UMA MENSAGEM NO RÁDIO
Uma fato muito curioso aconteceu comigo durante o último blackout na cidade de São Paulo, a cerca de 1 ano atrás. Após a queda de energia, fui até a sacada do quarto para verificar a extensão do fenômeno e contatei que era um evento de larga escala: todo o horizonte estava às escuras. Será que estávamos enfrentando uma infestação de zumbis? O famigerado Dia Z? Saí para a rua e encontrei o meu vizinho, Eli – um grande especialista em zumbis, e ele me perguntou no meio da escuridão: “Senhor, é você mesmo? É uma questão de rotina em uma situação destas.” Tentei ligar para a minha namorada e irmã, mas as linhas estavam congestionadas. Outro indício de Dia Z…
Rapidamente seguimos até o meu carro, onde liguei o rádio para verificar as notícias. Muitas emissoras não estavam no ar, mas localizei uma em que havia relatos ao vivo de vários repórteres no Brasil. Confesso que fiquei impressionado em saber que o blackout atingiu o litoral paulista, Rio de Janeiro e sul do Brasil. Era um Dia Z mesmo. Só faltava ouvir a famosa frase no rádio de Night of the Living Dead: “Foi confirmado que pessoas que morreram recentemente estão retornando à vida e cometendo atos de assassinato”.
É muito fácil perceber que o meu gênero favorito de RPG é o Horror. Costumo classificar as aventuras de Horror em dois extremos: Horror Investigativo (como em O Chamado) ou de Sobrevivência (como visto em Extermínio), com uma imensa zona cinzenta entre eles, mesclando elementos de ambos extremos. No primeiro a revelação do medo ocorre aos poucos, em uma crescente. Já no segundo, os jogadores são arremessados contra o terror, sem muito tempo para planejamento e filosofia.
Creio que também é evidente a minha queda por umas criaturas adoráveis conhecidas por zumbis. A simplicidade de seu comportamento instintivo, a maneira estranha de locomoção, o detestável modo de ataque em turbas e a resistência física hercúlea são fatores interessantes para um mestre de RPG: zumbis são inimigos poderosos quando em bandos, e os que apresentam grande velocidade são extremamente mortais (e só assistir ao remake de Dawn of the Dead)!
Agora e se juntarmos a letalidade de hordas de zumbis com o pânico das aventuras de sobrevivência? Aí nasce o All Flesh Must be Eaten!
O JOGO
Em AFMbE você interpreta uma pessoa normal, apanhada em uma infestação de zumbis, tendo como único objetivo sobreviver. Devido à temática barra-pesada, este jogo é recomendado para as chamadas aventuras one-shot, ou seja, aventuras que terminam na mesma noite de jogo. Não que uma campanha seja inviável, mas na grande maioria das vezes, uma trama maior e mais complexa acaba não se sustentando com o tempo, além do próprio desafio físico elevado do gênero.
Em resumo, AFMbE é um típico jogo de sobrevivência: rápido e brutal.
Muitos tipos de personagens podem ser utilizados, indo desde soldados e cientistas, passando por atendentes de locadora de vídeo e estudantes góticos. O cenário de infestação de zumbis é bem abrangente, podendo ser a clássica cidadezinha do interior, um hospital, ou algo mais global, afetando o mundo inteiro. Fica a cargo da imaginação e criatividade do mestre, chamado aqui de Zombie Master.
Com o objetivo de fugir um pouco dos clichês do gênero, AFMbE apresenta diversos tipos de zumbis, com origens e modus operantis diferentes do tradicional, como visto na maioria esmagadora dos filmes: existem zumbis criados por magia, por radiação, zumbis inteligentes, etc.
O SISTEMA
Os personagens de AFMbE são construídos através da distribuição de pontos em 6 atributos primários e óbvios: Strenght, Dexterity, Constituition, Intelligence, Perception e Willpower. Estes dão origem aos secundários Life e Endurance Points, Speed e Essence Pool.
Existem ainda as Qualities e Drawbacks que funcionam como as Vantagens e Desvantagens de sistemas mais conhecidos, como em GURPS. No mesmo molde existem as Skills, que tratam das perícias que o personagem conhecem.
O jogo utiliza dados de 10, 8 e 4 faces, sendo que existem regras para a utilização de cartas como fator aleatório, ou até mesmo a possibilidade de jogar sem estes elementos, apenas utilizando-se critérios narrativos para a resolução de conflitos. Os dados de 8 e 4 faces são utilizados somente para o rolamento de danos, sendo que existem regras de conversão para a utilização de dados de 6 faces, mais comuns por ai.
