranho. “Eu preciso ver os outros.” O Ronin Encapuzado recuou pra as sombras, deixando Hoturi sozinho. A Garça assistiu sozinha a batalha por muito tempo.
Hida Yakamo fez uma careta quando a viu entrar – a menina que tinha tirado sua mão. “Fortunas,” o Caranguejo praguejou, olhando para Toturi. “Não me diga que ela é uma de nós!”
Toturi assentiu brevemente. “Você tem algum problema com isso?” disse ele, fitando o Caranguejo com seu olhar frio típico.
Yakamo sacudiu a cabeça. “Conheço o meu dever.”
Toturi assentiu.
“Se falharmos por causa dela,” Yakamo sussurrou, “eu vou matá-la.”
Toturi assentiu novamente.
“Depois que acabar tudo isto, eu quero ter uma palavrinha com quem escolheu os Sete Trovões,” acrescentou o Caranguejo, sarcasticamente.
“Você desafiaria as forças do próprio destino?” a voz etérea de Togashi Yokuni ecoou momentos antes do Dragão entrar na câmara escura. “Você precisará de tal bravura, creio.”
“Estamos prontos?” Yakamo perguntou secamente. “Vamos acabar logo com isto!”
Toturi olhou para o Caranguejo. “Por que tanta impaciência?”
“Estamos prestes a lutar contra um deus,” disse Yakamo. “Iremos vencer ou iremos morrer. O Caranguejo espera por isso há onze séculos. Estou cansado de esperar.”
“Iremos começar,” disse Yokuni, “assim que a Fênix chegar.”
As portas atrás deles se abriram.
Então é isso que se sente antes de morrer, pensou Isawa Tadaka quando Tsukune e Osugi o ajudaram a entrar pela passagem secreta. Os outros Trovões esperavam por ele. Com uma estranha clareza ele notou o choque em seus rostos. A carne maculada de Tadaka estava queimada e ensanguentada por seu duelo com Isawa Tsuke.
Tsukune implorou para que Togashi Yokuni não forçasse Tadaka a entrar na batalha, mas ela teria o mesmo resultado se implorasse a uma montanha. A decisão não era de Yokuni; Tadaka não permitiria ser retirado deste lugar. Melhor morrer de pé, cumprindo seu destino, que morrer na retaguarda enfiado em uma barraca. Finalmente, Tsukune e Osugi viraram-se para sair. Osugi olhou para trás, dando-lhe um sorriso reconfortante. Tadaka teria sorrido de volta, mas as ataduras que cobriam seu rosto arruinado ocultaram o sorriso. Tsukune nunca olhou para trás. Tadaka nunca dissera a ela o que realmente sentia. Era uma coisa terrível, morrer com remorso, mas ele não merecia menos que isso. Sua busca pelos Pergaminhos Negros havia destruído o seu clã.
Talvez a redenção seja muito a se aspirar.
O Mestre da Terra olhou para cima assim que as portas da Sala do Trono se abriram.
Yokuni disse algo quando se preparavam para entrar na Sala do Trono. Otaku Kamoko não o ouviu; seus pensamentos estavam na luta. A samurai-ko do Unicórnio sacou sua lâmina, trocando seu apoio de um pé para o outro. Ela apenas lamentou que esse demônio fosse covarde demais para encontrá-los do lado de fora, onde ela poderia enfrentá-lo montada em seu nobre Hachiman. Kamoko riu com o pensamento e lançou-se ansiosamente para a Sala do Trono.
A Dama Guerreira fez uma pausa, seus olhos estavam arregalados de espanto. Dois grandes dragões se retorciam em um combate mortal. Um momento antes, um tinha sido Togashi Yokuni; o outro tinha sido o Imperador. Ver os dois kami em sua forma verdadeira encheu o coração da Dama Guerreira de medo pela primeira vez.
Com um estalo alto, o corpo serpentino de Yokuni pendeu flácido nas garras de seu irmão negro. Fu Leng lançou a criatura derrotada no chão; o dragão desapareceu, sendo substituído pelo corpo de Togashi Yokuni. O Imperador também apareceu, sentado em seu trono rachado, sorrindo com a vitória.
Kamoko fez uma pausa, espada pronta. Por um momento, teve a sensação de que alguma coisa estava errada, como uma batida perdida em um ritmo constante. Expulsando o sentimento, ela suspendeu sua katana e deu a carga.
Mirumoto Hitomi ajoelhou-se sobre o corpo de Togashi, seu coração batia rápido. Ela mal se encolheu quando Kamoko colidiu com o muro, jogada de lado por um simples golpe do Imperador. Yakamo e Tadaka deram a carga em seguida; ela ignorava a batalha. Sua mão direita, a Mão de Obsidiana, movia-se por vontade própria, seus dedos arranhavam o peito do Kami caído. A mão parecia ansiosa por provar seu sangue, rasgar sua carne, arrancar seu coração. Ela sentiu o desejo urgente de resistir. O elmo do Campeão do Dragão se foi, seu rosto estava tranquilo.
“Faça,” Yokuni sussurrou. “Cumpra seu destino. Complete o enigma.”
Hitomi parou, seus dedos pairavam sobre o coração de Yokuni. Sua mente, normalmente clara e focada, estava cheia de perguntas. Poderia ela matar seu próprio daimyo? Por que ela não deveria? Esta criatura, que trouxe tanta dor à sua vida, que mandou seu irmão para morte para que seu precioso Dia do Trovão continuasse como planejado. Hitomi observou a batalha. Hida Yakamo olhou para trás, fitando-a com seus olhos negros e suínos. Ele não valia a vida de Satsu.
