A primeira coisa que você deve fazer ao abrir Hunter é esquecer que esse é um jogo da linha WoD. Esqueça a Escada de Prata, o Invictus, Prometheans, Cortes e Uratha. Vá por mim.
Hunter, the Vigil é único. É, de longe, o livro básico mais bem escrito e um dos cenários melhor elaborados. Hunter é visceral, é amoral, é tenso e desesperador. Você não será um herói. Você não salvará o mundo nem mesmo será capaz de corrompê-lo. Provavelmente o impacto que você causar será patético. Inútil. A cada criatura que você derrubar outras piores surgirão em seu lugar; cada culto ou gangue que você eliminar se revelarão meros tentáculos para organizações dantescas que – saiba – você não é capaz de enfrentar.
Repito: aqui você tem o Mundo das Trevas em sua face mais brutal. Claro, lobisomens são selvagens e furiosos, bestas que entram em transe de batalha e vivem guerras que arrasam mundo material e espiritual – mas eles foram feitos pra isso. São criaturas adaptadas à excelência justamente pra isso. Caçadores? Não. Nesse jogo, você é só um humano. Sua carne é macia, seus ossos quebram com certa facilidade (levando em conta seus adversários), você não possui habilidades extraordinárias e, muito provavelmente, nunca pegou em uma arma na sua vida.
Mas esse é exatamente o diferencial de Hunter: Você é um grito abafado em meio a milhões. Você é o modo que a humanidade encontrou de se defender de seus predadores – e não por ser valoroso, capaz ou ao menos escolhido. Por puro azar, você agora carrega o mundo inteiro em suas costas. E o único jeito de largá-lo é morrendo.
A transformação é um processo complexo. Talvez você veja um homem praticamente devorando o pescoço lambuzado de sangue de uma amiga. Perceba ao longo de meses um padrão em certos funcionários da empresa em que trabalha, uma certa… intensidade anormal em seus atos e olhares. Talvez você ouça uma música e passe a ter alucinações periodicamente, todas referentes a trechos da canção. E sempre é possível que você simplesmente se revolte um dia contra o traficante do beco próximo e, ao confrontá-lo, veja o ar ao seu redor tremeluzir e pulsar. O que importa é que você é arrancado de uma existência confortavelmente ignorante e lançado no meio de um mundo de conspirações, aberrações e poder. Movido a pura força de vontade, você será a pessoa errada no lugar errado, um dos poucos amaldiçoados que enxergam tudo aquilo com que humanos não foram preparados para lidar.
O caçador, inicialmente, está sozinho. Ele é uma vela em meio ao breu, e é mera questão de tempo até que ela se apague. Tudo o que ele pode fazer é esperar que alguém seja guiado pela sua parca luz e que outras velas se acendam para carregar o fardo adiante quando ele se for. Para aumentar suas chances de sobrevivência, é comum se unir em grupos que variam em escopo e capacidade. Existem três tipos:
– Células são grupos de entre 3 e 6 caçadores que se unem temporariamente em prol de uma causa. Quando sobrevivem, os grupos geralmente se mantêm e, logicamente, isso traz suas vantagens. Conforme os personagens se acostumam uns aos outros, eles são capazes de desenvolver e treinar táticas de combate que aumentam em muito as chances de vitória de uma célula. As táticas podem ir desde uma emboscada a posicionamento para incendiar um inmigo solitário. Essa mecânica de jogo não só ajuda no entrosamento do grupo como reforça a sensação de que a sobrevivência dos personagens depende uns dos outros, e que sozinhos certamente morrerão.
Aliás, é bom deixar bem claro: Sozinhos, certamente morrerão. Mesmo. Sem brincadeira.
– O próximo nível é o Compacto, um grupo de células que agem de modo relativamente organizado. Fora a óbvia segurança presente em maiores números, compactos também são capazes de reunir muito mais recursos que um célula, e conseqüentemente são capazes de suprir melhor seus membros. Fora isso, a rede extendida pode ser usada como abrigo, com células se movendo para outras cidades sob a proteção de agentes residentes. Inclua no pacote o reservatório de informações que vêm de cada caçador e fica difícil resistir a se unir a um compacto. Porém saiba que o tamanho do compacto também é uma de suas maiores fraquezas: quanto maior, mais exposto. Enquanto uma célula chama a atenção de um demônio, o compacto pode atrair uma horda inteira. Fora isso, diferenças internas de ideologia ou conflitos por liderança são mais que possíveis. A última coisa da qual um caçador precisa são novos inimigos.
– O mais abrangente é a Conspiração. Organizações globais, comandando compactos em diversos países, coordenando ações simultâneas e com uma visão muito mais ampla da Vigília que uma célula teria. Fora isso, seus recursos costumam fazer inveja a qualquer grande milionário, e os benefícios oferecidos podem vir na forma de Dons. Estes são artefatos, alterações cirúrgicas, poderes esquecidos e armas de última geração. Dons costumam ser a diferença entre um caçador morto e um vivo. Claro, para um compacto se tornar uma conspiração é necessário trabalho árduo, portanto existem poucos grupos dignos de tal classificação. É uma boa idéia também lembrar que os Dons não são simplesmente “dados”, e seus preços muitas vezes podem ultrapassar a fronteira do razoável. Tome como exemplo o Grupo Cheiron, que sintetiza partes de monstros dissecados a mecanismos biotécnicos e os implanta em seus agentes. Pouco a pouco, o caçador se torna um monstro como outros que caça. Sem contar a completa falta de liberdade, se compararmos à vida em célula.
