A História e o RPG : Ordens de Cavalaria

Europa em 1190 DC

Um dia desses, me toquei de uma coisa óbvia: eu poderia escrever artigos de História para a Rede. Não só sou historiador e tenho minha pequena biblioteca pessoal, como não há lugar melhor para se falar disso do que num site de RPG. Aprendi na prática que o curso de História da universidade pode te dar toneladas de idéias para histórias e aventuras, como mencionei no meu artigo sobre a imaginação.

Idéias para artigos não faltam. São tantas as minhas paixões pela história que até hoje não consegui definir minha especialização. Por isso, esperem no futuro artigos sobre todas as Eras da História Humana e, preparem-se, antes dela também. É difícil ser escritor sem se meter em várias áreas diferentes e aprender um pouco de cada coisa! (acho que vou escrever um artigo sobre isso um dia desses…).

Antes que eu divague, vamos lá. O que dá mais ibope entre jogadores de RPG? Oi? Não ouvi direito? Ah, claro! História Medieval!

Pois é. E que forma melhor de começar essa série de artigos Históricos (ignorem o trocadilho) do que falando sobre a Idade Média? A dúvida mesmo foi por onde começar na Idade Média. Acreditem, existe muita coisa.

Então, decidi pegar algo que seria interessante para o público e que daria as bases para os próximos artigos.

Europa em 1190 DC

Europa em 1190 DC

As Ordens de Cavalaria

Woop! Pois bem. Vamos explicar de onde elas saíram, falar sobre algumas delas. Vou dar espaço para as outras pouco faladas por ai, já que se fala tanto nos Templários em tudo quanto é canto. Refiro-me aos Hospitalários, Montjoie, Calatrava, São Lázaro e, quem poderia esquecer, os Teutônicos.

Tudo bem, calma! Vamos aos poucos.

As ordens de cavalaria surgiram na Idade Média na época da Primeira Cruzada (1096 – 1099), quando o Papa Urbano II clamou pelo povo católico e seus nobres para juntarem-se na missão de retomar a Terra Santa, Jerusalém, dos ‘infiéis’ muçulmanos. O que ele ‘vendia’ era que os guerreiros mortos em combate contra os muçulmanos seriam salvos e iriam direto para o céu, como uma espécie de redenção automática. Note que, na época, acreditava-se piamente no lado místico da religião. Era parte da vida de cada um. Receber absolvição por seus crimes e pecados era algo que interessava muitos na época, inclusive os nobres.

A grande maioria dos cruzados eram francos (nossos franceses), com uma outra grande parcela de germânicos (alemães). Eram esses nobres que lideravam o povo comum (treinados ou não para o combate) na longa e perigosa viagem até Jerusalém. Os eventos da Cruzada em si tratarei em outro artigo. Basta dizer que, após muito sofrimento, os exércitos Cruzados chegaram à Jerusalém e tomaram a cidade e vastos territórios na região do Levante e da atual Turquia. Reinos cristãos foram formados por toda a região, a contragosto do Imperador Bizantino.

Legal. Os guerreiros e nobres católicos haviam tomado Jerusalém e construído seus próprios reinos dentro do território muçulmano. Mas agora estavam longe demais do núcleo católico. E, entre a Europa e eles existia o Império Bizantino (que, apesar de ter interesses comuns na luta contra os muçulmanos, não eram exatamente aliados).

O que garantiria a proteção desses reinos e do fluxo infindável de peregrinos que vinham da Europa para conhecer a Terra Santa?

Surgiu em 1118, na cidade de Jerusalém, a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, ou simplesmente Ordem dos Templários. Como seria com as ordens mais famosas, eram de origem francesa e tinha como missão proteger Jerusalém e o caminho dos peregrinos.

Na mesma época, surgia na cidade a Ordem Beneditina, uma ordem monásticas que tinha como missão dar apoio à comunidade. Na Terra Santa, isso aconteceu na forma da construção de locais onde os doentes e feridos podiam ser tratados. Serviam também para cuidar daqueles que não tinham comida ou abrigo. Logo, os Hospitais foram construídos nas estradas, muitas vezes doados por nobres. Note que não existia entre os Hospitalários uma só pessoa que não fosse de sangue nobre. Surgia a Ordem de São João de Jerusalém ou dos Hospitalários.

