Uma das coisas mais comuns que vemos e sequer notamos é o preconceito interno estabelecido entre jogadores de todos sistemas de RPG. Pode parecer bobagem ou invenção, mas observemos a realidade:
1- A grande maioria dos narradores e jogadores de GURPS já ouviu as seguintes frases: É muito complicado; tem que jogar com calculadora do lado; tem regra até para tapar buraco (essa confesso que já usei bastante em argumentações “anti-gurps”); só dá pra jogar se gostar muito de matemática; etc.
2- Jogadores e narradores de Dungeons & Dragons (de qualquer edição) e a maioria dos cenários de fantasia medieval com premiação de XP por inimigo derrotado são “classificados” como hack’n slash sem interpretação real e onde o foco é somente o de acumular poderes e fazer combos.
3- Jogadores e narradores de derivados do sistema Storyeteller são qualificados como os “metidos a elite”, que sempre desmerecem os outros tipos de participação no cenário RPG, e que na verdade fazem tudo na sessão, menos focar no role play.
Existem vários outros preconceitos com outros tipos de sistemas e cenários de RPG, desde o “3d&t é para newbs e crianças”, até o “se não for sistema oficial, é uma coisa ridícula”. Muitos falarão que é um absurdo, que isso nunca aconteceu entre seus círculos sociais, etc., não é esse o ponto da matéria, e sim a grande quantidade de situações onde esse tipo de preconceito é estabelecido e transmitido. Cito como exemplo uma mesa de GURPS que joguei, GURPS Supers, onde eu fiz um robô quase no estilo do silver samurai, com a espada “Ginso, corta tudo”, que voava e absorvia energia pra bufar atributo. Um personagem feito sem a menor noção de combos mirabolantes. O cenário era Marvel vs DC, um mundo onde os dois panteões de heróis coexistiam. Aceitei jogar pelo motivo de todos os outros jogadores habituais de Vampire: the Masquerade estarem a fim de “dar um tempo” da Gehena e jogar outra coisa. Resultado: diversão sem maiores pretensões, o jogo seguiu fluido do início ao fim nas sessões que tivemos, meu personagem feito sem noção de combos partiu uma sentinela ao meio com 1 ataque, enquanto o combo master da mesa sequer arranhou o bicho (e isso porque jogou todo seu poder de raios no bicho), tivemos uma lobisomen (ou lobiswoman, caso prefiram) no melhor estilo Cria de Fenrirs do Apocalipse, que também não era familiarizada com o sistema, e cortou sentinelas como se fossem feitas de papel.
Outra mesa que também quebrou bastante preconceitos que tinha foi a mesa inaugural de Dark Sun da 4ª edição do D&D, realizada em dos clássicos eventos de RPG do Bobs tijuca, organizado pelo Marcelo Telles há anos. Um casal de amigos e eu resolvemos dar uma chance para o “hack’n slash” e fomos jogar o cenário recém-refeito. O narrador (que no momento não lembro o nome, mas deixo claro que se mostrou extremamente competente ao lidar com players acostumados com o “vício” de jogar pela narrativa e não pelo sistema) inicialmente sofreu um pouco com nossas idéias “não convencionais”, como a de amarrar um inimigo caído e usar como contrapeso para medir uma queda, ou a de passar uma corda na entrada da caverna pra fazer o grupo invasor cair enquanto atacavamos de dentro. Resultado: a mesa fluiu, com altíssimo nível de roleplay (até um dos combates foi evitado na conversa), e que nos fez reavaliar o sistema em si como próspero para ações fora do “hack’n slash” previsto.
Já no caso do “queridinho” do roleplay, a plataforma Storyeteller, os jogadores cotidianos (dos quais eu me incluo, sem vergonha de admitir) já se depararam ou protagonizaram situações altamente grotescas e “hack’n slash”, ou fichas que mais parecem vinda de calculadoras do que de um background consistente. Que me lance a primeira pedra o jogador de Vampiro ou Lobisomen que nunca fez isso. Eu mesmo faço “combos” intencionais as vezes, apenas com o objetivo de jogar e “encarar o que vier”, ou “resolver uma sacanagem que fizeram com meu personagem que fiz para jogar [na moral]”. Creio que a grossa maioria dos leitores desse artigo já fizeram algo igual ou similar. Em compensação, numa sessão que estou jogando de Dark Ages, meu personagem mudou completamente sua maneira de interagir em virtude da morte do irmão de sangue (e de clã), e que agora teve sua evolução totalmente bagunçada para seguir os motivos da história, e não do desenvolvimento de “poderes para sobrevivência”. E já tive o prazer de ter um personagem de Lobisomen que quase virou um pária, por apontar o dedo na cara de um líder de assembleia, e EXIGIR, como philodox, de que os bastet que morreram ajudando a retomar um caern fossem lembrados e honrados na assembleia, e que o líder da assembleia não desmerecesse a importância dos mesmos. É fato que ele não foi bem visto por muitos dos PdMs ali presentes, e até por alguns personagens, mas levem em consideração que ele realmente assumiu o augúrio como responsabilidade pessoal, teria ele feito algo errado? Ou seria o certo deixar a verdade morrer pelo bem da seita?
Muitos dirão que o que foi apresentado aqui não retrata a realidade, que o “seu” sistema ou o “seu” grupo não faz essas coisas, mas é aí que começa o preconceito interno de jogo. Quando nos excluímos de culpa na imagem geral dos membros da comunidade RPG, contribuímos para fechar os olhos aos eventos que são nocivos à mesma. Se o “seu” grupo (e coloquei “seu” entre aspas porque já devia ser de consenso que não existem grupos realmente fechados e pessoais, sempre ocorrem mudanças, por menores que sejam) não contribui para essa forma de preconceito, então que tal se unirem para combatê-lo? Convidem jogadores de outros sistemas para uma “sessão de boas vindas”, sejam amistosos e receptivos com os medos e visões dos outros jogadores sobre o sistema que vocês adoram ou não gostam, o mais importante sempre é a diversão, não existe diversão “errada” se alguém quer acumular tesouros e itens mágicos, ou apenas quer conseguir um local de paz onde possa passar a eternidade longe dos conflitos da jyhad.
Espero que esse pequeno artigo ajude muitas pessoas a “darem uma chance” para o sistema que não gostam, mas não jogaram, ou que jogaram poucas vezes. E que nos ajude a todos, como comunidade unida pela prática do RPG, a disseminar maior tolerância e respeito pela forma diferente dos outros de fazerem a mesma coisa que nós.
Por Maverick
Equipe REDERPG