Eros e Tanatos. Antes que Freud desse esses nomes para as duas forças antagônicas e inseparáveis, os impulsos criativos e destrutivos da consciência humana, forças que normalmente chamamos de “bem” e “mal”, elas ganharam em 1886 uma imagem literária que agora faz parte dos mitos modernos da humanidade e que inspiraram centenas de outras histórias e filmes e personagens, como o Hulk, criado por Stan Lee. Eu me refiro ao clássico da literatura fantástica vitoriana, “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, de Robert Louis Stevenson, aqui no Brasil conhecido como “O Médico e o Monstro”.
A história começa com a apresentação de Gabriel Utterson, um advogado respeitável de Londres. Um homem decente, severo consigo mesmo. Uma de suas poucas distrações são os passeios semanais com seu parente, Mr. Richard Enfield. Durante uma dessas caminhadas, ao passarem por uma certa porta que chamava a atenção na rua, Mr. Enfield conta uma história terrível: como ele testemunhou um homem derrubar e pisotear cruelmente uma jovem e como esse homem misterioso indenizou a família da menina, com um cheque assinado por outra pessoa. O nome desse homem estranho e cruel é Edward Hyde.
Esse fato perturba Utterson, já que esse é o nome do beneficiário do estranho testamento do Dr. Henry Jekyll, um respeitado médico e um dos mais antigos amigos do advogado. Tentando descobrir a relação entre seu amigo e esse tal de Hyde, Utterson faz suas investigações mas não consegue respostas, nem do médico e nem de seu protegido (ou chantagista, que seja). Quando Hyde mata um membro do Parlamento em um acesso de fúria e seu posterior desaparecimento, parece que a vida de Henry Jekyll está para tomar um rumo para melhor, porém uma “misteriosa doença” faz que o médico se isole… Até que em uma noite fria, Utterson é forçado a invadir o escritorio de Jekyll, apenas para encontrar o corpo de Hyde, que cometeu suicídio. Aturdido, Utterson começa a ler um documento escrito por Henry Jekyll antes de seu desaparecimento, uma confissão que talvez explique o que aconteceu… A descoberta da verdade revelaria algo assustador…
Escrita como um mistério, hoje em dia todos conhecem a surpresa do final: Henry Jekyll e Edward Hyde eram a mesma pessoa! Ou melhor, Edward Hyde é a personificação dos instintos inferiores do médico, da mesma forma que o Hulk é a personificação dos instintos violentos do Dr. Bruce Banner. Um ponto interessante é que ninguém consegue descrever Hyde: como afirma um personagem no começo da história – “Não é fácil de descrever. Há alguma coisa errada nele, alguma coisa que causa aversão, sou franco em admitir. Nunca vi pessoa tão repulsiva, mas não sei dizer porquê. Ele deve ter alguma deformação, mesmo que eu não possa apontar nenhum detalhe especial, fora do comum… E não é por não me lembrar dele. Posso vê-lo nitidamente neste momento.” O autor dá a entender a razão disso: todos os seres humanos são, por sua própria natureza, uma mistura de bem e mal, uma união paradoxal e indissolúvel – Já Hyde era puro mal, um ser único na humanidade.
A maioria das versões filmadas da história dão a ideia que foi a fórmula que transformou Jekyll em Hyde – no livro original, isso não é verdade. A fórmula poderia gerar tanto um anjo como um demônio, dependendo apenas do estado de espírito da pessoa: segundo o Dr. Jekyll, devido às suas próprias aspirações elevadas, seus lados bom e mal já eram separados de tal forma, que quando ele tomou a fórmula que os separaria de vez, pensando nas vantagens dos lados antagônicos presos em identidades separadas, o seu desejo por prazer liberou Hyde… É essa tentativa de se liberar do fardo da dualidade humana que condena o Dr. Henry Jekyll.
Uma história essencial, tanto como literatura fantástica, como análise da alma humana.
Por Jocimar Oliani
Essa resenha de “O Médico e o Monstro” foi publicada originalmente no antigo portal em 4 de julho de 2003 e teve 3.018 leituras.