Eventualmente, talvez pela necessidade de defender as estradas, seus peregrinos e os hospitais, os Hospitalários tornaram-se militarizados, cavaleiros no sentido real da palavra. Sua missão era semelhante a dos Templários, mas talvez um pouco menos agressiva. Pode-se dizer que os Hospitalários eram os Paladinos clássicos.

A Ordem Teutônica foge da regra por ser de origem alemã. Surgiu no final do século XII em Acre, um extinto reino onde hoje é a Palestina, mas teve de recuar quando a Terra Santa foi reconquistada pelos muçulmanos, em 1211. Foram para o Leste Europeu, onde revelaram toda a sua famosa agressividade.

Existem inúmeros relatos da agressividade Teutônica, especialmente no que se diz respeito a qualquer um que não fosse considerado católico (e nem sempre esses escapavam de sua fúria). Após serem expulsos da Transilvânia (sim, a terra do Drácula), acabaram na Polônia, onde conquistaram uma região e formaram seu próprio país por força de armas. Os Teutônicos exterminaram a população da Prússia e a substituíram por alemães. O primeiro passo para seu fim veio nas mãos do Reino da Polônia, que derrotou os Cavaleiros Teutônicos e tomou a Prússia.

E quanto às ordens menores? Acreditem, suas histórias podem ser ainda mais fantásticas do que as das três grandes. Vamos conhecer algumas delas:

Calatrava

Pessoalmente, Calatrava é a minha favorita e tem uma história interessante. Durante a Reconquista da Espanha, os reinos da região (que ainda não tinham virado Portugal e Espanha) pediram a ajuda dos Templários e Hospitalários, mas, mesmo assim, era difícil reconquistar território muçulmano e mantê-lo, especialmente porque os reinos espanhóis viviam em conflito uns com os outros (Aragão, Castela, Leão e Navarra). E foi o que aconteceu com o Castelo de Kallat-Rawa. Conquistada em 1147 pelo rei Alfonso VII de Castela e Leão, foi deixado sob a proteção dos Templários e tropas reais. Mas, em 1157, o Rei envolveu-se em um conflito com Navarra e ordenou a retirada das tropas reais.

Após a morte de Alfonso VII, os templários pediram ao novo rei, Sancho III, para serem liberados da tarefa de proteger o castelo, já que a pressão almôada era muita.

Sancho os liberou, mas precisava de guerreiros para defender o castelo. Decretou, então, em Toledo, que um grupo de cavaleiros deveria ser enviado para lá. Inesperadamente, quem se apresentou como voluntário foi Raimundo Serra, um abade de um convento em Navarra, um antigo cavaleiro.

Em pouco tempo, Raimundo, com o aval de Sancho III, juntou um grupo de monges e, carregados de mantimentos, armas e um rebanho, foram para seu novo lar em Calatrava (a forma que os espanhóis falavam o nome do castelo).

Imagino que a decisão do monge deve ter sido surpreendente, pois muitos leigos (guerreiros ou não) e templários descontentes com abandonar o castelo, juntaram-se ao grupo.

A ordem prevaleceu na região por anos, mas viria a enfrentar problemas internos. O primeiro veio com a morte do grão-mestre Raimundo. Os cavaleiros da ordem logo subiram ao poder, convencendo os monges a deixar a ordem, o que levou a Calatrava ser reconhecida mais tarde como ordem puramente militar, como os templários. Anos mais tarde, Calatrava sofreria com uma devastadora ofensiva almôada que tomou o castelo. Era o pior momento, pois uma crise interna os afetava. Cavaleiros aragoneses queriam autonomia e um novo líder em meio ao caos da derrota. Foi apenas um astuto e espetacular ataque dos cavaleiros de origem castelana que um novo forte foi tomado atrás das linhas inimigas, Salvatierra, salvando a Ordem de Calatrava e silenciando os dissidentes.

Salvatierra caiu nas mãos do inimigo 12 anos mais tarde, mas foi a resistência da Ordem na região que permitiu aos reinos cristãos prepararem uma contra-ofensiva que resultou na maior vitória da Reconquista da Espanha, em Lãs Navas de Tolosa.