Os testes são divididos entre simples e difíceis, onde no primeiro deve-se duplicar o atributo base e somar o nível da perícia, para chegar a um número-base que deve ser rolado para o sucesso (quanto menor, melhor). Já nos testes difíceis, somam-se apenas os valorer do atributo e da perícia correspondente. Tudo é bem simples.
Como ponto de destaque, temos os chamados Fear Tests que lembram a Sanity em Call of Cthulhu ou as Verificações de Pânico de GURPS. Os personagens devem fazer testes difíceis de Willpower quando encaram situações de risco, com eventuais modificadores. Falhando neste teste, o personagem perder alguns pontos temporário de Essence. O Mestre ainda utiliza uma tabela onde estão as reações dos personagens correspondentes ao rolamento, onde são estipulados os pontos de Essence perdidos. Entre as reações existem os clássicos desmaios e gritos e o humilhante “perder o controle de suas funções fisiológicas”.
Tanto a criação de personagens como o sistema de jogo em si são bem simples, apesar da quantidade excessiva de tabelas e o imenso volume do livro assustar um pouco.
Apesar de ser relativamente simples em sua concepção (sugerindo até mesmo a utilização de um sistema sem rolamentos), AFMbE consegue ser bem detalhista quando o assunto é o sistema de jogo. Esse fato acaba se tornando uma qualidade invejável mas também dá origem ao seu maior defeito: como ocorre com GURPS, existe um preciosismo com regras, o que não combina muito com um jogo de sobrevivência, indicado para aventuras one-shot; o volume do livro e a grande quantidade de detalhes podem afugentar os jogadores mais interessados em uma simples noite descompromissada de horror e carnificina, onde a construção de personagem é demorada e o sistema de combate um pouco truncado. Porém tudo é opcional: as regras podem ser simplificadas para o perfil narrativo, e podemos utilizar os arquétipos prontos para o jogo, garantindo a diversão quase instantânea.
O LIVRO
AFMbE é apresentado em um belo livro de 258 páginas, com capas bem coloridas. As ilustrações internas são todas em p&b, porém muito bem executadas, tendo como destaque as páginas de separação dos capítulos, com belíssimas ilustrações de páginas duplas. O conteúdo é bem organizado, com diagramação simples e coesa, sendo dividido em 6 capítulos.
Dead Rise é apenas uma introdução ao universo do Survival Horror e temas de infestação de zumbis, com informações bem básicas sobre o assunto – um conteúdo que hoje encontramos no Wikipedia; coisa breve de 14 páginas. O próximo capítulo é chamado de Survivors, onde são apresentadas as mecânicas de criação de personagens, juntamente com vários arquétipos, ocupando mais de 40 páginas. Em Shambling 101 temos o sistema de jogo, com explicações detalhadas sobre testes, atributos, e coisas do gênero: são 40 páginas de muitos números e tabelas. O capítulo 4 é o Implements of Destruction, que consiste em um imenso catálogo de armas e equipamentos. Em Anatomy of a Zombie temos 18 páginas com instruções de como montar o seu morto-vivo, desde os banais comedores de miolos até zumbis alienígenas. O melhor capítulo do livro. O volume é encerrado com Worlds in Hell, com a descrição de vários cenários apocalípticos utilizando zumbis. A diversificação do tema é muito interessante.
Em resumo AFMbE é um bom jogo de RPG, onde uma temática simples é explorada sob diversas ópticas, resultando em uma obra com um bom potencial a ser explorado. Como pontos positivos, podem-se eleger as belas imagens internas e o capítulo sobre a criação de zumbis. Vale ainda ressaltar a grande quantidade de suplementos disponível. Já como aspecto negativo, destaco a complexidade do sistema, o que evita a aproximação de iniciantes de RPG ou amantes do tema, acarretando em uma demanda de tempo muito grande para começar a jogar uma aventura que deveria ser encarada como one-shot.
Prepare-se, pois a próxima mensagem no rádio pode ser diferente.
Por Clayton Mamedes
Notas (de 1 a 6)
Layout/Arte: 5 (excelente diagramação e imagens internas)
Texto: 3 (bem organizado, mas pesado em regras e tabelas)
Conteúdo: 3 (pela quantidade páginas, poderia apresentar mais)
Nota Final: 4
Ficha Técnica:
All Flesh Must be Eaten
The Zombie Survival Roleplaying Game
Eden Studios, 2004 – 258 páginas em P&B
Por Al Bruno III e outros
Site oficial: www.allflesh.com
Essa resenha de “All Flesh Must be Eaten” foi publicada originalmente no antigo portal em 1 de maio de 2010 e teve 2.137 leituras.
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