A resenha de Call of Cthulhu: Dark Ages (2.521 leituras) foi feita por Luciano Giehl do blog Mundo Tentacular e publicada originalmente no antigo portal em 23 de julho de 2004. Confira a seguir.
Era inevitável. O carro chefe dos jogos de RPG no mundo inteiro são os jogos com temática medieval. Isso ninguém discute. Tudo teve início com o bom e velho Dungeons and Dragons afinal de contas. E como aconteceu com Vampire que se rendeu e lançou alguns anos atrás a sua versão Dark Age, acontece agora com o Call of Cthulhu que lança um suplemento de campanha chamado… Cthulhu Dark Ages. A razão pela qual essa era de decadência e brutalidade fascina tanto as pessoas poderia ser objeto de estudo para uma longa dissertação, porém o objetivo desse texto é analisar este último lançamento da Chaosium. Bem vejamos então:
Cthulhu Dark Ages
176 páginas, $ 23,95, capa mole, interior preto e branco, em inglês
sem previsão de tradução para o português.
Autor: Stephane Gesbert and Friends
Arte interior: Stephane Gesbert, François Launet, Andy Hopp e outros
Editora: Chaosium Inc
Sistema: Call of Cthulhu Clássico
Antes que alguém pergunte, já vou adiantando que as regras obedecem ao sistema básico de Call of Cthulhu e não ao D20 System que lançou a sua própria versão de regras para COC. Portanto não se trata de Dungeons and Cthulhus. Não há armas encantadas, bolas de fogo e nem masmorras para serem vasculhadas.
O livro despertou a minha curiosidade por situar o contexto dos mitos de Cthulhu em uma Era completamente diferente do jogo básico. Para aqueles que conhecem pouco Call of Cthulhu (COC), é válido uma explicação do que se trata o jogo. O cenário se passa no mundo normal, como nós conhecemos, com base nos perturbadores contos e novelas de horror do escritor americano H.P. Lovecraft. Os personagens encarnam investigadores do sobrenatural, que acabam se envolvendo com forças muito antigas e poderosas ligadas aos chamados Mitos de Cthulhu. Essas forças colossais são Deuses e entidades de incrível poder responsáveis entre outras coisas pela criação do Universo, da Terra e da própria raça humana. No passado, muitos destes seres andaram livremente pela Terra, sendo adorados por cultos ancestrais. Hoje a maior parte deles encontra-se hibernando aguardando o dia de seu retorno (quando as estrelas estiverem na posição correta). De tempos em tempos surgem indícios de sua existência seja através da adoração de cultistas dementes que desejam despertá-los ou pela descoberta de artefatos e livros contendo informações sobre eles. Quando estes despertarem a humanidade será destruída em um piscar de olhos.
São duas as grandes sacadas desse RPG: a primeira é que os jogadores encarnam pessoas comuns que acabam se envolvendo com forças esmagadoras, com as quais dificilmente podem lidar. Ou seja, os humanos, são meros insetos comparados a estes seres de incrível maldade. O sentimento de impotência e a realidade de quanto os humanos são insignificantes dão a tônica do jogo. Não por acaso o número de mortes em COC é alto, porém longe de tornar o jogo desestimulante isso torna as aventuras ainda mais imprevisíveis. Armas e habilidades de combate são importantes, mas de que adiantam contra deuses ou mesmo seus servidores?
O outro elemento original de Call of Cthulhu é que à medida que os personagens vão tomando conhecimento das atividades destes seres malignos no mundo, suas frágeis mentes começam a se deteriorar levando-os a loucura. Investigadores mais antigos de COC acabam desenvolvendo paranóias, fobias e outros problemas mentais. E isto abre precedente para interpretações legendárias.
Os cenários de COC eram centrados em três diferentes épocas: 1890, 1920 e atual. Com o lançamento do Dark Ages, o jogo expande seus horizontes olhando para o passado deixando a certeza que o mal dos mitos de Cthulhu sempre estiveram presentes na evolução humana como uma sombra ameaçadora. Nesta era em particular as coisas são ainda mais complicadas. Se nas outras eras, os jogadores já se encontravam em desvantagem mesmo tendo armas de fogo, automóveis e explosivos, aqui as coisas pioram pois a arma mais avançada é um mero arco e flechas. Pior ainda! Antes era possível obter informações em bibliotecas ou antigos livros de magia que ajudariam a combater criaturas malignas, na Era das Trevas não há quase livros, quem dirá bibliotecas. Mesmo saber ler é uma vantagem que poucos possuem.
O jogo se resolve em torno de investigação, no entanto há uma margem maior para combate direto, visto que os personagens são homens e mulheres com uma percepção diferente do mundo a sua volta, em muitos casos uma completa ignorância e falta de informação. O poder da sugestão, das lendas e do folclore são bastante explorados nesse cenário. Criaturas como o Lloigor, que tem uma forma reptiliana, pode muito bem ser vistos como um dragão. E como se trata de uma época de religiosidade latente, beirando o fanatismo, temos a interpretação errônea de que os seres dos mitos são grosso modo demônios do Inferno. Soma-se a isso elementos da própria Era das Trevas que constroem um rico pano de fundo para as aventuras. Call of Cthulhu Dark Ages busca se afastar ao máximo dos conceitos fantasia medieval dos outros RPG. Nesse sistema a Era das Trevas é encarada de uma maneira muito mais realista e crua: ignorância, doença, violência, sujeira e fanatismo fazem parte do jogo que se opõe totalmente ao estilo “medieval clean” da maioria dos cenários fantasia. Não espere amenidades, o suplemento pinta um retrato dantesco da Era das Trevas que nos faz pensar: como nós conseguimos sobreviver à barbárie?