Os personagens não precisam fazer parte de conspirações, ou mesmo de compactos. Depende do estilo de jogo em que estão interessados, como em Unknown Armies.Se quiserem algo mais intimista, fiquem com a célula. Se quiserem algo mais amplo, Conspirações estão aí. Prezam a liberdade de decisão? Fiquem com o compacto. Por aí vai
Olhe para o abismo…
E o abismo olha de volta para você. O livro inteiro consegue se manter no clima do jogo – apresentando várias possibilidades de compactos, conspirações e dons – além de introduzir a visão que os caçadores têm de seus adversários. Ela costuma se desviar bastante do que os outros cenários descrevem como realidade, mas fica a critério do grupo decidir o que preferem seguir. Hunter fornece ferramentas suficientes para jogar sem nem sequer conhecer os outros livros básicos enquanto seus suplementos se dirigem a detalhar as ameaças que jogadores vão enfrentar, do ponto de vista da Vigília.
A criação de personagens é quase inalterada. O que surge de único aqui são as Profissões.
Claro. Você não acreditou que ia ser como nos outros cenários? Bota duas bolinhas em recursos e nunca mais se preocupa com dinheiro? Esquece. Em Hunter, sua profissão é vital. Ela define os círculos que você freqüenta, contatos possíveis, sua fonte de renda e demarca a humanidade do seu personagem. Então pense duas vezes antes de sair caçando vampiros toda santa noite, por que no dia seguinte, 7h em ponto, é melhor que você esteja no escritório.
Ou vão começar a fazer perguntas. Você será demitido. Despejado de sua casa. Vai ficar sem dinheiro para comprar munição… Não pense que seus inimigos vão esperar você conseguir um novo emprego pra voltar a te atacar ou perseguir mocinhas inocentes por becos escuros. O Mal não precisa trabalhar. Ele tem duas bolinhas em Recursos.
Mas voltando ao foco: Olhe para o abismo e o abismo olha de volta para você. Moralidade. E não me refiro àquela escala que jogadores amam ignorar, mas sim a como seu personagem vai racionalizar a mudança radical de contador para degolador de vampiros. Como ele vai lidar com sua suposta retidão, ou com o poder que tem em suas mãos (no caso de Dons). Essas são questões que costumam passar batidas na maioria dos sistemas e em quase qualquer sessão de jogo: Ninguém para e se pergunta “Mas, peraí, por que a gente vai matar os goblins mesmo?”. O fato de haver uma desculpa para atos hediondos (“Ah, porque eles raptaram alguém”) não significa que isso vai ocorrer sem consequências ou mesmo que é justificativa suficiente para levar uma pessoa a tais extremos. Mesmo que a esposa de seu advogado tenha torturado ele antes de fugir com seu Mentor Nephandi, ele provavelmente vai pensar duas vezes antes de pegar a serra elétrica em uma mão, espingarda na outra e sair por aí berrando “Groovy” e desmembrando magos.
Se você ainda não leu, ou mesmo assistiu, Watchmen, vá fazê-lo agora mesmo. Um dos temas centrais da série é justamente esse: Moralidade. Corrupção, dignidade, arrogância, pureza e todos os tons que acompanham também serão muito importantes em Hunter. Existe, aliás, um apêndice inteiro (o 1º) só falando sobre o tema e, jogador ou mestre, vale a leitura. Até porque senão o jogo pode facilmente perder completamente o sentido e se tornar um saco. A graça de Hunter é justamente lidar com esses conflitos.
Embora… Claro… A idéia da serra elétrica também tenha seu valor.
Ou seja
Eu não esperava absolutamente nada de Hunter. Detestava o jeito que os Martyrs eram tratados no oWoD, achava que por vezes o cenário pecava exagerando o aspecto religioso dos caçadores. Pra ser sincero, eu fiquei frustrado quando soube que lançariam Hunter e não Demon.
Mas levei um tapa na cara. Hunter: the Vigil é um livro com um tema e proposta claros, que estão disseminados por todo o livro, sem desviar da idéia por um momento. Enquanto Vampire vez ou outra tropeça procurando seu rumo e Werewolf se foca justamente no que não é seu diferencial, Hunter consegue se manter interessante, belo e cheio de potencial de capa a capa. A idéia de se jogar com um personagem que tem tudo para fracassar ou morrer prematuramente, uma mísera vela tentando iluminar o mundo inteiro, é tentadora. Ainda não pude ver os outros livros da série, mas se estiverem no mesmo esquema Hunter com certeza vai angariar um bom número de fãs.
Notas (de 1 a 6)
– Layout/Arte: 5
– Texto: 6
– Conteúdo: 5
Nota Final: 5
Por Klaus Ribeiro
A resenha de “Hunter: the Vigil” foi publicado originalmente no antigo portal em 9 de maio de 2009 e teve 4.481 leituras.