Certa vez li uma frase muito interessante, escrita pelo físico Stephen Hawking em seu best-seller “Universo na Casca de Noz”. Ele queria dividir os méritos de suas descobertas com os pesquisadores mais antigos, que forneceram todo o embasamento para os seus estudos. Assim dizia ele: “Consegui enxergar tudo isso porque estava sobre o ombro de gigantes.”, fazendo analogia a Newton, Einstein, Copérnico, Galileu, e outros.
Considero esta atitude de dividir os créditos por alguma conquista muito positiva, mesmo estando os “gigantes” já todos falecidos. Uma questão de respeito.
Atitude semelhante também teve Chad Underkoffler, que estando em cima dos ombros de alguns gigantes do mundo do RPG, criou um jogo muito bem bolado e deprimente: Dead Inside.
O Jogo
Ela disse que o seu era Lucy porque tinha o brilho do sol nos olhos. Eu disse que meu nome era Michael, e que estava apaixonado por ela. Ela sorriu. Nós deixamos a loja de discos a fomos tomar um sorvete, enquanto conversávamos sobre música. Eu não conseguia parar de olhar para aqueles cabelos de copa de árvore e aqueles olhos de sultão. Ela continuou sorrindo; eu continuei sorrindo; nós continuamos a nos tocar levemente – nas mão, nos ombros, na nuca.
Ela foi lá em casa para ouvir as pérolas da minha coleção de blues. Nós nem tinhamos acabado de ouvir “Black Cat, Hoot Owl Blues” de Ma Rainey e já estávamos nos beijando. Quando começou “Gwine to Have bad Luck for Seven Years” de Elizabeth Smith, estávamos nus na cama.
“Você me quer?” ela perguntou, com os seus olhos brilhantes
“Sim.”
“Você gostaria de ter o melhor sexo da sua vida agora?” A luz do entardecer iluminou a sua pele alva.
“Oh, sim!”
“Mas vai te custar.”
Eu levantei a sobrancelha. “Pensei que você fosse arquiteta!”
“Oh, eu não quero dinheiro. Só quero a sua alma”. Sorriu ela.
Eu pensei que fosse uma piada. “Oh, ok, tudo certo.”
E então tudo virou suor e carne. Atrito e prazer.
Deus me ajude. Pensei que fosse uma piada.
Eu acordei e me senti péssimo. Eu não podia nem mesmo ligar para o escritório e avisar que estava doente. Lucy havia ido embora e eu cai no sono novamente.
Acordei oito horas depois me sentindo ainda pior. Frio. Enjoado. Exaurido. Levou quinze minutos, mas eu consegui sair forçado da cama e cambaleei até o banheiro. Eu precisava de uma aspirina, peptobismol, qualquer coisa. Foi quando eu vi o que ela escreveu no espelho com o seu batom: “Não foi uma piada. Agora a sua alma é minha. Obrigado. Lucy.”
Eu olhei através das letras avermelhadas e vi os meus olhos refletidos. Eles pareciam secos, vítreos, mortos. Como eu me sentia por dentro. Morto por dentro.
O estertor gelado que eu senti em meu peito me fez querer chorar. Minha cabeça doía. Meus membros pareciam adormecidos. Então, o meu reflexo piscou. Eu olhei os seus olhos fecharem. Isto significa que meus olhos estavam abertos.
Eu estou ficando louco? Não. Estou morto por dentro.
Sabe aqueles dias em que você acorda sem vontade de fazer nada? Atividade alguma proporciona prazer? Você sente aquele vazio gélido por dentro? Como se estivesse morto por dentro?
Dead Inside trata com esse tipo de pessoa. Poderíamos muito bem associar ao comportamento de alguém com depressão, mas no universo do jogo, uma pessoa se torna morta por dentro quando perde a sua alma, seja ela vendida ou roubada por outro ser, normalmente outro “Vazio”. Quando nos tornamos “Sem-alma”, nada mais nos conforta e a vida passa a não ter mais sentido. A única coisa que resta a fazer é recuperar o prejuízo e conseguir a sua alma de volta.
