Entendendo Belregard
Este cenário se difere um pouco dos mais tradicionais em sua abordagem. Em Belregard não existem raças não-humanas e inúmeras etnias disputam o terreno deste mundo marcado pela guerra. A fé que supostamente deveria unir os homens parece servir mais para segregá-los, com interpretações diferentes de uma verdade que ainda lhes parece fugir do alcance, mesmo com o fato do próprio Deus Criador ter descido ao mundo para lhes orientar. No passado aqueles dedicados às orações eram capazes de operar pequenos milagres, mas desde que Deus morreu, para purificar os homens, estas preces não são mais atendidas e alguns sussurram que ninguém mais os olha “lá de cima” para resguardá-los e tudo o que resta é a perdição da Sombra, que a todos engolfa em seus cortejos de mentiras.
Belregard contou com uma pesquisa histórica para ter seus meandros determinados. Alguns livros de autores consagrados ajudaram a dar coesão à sociedade e ao meio de vida deste povo. Nomes como Marc Bloch, Jacques Le Goff, Michel Pastoureau, entre outros, emprestaram suas teorias e ideias para que fosse possível explicar sobre estas pessoas e seus comportamentos da melhor maneira. Apesar disso, é preciso advertir que Belregard NÃO É A EUROPA. Por mais que existam evidentes semelhanças, muitos detalhes, costumes e comportamentos foram misturados, ignorados ou inventados para que este fosse, de fato, um cenário de fantasia medieval e não uma recriação falha de nossa Europa medieval.
As influências literárias de Belregard podem parecer óbvias, mas valem ser citadas para referências de outros que queiram se inspirar e pegar um pouco do clima deste cenário. Por se tratar de algo um pouco mais denso, pesado e maduro, penso que romances históricos são um ótimo pedido para mostrar certas abordagens ao cenário medieval precário. Bernard Cornwell certamente lhe emprestaria ótimas ideias. Literatura de fantasia também nos alimentaria muito bem a mente, desde o clássico dos clássicos Tolkien até o mais recente, e aparente sucessor, George R. R. Martin. Não podemos nos esquecer de Robert E. Howard e, até mesmo, H. P. Lovecraft.
Certas partes do livro serão apresentadas como tendo sido escritas por personagens desta realidade particular e deve-se falar sobre isso com cuidado, já que o leitor tem de perceber que pessoas são tendenciosas. Portanto, ao ler sobre a história de Belregard, escrita por um sacerdote, deve-se ter em mente que, por mais imparcial que ele tente ser, ainda é um sacerdote e não irá contra os seus dogmas em nome de qualquer neutralidade axiológica. Isso não deve deixar o livro com cara de “meio verdadeiro”, esta questão deve ser vista como oportuna para narradores e outros criadores de estórias. Se não existe uma certeza, já que é apenas o ponto de vista de determinada pessoa, uma imensa gama de possibilidades surge diante dos olhos daqueles capazes de enxergar e a intenção, ao escrever desta maneira, foi exatamente essa.
Conceitos de Jogo
Magia: Ela não existe. Pelo menos não da forma como muitos podem imaginar. Não existem conjuradores capazes de controlar forças primordiais e criar incríveis efeitos destrutivos. A única magia, manipulada por homens, uma vez conhecida em Belregard vinha da adoração ao Único e mesmo esta desapareceu depois da morte de Deus. Apesar disso, ela ainda existe. Belregard é um mundo de magia inata, uma magia que existe na própria terra, colocada pelo Criador no início dos tempos para que a natureza tomasse ordem e tivesse sentido.
Verdade: Ela não existe. Como dito acima, Belregard foi escrito com um conjunto de relatos tendenciosos, que não refletem uma resposta definitiva à maior parte das perguntas possivelmente apresentadas. A verdade pode variar com inúmeros pontos de vista diferentes e isso deve ser lembrado por aqueles que desejam criar suas estórias aqui. Não existe apenas um caminho para determinado fim. Isso fica claro, ainda, na fé que os homens seguem neste cenário. Existem interpretações oficiais para aquilo que o Único deixou de ensinamento para os homens, mas nada impede que cada homem tenha sua própria verdade particular.
Maniqueísmo: Ele não existe. Este ponto é muito importante, os homens de Belregard não possuem uma única face. Eles não são pretos ou brancos, mas sim cinzentos. Não existem heróis definitivos ou mesmo vilões avassaladores. A lealdade é uma moeda muito importante nestas terras onde cada um tem seus próprios interesses ao envolver-se em problemas alheios. Não se deixem enganar e não se deixem limitar. Quer que teu igslavo seja festivo e bem humorado como um dalano? Que assim seja. Homens são homens, para o bem ou para o mal. Mesmo os Arautos, que deveriam ser porta vozes do Único, são pessoas errantes e dignos de pena como qualquer outro indigente de Belreagard.