Arte, Diagramação e Estética
A capa é uma excelente: escura, sinistra e soturna, ela mostra um guerreiro com uma tocha, vestido com uma armadura de correntes investigando o que parece ser uma erma caverna. No fundo o Elder Sign brilha de forma tênue e ameaçadora. De um modo geral a arte interna é boa. De forma alguma tem a mesma qualidade da capa, mas se não é perfeita, ao menos não compromete o livro. Todo o interior é em preto e branco, com muitos tons de cinza, e há ilustrações em praticamente todas as páginas. A diagramação é adequada, tornando o livro fácil e gostoso de ler. Há centenas de caixas contendo informações e tabelas espalhadas pelo livro que facilitam a busca no meio do jogo. Infelizmente as tabelas mais importantes não são compiladas no final do livro o que tornaria o trabalho do mestre mais fácil. Mesmo assim há um índice que facilita um pouco.
Conteúdo
Trata-se de um livro com mais de 150 páginas, que cobre uma era repleta de detalhes e particularidades. Seria de se esperar que o livro se concentrasse em uma análise histórica para situar o leitor neste contexto seguindo então para explicar o envolvimento dos mitos e sua influência no mundo. Infelizmente não é isso o que acontece. O maior pecado do livro é explicar as regras gerais do jogo novamente, o que toma um espaço valioso. Quase 50 páginas tratam apenas de situar as regras originais do COC no contexto da Era das Trevas. Felizmente as regras de sanidade se mantêm rigorosamente as mesmas. Há entretanto alterações importantes e necessárias quanto à criação dos personagens (um sistema alternativo de distribuição de pontos), novas ocupações (guerreiro, monge, nobre etc…) e novas habilidades Insight, Potions, Status entre outras) que modificam bastante a ficha de jogo. Mas de um modo geral as regras continuam em essência as mesmas. Rola-se o D% e tenta-se tirar um número menor ou igual a sua percentagem. Fácil, limpo e sem embromação.
Se reproduzir as regras neste livro é fundamental para novos jogadores que tem aqui o primeiro contato com COC, o mesmo acaba frustrando mestres e jogadores que já conhecem as regras do jogo e que já leram o livro básico. Ao meu ver não era necessário compilar – em alguns casos – palavra por palavra as regras que se encontram no livro básico. Bastaria apontar onde estão as alterações.
Como a maior parte dos livros de Call of Cthulhu, há um grande respeito com a história e com a pesquisa. Os autores foram muito felizes em pesquisar elementos da Idade das Trevas e conceder informações que tornam o livro não apenas interessante para o jogo, mas ainda uma boa fonte de informações para todos os curiosos e entusiastas dessa era. Há um excelente glossário de termos e palavras desta era e uma interessante cronologia de eventos políticos, históricos e inexplicáveis que realmente ocorreram na Europa entre o ano 900 e 1050. Infelizmente a parte histórica é tratada de forma bastante breve, certas descrições não passam de cinco míseras linhas. Fica a impressão que os autores poderiam ocupar boa parte do livro com o resultado de suas pesquisas, mas que por limitação de espaço acabaram optando por apenas algumas páginas. O destaque desse capítulo vai para as regras opcionais de doenças e dano, enquanto que o negativo fica por conta do horrível mapa da Europa no ano 1000.
O livro discute ainda uma lista de 44 magias, pertencentes ao chamado Old Grimoire. A maior parte das magias são velhas conhecidas, já vistas no livro básico com pequenas alterações e a inclusão de algumas novas. Há também a análise dos livros de mitos existentes na Europa medieval e um extenso bestiário com as criaturas dos Mitos de Cthulhu. Os monstros são tratados com grande destaque, todos ganharam novas ilustrações e algumas fichas foram revistas. Seguem ainda explicações a respeito do papel destas entidades e servidores, na Europa da Idade das Trevas.
Finalmente a porção final do livro é ocupada por uma longa aventura que se passa no Império Germânico no ano 998. O cenário tem cerca de 40 páginas e é bem construído, muito embora eu tenha achado a história um tanto previsível. Não tenho nada contra inserir uma aventura pronta no livro, porém uma tão grande acaba ocupando o espaço que poderia ser mais bem aproveitado no capítulo sobre a ambientação.
Notas finais
Trata-se de um bom livro para novos e velhos jogadores de Cthulhu. O conceito de uma Era das Trevas mais realista irá agradar aos jogadores e mestres atrás de um maior grau de autenticidade em sua campanha, ao mesmo tempo em que será divertido ver os resultados de um combate entre um guerreiro armado com uma espada contra um Hound of Tindalos ou Star Spawn. Não sei se o jogo sustenta a criação de uma campanha contínua usando os mesmos personagens, porém para aventuras one-shot o livro se mostra uma ótima opção.
eslima
Excelente resenha!, para nós resta o Arknanun do sistema Trevas que é excelente; está estagnado agora. Espero um retorno do Trevas!.
Patesi
Muito bacana a resenha!