Na ambientação de Dead Inside ainda existe toda uma caracterização de um Mundo Real (nosso mundo) e Espiritual, com os habitantes de cada local. A quantidade de seres que podem ser utilizados, tanto pelo Mestre quanto pelos Jogadores, é bem ampla, sempre levando em consideração a relação entre alma e corpo. Assim, existem os Dead Inside, que são corpos vivos sem alma; os Ghosts (Fantasmas) que são almas sem corpos; as Pessoas Normais como nós (assim espero!); os Magi que são pessoas com almas duplas; os Sensitives que possuem uma pouco mais de alma e o Zombis, que são corpos mortos sem almas. Normalmente somente os Dead Inside são utilizados como personagens jogadores, sendo os outros mais comuns como PdMs. Mas, em situações inusitadas, os outros tipos de seres podem ser utilizados também, levando a consequências interessantes.
Como dito anteriormente, o grande objetivo de um Vazio é obter a sua alma novamente. Para tanto ele pode:
(1) Consumir um Fantasma: como eles são seres compostos somente de alma, aprisionar e consumir um Fantasma pode garantir um pouco de sua alma de volta. O problema que este é um processo que tem consequências um pouco extremas;
(2) Roubar a alma de alguém: um processo rápido, porém difícil e também com sérias consequências;
(3) Comprar a sua alma de volta: encontrar quem possui sua alma já é uma tarefa ingrata e difícil. Convencê-lo a devolver e conseguir o que ele deve pedir será no mínimo desagradável;
(4) Desenvolver uma nova alma: é um processo lento e gradual, baseado em ações e escolhas corretas, além de muita fé. Seria a maneira politicamente correta de obter uma alma;
(5) Comungar com Imagos, seres do Mundo Espiritual: estes seres chamados uma vez de Arquétipos por Carl Jung, oferecem buscas perigosas e desagradáveis, dando em retorno um pouco de paz interior, que culmina com o cultivo de uma nova alma;
(6) Encontrar o depósito de sua alma: algumas vezes a sua antiga alma é guardada dentro de um recipiente (Soul Egg). Assim, encontrá-lo e quebrá-lo pode trazê-la de volta. O difícil é encontrar o recipiente e burlar quem o guarda;
(7) Trabalhar em conjunto com outros Vazios: a amizade, a cooperação entre os Vazios pode levar a uma espécie de cultivação de alma. Um processo lento que nem sempre dá resultado.
Toda essa epopeia em busca da alma pode tomar lugar tanto no Mundo Real quanto no Espiritual, o que promove uma grande gama de possíveis aventuras. Por falar em espírito, os personagens de DI são capazes de utilizar poderes mágicos, chamados de Habilidades. São coisas bem básicas, tais como Healing, Create Gate, Change Self, etc. A facilidade e a potência de cada poder são diretamente relacionados ao tipo de ser que o está utilizando e ao local (Mundo Real ou Espiritual).
Um ponto realmente interessante e importante do jogo é o conceito de Soul Points. Todas as ações que o personagem executa tem algum reflexo em sua busca pela alma. Assim, é possível atingir o ápice e ter a sua alma cultivada novamente (através de ações ditas corretas), ou regredir-se a um estado primitivo e transformar-se em monstro, controlado pelo Mestre de Jogo. As possibilidades e consequências neste jogo são quase infinitas.
Outro aspecto louvável é que DI pode ser tratado como um sistema genérico. As aventuras podem ser roladas em qualquer época e utilizando-se de temas e gêneros diversos, como vários níveis de horror, fantasia, cenários históricos e sci-fi.
Toda essa ambientação deprimente lembra o gigante esquecido Wraith: The Oblivion.
O Sistema
Os personagens de Dead Inside são feitos a partir das respostas para 8 questões, que irão definir o tipo e os antecedentes de seu personagem. A parte numérica só é aplicada às Qualidades, que são como perícias. A proficiência nas Qualidades é representado por níveis, que são Poor, Average, Good, Expert e Master, fornecendo bônus de -2, 0, +2, +4 e +6, respectivamente.