Variedade: Ela existe! Belregard não pretende ser um cenário de único lado. A intenção aqui é proporcionar o mais variado tipo de ambientação para uma campanha. É preciso entender que o cenário carrega o perfil cru, brutal e maduro da idade média; um local que inspira fascínio e terror, este com castelos imponentes e encantadoras damas desdentadas. O horror é um elemento importante na narrativa de Belregard, seja no simples combate singular em um torneiro de cavaleiros, ou na busca por pistas de Selvagens habitantes dos ermos. O desconhecido é a maior arma do narrador aqui, podendo usá-lo para causar todo o tipo de pressão psicológica e física aos envolvidos em suas narrativas.
Não fiquemos presos a conceitos pré-determinados de guerreiros e sacerdotes, os personagens de Belregard são pessoas, simplesmente pessoas. Se você se sente minimizado ao ser rotulado pela sua profissão, pense da mesma forma para seu personagem. Use de conceitos e abordagens amplas, faça de seu personagem algo vivo.
Mesmo sendo um Cavaleiro Alvo de Igslav lutando na fronteira de Viha, ou um erudito “segundo filho” de uma família nobre, não deixe de experimentar as possibilidades desta nova realidade. Armem-se com criatividade e maturidade para trazer o conceito às suas mesas. Seja qual for a interpretação de fé que decidam seguir, terminem um jogo com a sensação de que o único inimigo dos homens de Belregard são eles mesmos.
Uma Visão
Certa vez, para explicar o conceito básico de Belregard para um amigo, eu usei uma frase: “É como um encontro de Robert E. Howard com a literatura Cortês, enquanto H.P. Lovecraft espia sob as tábuas do porão”. Por incrível que pareça, funcionou muito bem. Por isso irei usá-la para situar no entendimento básico dessa nova realidade. Quando uso o nome de Robert E. Howard, o consagrado criador de Conan, Solomon Kane, Kull e outros, refiro-me a um retrato brutal e nada brando da vida precária e cercada de perigos humanos muito reais. A feitiçaria nas estórias de Conan sempre foi representada como uma benção e uma ameaça e aqueles que a praticavam eram temidos, adorados e odiados. Os conflitos humanos sempre fizeram parte do universo da Era Hiboriana e é este peso da realidade, das consequências dos seus atos em campos políticos e militares, que quisemos trazer para Belregard.
Mesmo com toda sua aura sombria, Belregard não está longe da fantasia, nem que seja no campo das ideias. Trovadores e poetas cantam sobre os valores e as virtudes, aumentam e inventam histórias de cavaleiros galantes e poderosos que enfrentaram bestas profanas, dragões e diabos. Este elemento deve ser lembrado quando se joga em Belregard, já que a arte do Amor Cortês mantém a ideia geral da sociedade fantasiosa e pronta para confrontar a realidade nua e crua trazida por este encontro com Howard. Enquanto um combate é narrado com detalhes e estripulias por um trovador, o combate real, homem a homem, é feio, curto e mortal. Se lhe ajudar a visualizar esta dicotomia, pense em um filme de batalhas. Em Belregard, estes confrontos jamais possuiriam uma trilha sonora, pois tudo o que se precisa ouvir é o som do aço, da carne e do horror.
Por fim, a contribuição de Lovecraft para este imaginário fica por conta do proibido e do inimigo. A Mentira e a Sombra são forças que nós jamais iremos detalhar, são entidades de poder pleno. A Sombra é o rival por excelência, a antítese do Criador, do Único. Existem os Cortejos e os Pactos, tais engendrados por aqueles que almejam o poder de forma rápida, sem se preocuparem com a estrada pecaminosa que terão de seguir para isso. Desde a partida do Pai, a magia deixou de ser executada pelos homens santos, mas a Sombra ainda oferece aos seus escolhidos uma parcela real de sua força. O narrador deve ter em mente que a magia em Belregard é ritualística e mortal, levando executor e alvo a uma espiral de destruição física e mental. Não só de rituais complexos se faz a contribuição lovecraftiana. A existência dos Patriarcas, seres de poder imenso adormecidos nos confins do mundo, também representa uma ótima ferramenta. Os homens de Belregard conhecem muitos inimigos, a Sombra, os Ímpios, mas existem dezenas de outros… Invisíveis, à espera do menor vacilo.
O Sistema G.E.T.
