Representando as classes básicas de D&D é uma série de artigos escrita pelo Newton “Tio Nitro” voltada para os jogadores e que continua atual. O quarto artigo (10.807 leituras) é sobre o Clérigo, e foi publicado no antigo portal em 6 de junho de 2004. Confira a seguir.
O Clérigo
O clérigo é uma das classes básicas do Dungeons and Dragons mais importantes para um grupo de aventureiros. Mas isso não impede de ser a classe que mais sofre dos preconceitos e dos “vícios” dos jogadores. Essa visão mais estreita da classe aparece em apelidos como “Poção de Cura Ambulante”, “Santa Casa” (isso é mais para o pessoal de Belo Horizonte!), “Band-aid de Armadura”, etc. É claro que o clérigo é a classe com as melhores magias de cura do Dungeons and Dragons, mas essas idéias pré-concebidas acabam prejudicando na representação da classe. Espero que esse artigo inspire os jogadores a olharem os clérigos de uma forma mais profunda e que ajude a enriquecer a sua representação.
Os jogadores inexperientes podem não ter notado algo que os jogadores mais veteranos devem saber de cor: os clérigos são uma das classes mais versáteis do Dungeons and Dragons. Porque? Bem, eles usam muita magia, podem usar qualquer tipo de armadura sem sofrer penalidade em sua magia, tem uma boa capacidade de luta corporal, possuem a capacidade de repelir mortos-vivos, muitas magias poderosas que não possuem teste de resistência (principalmente em níveis mais altos), além de terem acesso à magias de cura como nenhuma outra classe. Além disso, eles não precisam carregar grimórios ou ficar decorando magias, basta uma oração diária para o seu deus de escolha e pronto! O clérigo está pronto para mais um dia de aventuras.
Mas o grande diferencial do clérigo está em sua fé. A primeira sugestão para aqueles jogadores que forem criar um clérigo, pode se resumir em uma única frase: CONHEÇA BEM A FÉ DO SEU PERSONAGEM!
Quanto mais tempo o jogador gastar em conhecer a Divindade que ele escolheu para o seu personagem clérigo, quanto mais tempo ele gastar em descobrir (ou inventar, se for o caso) o funcionamento da Organização Religiosa onde o seu clérigo está inserido, o código de conduta (se houver), os votos (também se existirem), as principais personalidades de sua religião (o sumo-sacerdote, heróis, mártires, santos, seus superiores), melhor será a representação de um clérigo. Um homem de fé será muito influenciado pela organização religiosa que ele está inserido e buscará inspiração nos santos e nos grandes heróis de sua religião.
O jogador pode procurar inspiração em grandes personagens de fé da literatura e do cinema. Praticamente todos os filmes bíblicos mostram exemplos de personagens clérigos, que buscam expandir sua fé e agir em nome de seu deus. Porém, os clérigos do Dungeons and Dragons possuem uma característica mais guerreira, assim os jogadores podem combinar o aspecto da fé religiosa dos personagens bíblicos com a parte da luta e do combate dos clérigos do D&D. Uma personagem que mostra muito bem essa combinação é Joana D’Arc. Apesar de Joana D’Arc comandar exércitos como um Paladino, o seu modo de agir, a sua intensa fé, suas visões e conversas pessoais com Deus, sua postura anarquista frete às organizações militares, a colocam muito mais próxima da idéia do clérigo guerreiro do D&D. Para aqueles que querem com a classe do clérigo pode ser interessante e fornecer muitas oportunidades para a representação, recomendo assistir o filme do Luc Besson “Joana D´Arc”, com a belíssima Mila Jojovic em seu melhor papel no cinema.
Outros exemplos de clérigos são os padres do filme “O Exorcista”, onde existe um grande exemplo dramático de um caso de exorcismo (que poderia ser usado por Jogadores criativos na biografia de seus personagens). Filmes bíblicos também dão ótimas bases para criar personagens clérigos. Personagens bíblicos como Moisés (com sua fé absoluta no poder de seu Deus em libertar os Judeus da escravidão dos Egípcios), a história de Sansão (que dedicava sua imensa força ao seu Deus), também podem servir de base para uma representação do clérigo mais profunda.