Santiago

A Ordem de São Tiago da Espada surgiu sem nenhuma conexão religiosa de uma confraria militar a quem, em 1169, foi confiada pelo rei de Leão a fortaleza de Cáceres. Foi apenas dois anos depois que a confraria assinou um acordo com o arcebispo de Santiago de Compostela (a cidade onde ainda hoje ocorrem peregrinações todos os anos) na qual se comprometia à defender as possessões da igreja na região de Cáceres. Em troca, a confraria seria feita Ordem de Cavalaria.

A origem diferente da Ordem deu origem a um sistema de regras bem mais livre do que na maioria das outras Ordens obrigatoriamente religiosas. Por exemplo, eram permitidos aos cavaleiros casarem-se (o que não era comum em outras ordens).

O início da ordem foi complicado. Perderam Cáceres para os muçulmanos em 1172 e recuaram para Castela, onde o rei Alfonso VII doou-lhes a cidade de Uclés, deixadas pelos Hospitalários de forma semelhante ao caso de Calatrava. A ordem participaria da Reconquista da Espanha em várias batalhas importantes, eventualmente estendendo seu alcance até a costa do Mediterrâneo, na fronteira com o último reino muçulmano na Espanha, Granada.

Montjoie

Fundada em 1174 no Reino de Aragão, a Ordem de Montjoie foi provavelmente a mais controversa. Surgiu quando Rodrigo Alvarez, cavaleiro de Santiago, abandonou sua ordem por achar suas regras condescendentes demais. Fundou uma comunidade militar, eventualmente aceita pelo papa, que recrutava entre os seus qualquer um capaz de portar uma arma, contanto que fossem livres de nascimento e que tivessem sido absolvidos de seus crimes. O resultado foi uma Ordem de Cavalaria formada por mercenários, ladinos e bandidos arrependidos. Eram odiados pelas demais Ordens, não só pelo seu passado, mas porque ignoravam as regras da cavalaria, utilizando-se de táticas pouco ortodoxas.

Santa Maria da Espanha

A Ordem de Santa Maria da Espanha, ou simplesmente Ordem da Estrela (devido ao seu símbolo) foi provavelmente a ordem de cavalaria que mais se destacou das demais, não pelos seus feitos, mas por ser tão diferente.

Após os Reis Católicos da Espanha terem conseguido expulsar praticamente todos os muçulmanos da Espanha, foi fundada na cidade de Cartagena, em 1272, uma ordem de cavalaria marítima. Sua missão era impedir que mais invasores muçulmanos viessem da África para Granada, o último domínio muçulmano na região. Sete anos depois, toda a frota da Ordem fora derrotada em uma feroz batalha. A Ordem da Estrela foi confinada à terra-firme na cidade de Sidônia, na fronteira com Granada.

Mas nem em terra-firme se deram bem. Em 1280, as tropas da ordem foram dizimadas pelos muçulmanos, muitos dizem que por culpa do líder da Ordem de Santiago, a quem Estrela estava associada. Com as tropas dizimadas, o rei de Castela ordenou que os poucos sobreviventes de Santa Maria da Espanha fossem integrados à Ordem de Santiago.

São Lázaro

Outra ordem curiosa e que, aparentemente, era equiparada às três grandes. Na Idade Média, a lepra era uma doença que surgia em epidemias terríveis. Na Terra Santa, muitos eram aqueles que caiam doentes diante dessa enfermidade, inclusive muitos cavaleiros.

A Ordem de São Lázaro surgiu primeiro como um hospital especializado nessa doença. Mas, o fato era que muitos templários afligidos pela lepra eram convidados a se transferir para São Lázaro. Eventualmente, a Ordem tornou-se militar, o que leva a uma visão curiosa sobre seus cavaleiros. Apesar de que não fosse regra, era fato de que muitos dos cavaleiros de São Lázaro eram leprosos. Pelo que se acredita por documentos, esses guerreiros eram, apesar de não tão numerosos, valorosos em combate, talvez, quem sabe, em busca de uma morte digna em combate ao invés de sucumbindo à doença. Tente imaginar um Bárbaro Cavaleiro e você encontrará a ideia.

Autor: João Marcelo Beraldo

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Este artigo foi publicado originalmente no antigo portal da REDERPG em 1 de março de 2006, onde teve 3.434 leituras.

 

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