São utilizados 2 dados de 6 faces para os rolamentos, onde o Mestre estipula uma dificuldade a ser vencida, de acordo com uma tabela. Ao resultado dos dados é somado o bônus correspondente ao nível da Qualidade, e o total deve igualar ou superar a dificuldade para ter-se um sucesso. Todos os testes são realizados desta maneira, o que torna o jogo fácil e rápido. Na parte de combate, o dano é extraído diretamente da margem de sucesso entre a dificuldade e o rolamento. É o Sistema PDQ – Prose Descriptive Qualities – simples, rápido e flexível. Algo que lembra o excelente gigante Kult, principalmente no combate.
Lembra-se das questões durante a criação de personagem? Pois bem, elas também definem um vício e uma virtude, que assumem um papel muito importante no jogo, tando na representação quanto na definição de recuperação ou declínio de alma. O resultado de cada ação é anotado pelo GM em uma planilha especial, considerando o vício ou virtude em questão. Para cada 5 pontos acumulados em uma categoria benéfica, o personagem ganha um Ponto de Alma. O oposto também é válido quando tratamos de vícios. Todo o sistema de anotação e saldo de pontos lembra a gigante linha Mundo das Trevas, com seus pontos de Fúria, Sangue, Entropia.
Outro aspecto interessantíssimo, porém pouco explorado no livro, é a existência da Shadow, ou Sombra: conforme o seu personagem perde Pontos de Alma de forma corrupta, estes vão para a sua Sombra, que cresce e tende a obter mais força, corrompendo o Vazio. A princípio a Sombra pode ser utilizada como um PdM, mas creio que se interpretada por outro Jogador ficaria bem interessante. Logicamente lembra o já citado gigante Wraith: The Oblivion.
Tanto a criação de personagens quanto a mecânica de jogo são simples e funcionais. O único momento que requer um pouco mais de atenção é quando da utilização dos rolamentos de verificação com Vícios e Virtudes, que são importantes para a temática do jogo e um pouquinho complicados para quem não está acostumado. Porém, nada extraordinariamente difícil, apenas incomum.
O Livro
Dead Inside é apresentado em um volume de 128 páginas em P&B, com a surreal capa colorida. Todo o conteúdo é bem diagramado e organizado, não oferecendo dificuldade para o entendimento. As ilustrações são medianas, variando de boas montagens fotográficas a estranhos desenhos conceituais.
São ao todo sete capítulos, começando com Being Dead Inside e The Real World and the Spirit World, onde somos ambientados ao universo do jogo e ao conceito de personagens, ambos importantíssimos. Os próximos dois capítulos são dedicados à criação de personagens e ao sistema de jogo respectivamente. O capítulo 5, DI GM Advice é muito interessante, pois apresenta várias dicas realmente úteis e valiosas, que devem ser consideradas ao rolar uma aventura de Dead Inside. Sem dúvida o melhor capítulo do livro. O capítulo 6 apresenta um glossário de termos e bibliografia (mais comum de se ver no final dos livros), e fecha o volume uma excelente e necessária aventura introdutória, ótima para pegar o jeitão do jogo.
Chad Underkoffler estava em ombros de gigantes, citados durante o texto, para poder visualizar e conceber a sua obra. Dead Inside é um belo jogo, apresentando um sistema enxuto e uma temática interessante e incomum. Nada errado em utilizar de forma coesa as melhores idéias de jogos clássicos. Ainda mais quando elas são claramente reconhecidas nas referências finais do livro. Jogo limpo com um excelente resultado.
Se for basear-se em algo existente, que se espelhe no melhor. Usar os ombros de gigantes é quase garantia de sucesso.
Enfoque na sua Virtude. Resista ao seu Vício. Realize feitos nobres. Encontre sigificado em tudo. Reganhe a sua alma.
Por Clayton Mamedes
Notas (de 1 a 6)
Layout/Arte: 3 (imagens duvidosas, mas com uma diagramação excelente);
Texto: 5 (muito bem escrito, claro e coerente);
Conteúdo: 6 (sistema simples e funcional; temática interessante).
Notal Final: 5
Ficha Técnica
Dead Inside: The Roleplaying Game of Loss and Redemption
Por Chad Underkoffler
Atomic Sock Monkey Press – 2004, 128 páginas em P&B, U$ 13,00
Essa resenha de “Dead Inside” foi publicada originalmente no antigo portal em 16 de janeiro de 2010 e teve 890 leituras.