Na literatura de fantasia, temos o exemplo de Goldmoon, clériga de Mishakal no universo de Dragonlance (cuja série clássica de romances está sendo publicada pela Devir Editora). Goldmoon oferece um grande exemplo de dedicação e fé em sua deusa, pois no momento em que ela se converte, os deuses estão desacreditados em Krynn.Um exemplo muito diferente de clérigo é o personagem William of Bakersville, o monge franciscano do livro de Umberto Eco, “Em Nome da Rosa”. Mais conhecido por ter sido representado por Sean Connery na versão cinematográfica (e light) do livro de Umberto Eco, William é um clérigo-detetive, que possui uma mistura de fé e grande poder intelectual e racional em sua personalidade. William é uma espécie de Sherlock Holmes medieval e pode ser uma excelente base para o Jogador criar um clérigo mais original e diferente.
A Base de Um Personagem Clérigo:
Como coloquei nos artigos anteriores sobre o Guerreiro, o Mago e o Ladrão, a biografia de um personagem ajuda muito aos Jogadores a criarem um personagem bem construído e memorável. Com o clérigo não é diferente, porém, a classe possui um elemento que a difere das demais; a experiência da conversão religiosa.
Tem que haver um motivo para que o personagem tenha escolhido a vida religiosa como opção de vida. Em um mundo medieval (ou pseudo-medieval como os mundos de Fantasia), apenas uma pequena parte da população escolhe (e consegue) seguir a vida religiosa. Assim, normalmente, os clérigos passam por algum tipo de experiência religiosa com o Deus que escolheu seguir (ou até mesmo algum tipo de experiência traumática com a Entidade que é inimiga desse Deus que escolhera seguir). A conversão é uma experiência importante para definir o modo como será o clérigo. Mesmo quando não ocorre ela também interfere no clérigo pois um religioso que nunca teve a experiência de conversão será certamente um hipócrita manipulativo (o que cria grandes oportunidades de representação).
Aqui estão seis sugestões de conversões para colocar na biografia do clérigo, para inspirar os Jogadores. Para determinar na sorte, basta rolar 1d6 e olhar na tabela. Porém o mais importante é que os Jogadores possam se inspirar e criar o momento da Conversão de seus personagens clérigos (lembrando também aos Mestres que os PdMs clérigos também tem que ter tido seus momentos de conversão):
Tabela de Conversões Religiosas (1d6)
1) O personagem se converteu ao seu Deus depois que foi o único sobrevivente de uma catástrofe que destruiu toda a sua vila de origem. Ele foi salvo através de visões ou sonhos proféticos que lhe diziam que ele seria muito importante para o futuro do mundo.
2) O personagem se converteu ao se encontrar com um Avatar do Deus que ele seguirá no futuro. O personagem acabou virando um discípulo desse Avatar e o seguiu em sua peregrinação por todos os lugares. Quando esse Avatar morreu (ou fora morto pelas autoridades), o personagem decidiu continuar com a missão de espalhar a mensagem de seu Deus.
3) O personagem se converteu depois de anos que passara dentro do templo que o criou desde pequeno. Como era um órfão que fora abandonado nas portas do templo quando nascera, o personagem acabou sendo criado pelos sacerdotes do local. Com o tempo ele foi aprendendo sobre a religião do seu Deus e em uma determinada noite, teve uma experiência religiosa dentro do templo (que pode ter sido uma cura milagrosa, uma visão divina, uma aparição, uma profecia importante para o reino, etc.). Com isso o personagem decidiu se formar como sacerdote do templo.
4) O personagem sofreu um grande trauma na sua infância quando os seguidores de um Deus Maligno invadiram a sua vila/cidade/fazenda e sacrificaram seus entes queridos em rituais horrendos. Por algum milagre ele sobrevivera e o desejo de vingança acabou levando-o para a religião do Deus inimigo do Deus Maligno. Sua fé fanática fez com que sua formação religiosa fosse muito rápida e sua ascensão dentro da hierarquia da sua igreja fosse acelerada. Assim que se viu preparado, o personagem partiu em uma missão fanática de vingança, para erradicar todos os seguidores do Deus Maligno que causou a maior tragédia de sua vida.