Para a adaptação precisa do que pretendemos passar em jogo através de um sistema de regras, o G.E.T. (General Tatics) foi criado. Trata-se de um sistema de RPG focado na narrativa. Contando com apenas três atributos que visam refletir as principais funções dentro de um jogo (o físico, o social e o espiritual), GET usa apenas dados de seis faces e preza pela colaboração entre narradores e jogadores. Os personagens são únicos, já que contam com uma série de características que lhes tornam diferentes uns dos outros. Tais características (que abrangem uma imensa gama de possibilidades, de escolha livre de cada jogador) não são apenas um recurso narrativo, já que influenciam nas regras, favorecendo ou prejudicando um personagem em determinadas situações.
Para emular um conceito específico de Belregard, a Bravura (que será explicada), GET conta com um quarto atributo. Este atributo “coringa” serve para aqueles que desejam focar suas campanhas em jogos onde a busca pela Verdade Elementar é mais importante que joguetes políticos. Mesmo em jogos que não estejam embasados nesta busca, o atributo pode representar um elemento importante. Servindo, talvez, como a Bravura pura e simples, como o próprio nome sugere. Um elemento que poderá, eventualmente, distinguir determinado personagem entre uma multidão de alienados.
Todo o sistema foi elaborado para focar-se na narrativa e bom senso, excluindo profundas e extensas tabelas por rolagem padronizadas, simples e metódicas.
Jogando Belregard
Belregard foi construído para ser um cenário que funcione sozinho. Tentamos deixar tensões políticas e religiosas aflorando no ambiente para que o narrador tivesse a sensação de que qualquer acontecimento seria um simples curso natural das coisas. Dessa forma, é possível para ele ver “o mundo girar” sozinho, diante da leitura de todo o material. O ponto final da cronologia do cenário, que será o ponto de partida para os jogos, é o de um mundo entregue a uma verdadeira Idade das Trevas, cheia de superstição e vigília religiosa. Depois da queda de um império, barões e condes se nomearam senhores de seus territórios, gerando uma nova divisão feudal no mapa político. Velhos ódios voltaram a aflorar e a unidade conseguida por longos anos caiu por terra. O comércio enfraqueceu e na falta de uma resposta dos céus, muitos homens se voltaram à Sombra, cortejando-a com favores a sua horda de Ímpios e bestas nefastas.
Como dito acima, Belregard possui uma abordagem madura e crua. Como conseguimos desenvolver um cenário coeso, nos parece interessante deixar aberta a possibilidade para que jogadores e narradores simplesmente coloquem seus personagens neste mundo e assim aproveitem suas intrigas e conflitos. Por outro lado, existe um ponto fundamental em todo o conceito deste cenário. Trata-se da busca pela Verdade. Esta verdade é mais do que uma simples revelação. Desde que o Criador partiu para seu lar, os homens se sentem abandonados e muitos se preocupam com esta situação. Neste tipo de jogo, seu personagem é um Desperto que tem os meios para realmente desvendar este mistério.
Para deixar mais claro, dividimos os “estilos de jogo” em dois. Estes serão explicados abaixo:
Despertos – Aqui os jogadores cumprirão o papel de Arautos e dessa forma deverão ser capazes de enxergar além da Mentira que os cerca. Devem ser capazes de olhar além de joguetes políticos e problemas meramente mundanos, assim resgatando o verdadeiro papel da humanidade como escolhidos de um Deus que não está olhando por eles do paraíso, mas sim dentro de cada um, através da centelha divina por Ele colocada.
O desafio nesse tipo de jogo é relacionar o conhecimento de um mal perene, tentar combatê-lo e ainda manter suas relações e a própria vida nos eixos. Um exemplo claro, que fica fácil para todo mundo entender, é comparar a Mentira com a Matrix. Dessa forma, os personagens serão homens e mulheres despertos, que saberão sobre uma verdade elementar que deve ser colocada ao conhecimento de todos, mas que ao mesmo tempo tenham noção do perigo que isso representa. Para um desperto, quanto mais ele se aproxima da plenitude, através de sua Bravura, mais difícil fica conviver com mundanos, com as pessoas normais e cegas. Ser um Arauto é perigoso. Falar sobre a Mentira pode resultar no ostracismo e assim um herói pode terminar como um velho louco em uma praça. Como diriam os Puros “Ser um bravo numa terra de covardia é como lutar contra um leão em tempos de pouca caça”.
Mas o que é a Verdade? Ela já foi tratada aqui, mas iremos frisar, Deus está morto. Ninguém olha com compaixão para os homens de Belregard. Apesar disso, todo ser vivente possui a centelha divina do Criador dentro de si. Algo que ele mesmo deu e fez arder no momento em que caminhou no mundo. A busca pela verdade, no fim das contas, vai além do autoconhecimento. É ditado comum entre os sacerdotes de Virka: “Os homens são apenas homens, para o bem e para o mal”.