“Meu senhor,” disse Hitomi, inclinando-se para baixo para sussurrar ao ouvido de Togashi Yokuni. “Não haverá mais enigmas. Viva e saboreie seu fracasso.”
Hitomi viu neste momento algo nos olhos de Yokuni que ela jamais havia visto antes – surpresa. Com suprema satisfação, ela virou-se e deixou a Sala do Trono.
“Hitomi!” gritou Toturi quando a Dragonesa saiu. “O que você está fazendo?”
“Eu te disse!” Hida Yakamo gritou, lutando enquanto grandes correntes negras o prendiam ao comando de Fu Leng. “Eu avisei para não confiar nela!” No chão ao lado de Yakamo, Isawa Tadaka fumegava. Fu Leng tinha virado a magia de purificação do Mestre da Terra contra seu próprio corpo maculado.
O Imperador riu. “Vocês podem invejá-la, Trovões,” disse ele. “Ela será a única a sobreviver a este dia.”
Toturi fez uma careta quando sacou a espada. “Você não é o Imperador!” gritou ele, em desafio.
“E você não é um deus,” disse o Imperador. “Lute comigo e morra!”
“Ele está certo,” disse o Ronin Encapuzado calmamente. “Você não pode vencer; Hitomi fez sua escolha. O reino das trevas começa agora.”
“Não!” gritou Doji Hoturi.
O Leão caído encontrou o olhar de seu amigo e assentiu. Juntos, eles deram a carga. A espada de Toturi abriu um caminho limpo pelo pescoço do Imperador; Hoturi perfurou seu coração.
O Imperador não vacilou. Sua cabeça não tombou, mas ficou simplesmente pairando sobre seu pescoço. Ele encheu a sala com uma gargalhada e enterrou o punho no peito de Doji Hoturi. Com um golpe com as costas da mão, ele tirou a katana de Toturi de seus dedos.
“Trovões!” convocou Toturi, cambaleando para trás.
Ao lado de Toturi, o mestre devastado da Terra cambaleava sobre seus próprios pés. Yakamo estava ao seu lado também, com grilhões quebrados em seus pulsos e tornozelos. “Bem, general,” perguntou Yakamo. “O que fazemos agora?”
“Vocês correm,” respondeu Tadaka. “Eu morro.”
“Tadaka, o que você está…” disse Toturi, até o Mestre da Terra começar sua magia. Com uma brilhante explosão de energia, Tadaka preencheu a Sala do Trono inteira com fogo.
“Estamos perdidos,” Toturi sussurrou, voltando para o corredor.
“Ainda não, general.” Yakamo respondeu. Puxando o Leão Negro pelo braço, ele se virou e correu.
A mão do Imperador apertava a garganta de Bayushi Kachiko. Um sorriso selvagem se distribuía pelas feições de Fu Leng. Na outra mão, ele segurava o Décimo Segundo Pergaminho Negro firmemente selado, arrancado do peito de Togashi. Energia negra crepitava das feridas que Toturi e Hoturi lhe fizeram. Como Yokuni poderia esperar que fossem capazes de vencer algo assim?
“Uma armadilha, o tempo todo,” disse ele, olhando o pergaminho com uma expressão confusa. “Divertido…” Ele olhou nos olhos de Kachiko. “Seu plano falhou. Shinsei escolheu mal seus Trovões.”
Kachiko nada disse.
“Em silêncio, pela primeira vez?” Fu Leng gargalhou. “Togashi está morto. Em breve, seu Império estará morto. Você perdeu. Não é nesta hora que você se insinua para o vencedor, como sempre faz?”
“Você venceu?” ela disse com a voz rouca, encontrando seu olhar.
Fu Leng franziu a testa. “Há alguma dúvida?”
“Mate-me, então,” ela cuspiu em seu rosto. “Eu prefiro morrer a ver o Império governado por você! Você pode até destruir Rokugan, Fu Leng, mas apenas um Imperador é capaz de governá-lo!”
Fu Leng suspirou e soltou sua presa. Kachiko caiu no chão com um estalo. “Que triste,” disse ele, enfiando o Pergaminho Negro em seu obi. “Sempre uma manipuladora, mesmo diante da morte iminente. O que você espera conseguir? Você sabe? Ou está apenas esperando que algo melhor aconteça?”
Kachiko não disse nada, mas permaneceu encarando os olhos do Deus Negro.
“Tudo bem, então,” disse ele com uma risada tolerante. “Se tudo o que deseja é viver, então é isso que lhe darei. Eu sou, apesar de tudo, um deus benevolente, não sou?” Seu sorriso gelava ainda mais que a sua carranca. “Você vai me servir como fez antes, como minha Imperatriz e concubina. Eu governarei Rokugan como Imperador. Ao meu lado, você testemunhará mil anos de escuridão.” Ele ajoelhou-se e puxou-a para perto de si, sua respiração fria exalava sobre sua bochecha. “Você irá lembrar que o Império que eu criei foi feito ao seu pedido, e quando você teve a chance de me impedir… você falhou.”
Com um empurrão, ele a afastou, deixando-a sozinha na Sala do Trono com os corpos dos mortos. Os dedos de Kachiko cautelosamente tocaram sua garganta. Lágrimas desciam pelo seu rosto. Ela tinha salvado o Império da destruição pura e simples, mas ser governado por um deus negro não seria um destino muito pior?
Conto de Rich Wulf
Introdução e tradução do conto: Fábio Firmino
Equipe REDERPG