5) O personagem era um completo ateu e não acreditava em nenhum deus. Quando ele viu a sua vila ou seus familiares/entes queridos sofrendo com uma praga/doença/maldição misteriosa, ele se desesperou. Em seus delírios de dor ele teve visões com um Deus que lhe mostrou como acabar com aquela maldição/doença/praga. O personagem agiu de acordo com os preceitos divinos e o martírio foi eliminado. A partir desse dia, o personagem decidiu seguir esse Deus e procurou ter uma vida religiosa seguindo seus preceitos.
6) O personagem nunca se convertera, pois era um ladrão que escolhera entrar para um templo/monastério/convento/seminário por causa da casa e comida de graça. Apesar de se desenvolver como clérigo e de até manifestar os poderes divinos do Deus que escolhera, sua fé não é muito verdadeira, o que faz dele um grande manipulador e mentiroso. Ele usa de sua lábia até para enganar o seu Deus, fazendo promessas sagradas que não são cumpridas, quebrando alguns mandamentos. Por algum motivo misterioso (uma profecia, um capricho talvez) o seu Deus não tirou os seus poderes (talvez ele tenha algum plano reservado para o personagem).
Existem várias formas de se representar um clérigo, para se ir além do clichê de ser o “Pronto Socorro Ambulante” do grupo. Aqui estão quatro sugestões de diferentes tipos de personalidades clericais, que servirão de inspiração para outros tipos de clérigos.
Tabela de Personalidades para Clérigos (1d4)
1) O “Vingador Sagrado”: Para o “Vingador Sagrado” tudo que importa é a sua busca, a sua missão divina de espalhar a glória de seu Deus pela terra. O “Vingador Sagrado” é normalmente uma pessoa muito séria, e interessado em completar os desejos de seu Deus. Ele é muito decidido no combate e possui pouca tolerância para tudo que foge dentro da sua visão de mundo. Mas isso não significa que ele não vai se dar bem com os seus membros do grupo nem que ele apenas se preocupe com sua missão sagrada todo o tempo. Como o “Vingador Sagrado” é normalmente de alinhamento Leal, ele se dará bem com outros personagens da mesma tendência, e pode agir como um personagem que coloca o grupo “na linha” (dependendo, é claro, do alinhamento do seu Deus.
Biografia do “Vingador Sagrado”: O “Vingador Sagrado” deve ter tido uma vida muito dura e uma experiência dramática de conversão para ter desenvolvido esse estilo de personalidade.
2) O “Noviço”: O “Noviço”, por ter vivido toda sua vida dentro de um templo não conhece muito do “mundo real”. O “Noviço” terá um tipo de visão mais ingênua da vida e das aventuras, e mostrará sempre um lado mais otimista de tudo. O “Noviço” é aquele tipo de clérigo que está sempre sorridente e não consegue compreender a malícia e a maldade. Porém, quando contrariado, o “Noviço” pode mostrar uma enorme fúria infantil, pois ele compensa sua falta de malícia com o modo como segue as normas éticas e morais de sua divindade. O “Noviço” pode gerar muitas oportunidades de representação, principalmente as clássicas situações de “peixe fora d’água”, quando o grupo entrar nos locais mais “podrões” das cidades, como tavernas de má fama ou casas de diversões de gosto duvidoso.
Biografia do “Noviço”: O “Noviço” cresceu dentro de um templo e pode ter sido um órfão recolhido, um filho rico da burguesia que foi dedicado ao sacerdócio, etc.