O inimigo com quem os Arautos terão de travar batalhas muitas vezes será interno. A própria igreja se mantém como um verdadeiro antro da Mentira, fazendo com que a ideia da salvação se prolifere pelo mundo. Isso não significa que todo prelado é um agente do mal. A grande maioria das pessoas não tem a menor noção do que se passa e simplesmente seguem suas vidas. O papel do Arauto é rasgar este véu e sobreviver à retribuição da Mentira.
Como se não bastasse, quando o Único pisou na terra, seu poder projetou uma Sombra e ela ganhou vida, sondando o homem e se impregnando no coração imperfeito deste. A Sombra perde forças sempre que a Mentira é desmascarada e por isso, ela usa todo o seu poder para caçar, pilhar e destruir os Arautos, sempre acompanhada dos ímpios, seus arqui servos à serviço da manutenção da sua base de poder perverso.
Autarcas – Esta “modalidade” é para aqueles que não querem levar o jogo para o lado espiritual. É para aqueles que gostaram da situação política de Belregard e viram que ali é possível seguir com muitas histórias sem precisar de nenhum Arauto no grupo. Seria o estilo de jogo que usa o cenário por si só, fazendo aventuras que envolvam suas políticas, histórias, culturas e etc. É um jogo para se formar um grupo de personagens membros de uma companhia mercenária que decide lutar na fronteira de Viha e Rastov, ou políticos na corte de Virka. É algo mais livre. Enquanto que um jogo de Despertos teria automaticamente uma aura de mistério e isolamento, um jogo de Autarcas deve ter mais liberdade na escolha do tema. Sendo assim é possível se divertir com um jogo focado em ação, suspense, horror e até manipulações e politicagem.
Para um jogo Autárquico, os Arautos são apenas sábios, loucos ou filósofos distantes, e suas possíveis “verdades” são apenas panos de fundos para as coisas que realmente importam no mundo físico.
Os Dois?
Funciona. Nada impede um narrador de colocar o grupo de Arautos envolvido em politicagem dos reinos, tendo que se virar pra resolver problemas rotineiros antes de seguir em sua busca pela Verdade. Se parar para pensar, a mistura entre os dois é quase automática. O narrador pode escolher que apenas um membro do grupo é um Arauto e através de sua dialética consegue convencer outros a seguirem seus passos, atuando assim nos muitos outros campos possíveis dentro do jogo. Mesmo num grupo formado unicamente por Arautos, eventualmente será necessário o envolvimento na política dos homens e é ai que a revelação cobra seu maior preço, quando apresenta antigos amigos como completos ignorantes.
Esta é Belregard, uma terra de castelos assombrosos e encantadoras damas desdentadas.
Por Jefferson Neves – jnsbmm@gmail.com
e Rafael Araujo – Rafael.jakeline.araujo@gmail.com
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Conan_da_Cimeria
Eu já tinha baixado o Fastplay de Belregard, e achei fodástico. Apesar de não ser 100% original (como todo cenário de Fantasia hoje, depois de Tolkien, Howard, Martin e de todos RPGs de Fantasia já lançados, é difícil um cenário novo não cair em algum elemento já consagrado), sua complexidade apresentada de forma “simples”, com as duas opções de jogo (Despertos e Autarcas) e o foco bem mais narrativo, me cativaram completamente. Sinceramente eu prefiro cenários de fantasia sem raças fantásticas (ou no máximo como antagonistas) e por isso mesmo sou um grande fã de Robert E. Howard e George R. R, Martin, mais até do que Tolkien (apesar de gostar bastante de Tolkien também). Conan RPG (Mongoose) e Iron Heroes são meus RPGs D20 preferidos, e Vampiro – A Idade das Trevas um de meus RPGs favoritos (é medieval, e ainda assim tem elementos de fantasia, como os próprios vampiros, elemento principal do cenário).
Mas quando sai a versão DEFINITIVA de BELREGARD? Por enquanto só tem o Fastplay, Abração e muito sucesso!!!
rafaelkain
Conan
Obrigado pela analíse. Realmente, é muito dificil ser original, tanto que posso dizer claramente que quando pensei no Arautos, pensei nos Prometheanos da White Wolf, onde quando mais BRAVO, mais o mundo lhe repudia.
Infelismente, muitos acham que nos inspiramos em Game of Thrones, porem, o jogo já estava conceitualizado muito antes.
Sobre a versão final. Posso lhe dizer que temos quase 200 paginas escritas, estamos apenas lapidando a coisa. Mas está quase pronto. Estamos procurando Playtesters na verdade!
Obrigado!