3) O “Filósofo”: Esse tipo de clérigo tem uma visão filosófica de sua religião. É sábio e tolerante com outras visões de mundo e adora discutir sobre os pontos mais importantes de sua religião, para converter os outros através da razão e do raciocínio. Ele tem sempre um argumento na ponta da língua e dá lições de moral sem impor nada. Ele também tem um lado investigativo e está sempre procurando entender os sinais divinos que aparecem na aventura. Ele não é impulsivo, sempre calcula as suas ações e normalmente tem uma busca pessoal de conhecimento: uma busca de um tomo sagrado, um artefato divino, um pedaço perdido de uma profecia, o paradeiro de um Avatar de seu Deus, etc.
Biografia do “Filósofo”: O “Filósofo” pode ter tido algum tipo de formação intelectual antes de ir para o Templo/Monastério/Seminário para se formar sacerdote. Muitas vezes, os personagens filósofos entraram em uma organização religiosa mais em busca de conhecimento intelectual do que por causa de sua fé. Podem ter sofrido algum tipo de conversão ou não.
4) O “Místico” : Esse tipo de clérigo é um dos que mais exige do jogador em termos de representação. O “Místico” é aquele clérigo que é totalmente entregue à vontade de seu Deus. Perante aos outros membros de seu grupo, o “Místico” pode parecer um louco, com suas conversas em voz alta com seu Deus, suas profecias, seu olhar vidrado de visionário e sua mania de ver sinais divinos em todos os lugares. Mas se for bem dosado esse lado profético/missionário, o “Místico” pode dar um grande colorido para uma sessão de jogo. O “Místico” acredita que está em constante contato com sua divindade, o que pode ou não ser correspondido pelo Mestre do Jogo. Ele irá fazer vários pronunciamentos dramáticos, falar em parábolas, ver sinais, entre outras coisas. O “Místico” não liga se lhe dão atenção pois ele sabe que apenas os “escolhidos” por seu Deus que serão salvos.
Biografia do “Místico”: O “Místico” normalmente passou por alguma experiência dramática que o levou a ter essa entrega total ao seu Deus. Falência financeira, fome, estupro, violência extrema, tortura, loucura, qualquer tipo de experiência traumática pode ter despertado essa ligação mística com a divindade que ele segue. A divindade pode ter aparecido para o salvar da loucura ou da depressão em que se encontrava, e como gratidão, ele se entrega totalmente à sua vontade.
Para finalizar, vamos refinar mais o nosso personagem clérigo, detalhando como é a sua vida religiosa. O Jogador ajudaria bastante ao Mestre se ele mesmo desenvolvesse os detalhes da fé e da religião do seu clérigo. Aqui estão algumas perguntas que ajudarão a detalhar mais o clérigo e a criar mais oportunidades de representação:
1) Como é a relação do personagem com a divindade que segue?
2) Como são os rituais que ele tem que fazer? Quando ele tem que fazer esses rituais?
3) Como são os rituais de nascimento, iniciação à ordem religiosa, casamento e morte da religião que o personagem segue?
4) Existem datas religiosas na religião que o personagem segue? O que se faz nessas datas? Existem algumas restrições alimentares, sexuais, comportamentais nessas datas?
5) O que se pode e o que não se pode fazer dentro da religião que o personagem segue?
6) Como é a relação com personagens de outras religiões? Como é a relação com os ateus? Como é a relação com os seguidores dos deuses inimigos do deus da religião do personagem?
7) Qual é o livro sagrado da religião do personagem? Se não existe livro sagrado, como que os ensinamentos do Deus é passado à diante?
8) Quais são os cânticos/orações/rezas da sua religião? Qual é o seu símbolo sagrado e qual é o símbolo sagrado da organização religiosa à que pertence? Como é a hierarquia da organização religiosa a que pertence? Quem é o sacerdote mais poderoso? Quem são os heróis, os santos, os mártires e os grandes nomes de sua Igreja?
9) Como são as roupas, as cores usadas, os utensílios religiosos (bastão, cetro, medalhão, etc.) que o clérigo usa para suas magias de repulsão de mortos-vivos?
10) Quais são as punições para os clérigos que não seguem os dogmas da Igreja do personagem? Quando que um clérigo é expulso?
Por Newton Nitro
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