Ravenloft é o clássico cenário gótico de D&D que já foi inclusive lançado aqui em terras brazucas. Em 3 de setembro de 2003 foi publicada no nosso antigo portal a resenha (1.736 leituras) escrita por Eduardo “Arijani” Peret, um profundo conhecedor desse cenário, sobre a versão da Terra das Brumas para a 3a Edição de Dungeons & Dragons, então recém lançada em português pela Devir. Confiram a seguir.
No princípio era só uma aventura de D&D®, um castelo sombrio no alto de uma montanha, um vilarejo medieval e muita, muita neblina. Um vampiro antigo, mestre de magia, poderoso, sob o jugo de uma maldição ainda mais poderosa. Mais do que vencê-lo em combate, era preciso sobreviver aos perigos da noite, às traições dos que se mostravam como aliados, ao próprio medo, ao horror e à loucura. Assim começava Ravenloft®, e o terror estava longe de acabar.
Muito tempo se passou. A Terra das Brumas se expandiu, outros reinos – e seus Lordes Negros – vieram se juntar à Baróvia, formando um dos cenários de D&D® mais famosos de todos os tempos. E agora já está nas lojas brasileiras a versão atualizada e traduzida de “Ravenloft – Livro de Regras Básicas”, no sistema d20. Um cenário de campanha em que heróis são poucos e os perigos são numerosos. Além de monstros e magia, os personagens têm que enfrentar seus próprios medos. O horror infesta o ar de tal forma que coisas e fatos que, em outros mundos de campanha, poderiam ser encarados com certa naturalidade, aqui são capazes de causar efeitos devastadores no coração e na mente, em muitos casos de forma duradoura ou até permanente!
E pior de tudo, infeliz é o herói que se deixa levar pela sede se sangue, pela ira, pela covardia, pela cobiça ou mesmo pelo excesso de zelo em “expurgar o mal”: esses caminhos e muitos outros levam à espiral descendente dos Testes de Poder, onde se ganha benefícios aparentes, com um preço a pagar que sempre é maior do que a vantagem, e quanto mais o personagem se deixa levar, mais difícil e penosa é a estrada da redenção. Mas ainda há esperança de redenção, exceto para os Lordes Negros – esses buscaram suas próprias maldições, e vão conviver com elas para sempre. Cada Lorde Negro é uma criatura, pessoa ou monstro de grande poder, preso a uma maldição pessoal e incapaz de deixar um território, seu Domínio. Os demais vêm e vão através das fronteiras dos domínios – algumas correspondendo a fronteiras geográficas de países, outras não – mas quando um Lorde Negro deseja, as fronteiras se fecham e é praticamente impossível sair. Culturas, idiomas e moedas diferentes surgiram em cada domínio, fazendo com que muitos deles se tornassem nações. Nem sempre os Lordes Negros são os líderes políticos, mas certamente são os mestres absolutos de seus domínios.
Assim é Ravenloft®, o cenário de campanha. Mestres e jogadores que ainda não o conhecem devem se preparar: para aqueles que estão acostumados com cenários aventureiros como Forgotten Realms®, este mundo poderá ser um choque. Há relativamente poucos tesouros para se acumular; não há dragões em cada montanha – aliás, essas feras mágicas são objeto de lendas – nem tempos em que os deuses caminhavam entre os mortais. Ao contrário, as divindades parecem ter estabelecido um acordo mútuo de “olhar para o outro lado” quando se trata do Semiplano do Terror.
Por isso, muitas coisas funcionam de maneira diferente, em especial a magia. É impossível detectar o Bem e o Mal; a adivinhação é muito prejudicada; outras magias (especialmente de Necromancia) têm efeitos ampliados mas podem trazer conseqüências aterradoras; o teletransporte não pode atravessar fronteiras de domínio fechadas; familiares invocados e montarias de paladino são “amigos zelosos” em excesso, chegando à beira da psicose; animais e plantas despertos por magia acabam sucumbindo à maldade que permeia a Terra; criaturas convocadas não conseguem retornar aos seus planos de origem e se revoltam contra seus invocadores – isso é apenas uma pequena amostra do que pode acontecer.
Além disso, os habitantes são extremamente desconfiados, a muitos são completamente xenófobos, tratando viajantes e forasteiros com, no mínimo, uma indiferença que mal consegue disfarçar sua total rejeição. As raças de PJ têm um Grau de Rejeição básico ao lidar com humanos, um valor que afeta negativamente todos os seus testes relativos ao Carisma. Esse valor pode ser aumentado ou reduzido conforme diferenças culturais – como por exemplo o uso de armaduras pesadas em locais de nível cultural renascentista – atitudes, feitos heróicos e outros fatores.
Há nove diferentes níveis culturais, desde o Selvagem (há até domínios sem habitantes humanóides) até à Renascença, com relógios de bolso, armas de fogo e livros impressos, e onde armaduras pesadas são mal vistas. Uma ampla variedade de equipamentos novos está disponível aos personagens que puderem pagar por eles, desde que o nível cultural da região seja alto o bastante para permitir tais invenções.
O livro básico do cenário apresenta outras novidades e características interessantes:
No Capítulo 1: O Mundo de Ravenloft é feita a apresentação inicial do cenário, suas características e o que o diferencia dos demais mundos de campanha. Há uma introdução muito interessante explicando a filosofia por trás do gênero conhecido como “horror gótico”. A história do Semiplano é explicada de forma clara e sucinta, desde os crimes do Conde Strahd von Zarovich, o primeiro Lorde Negro, até os tempos atuais, mais de 400 anos depois da entrada da Baróvia nas Brumas. Os níveis culturais são explicados e também é oferecido um glossário dos termos mais usados no livro.
No Capítulo 2: Personagens são oferecidas as regras básicas de criação de personagens, com raças, classes, perícias, talentos, religiões e equipamentos. O primeiro destaque vai para a ausência de meio-orcs, criaturas inexistentes por uma razão lógica: não há orcs em Ravenloft. Em compensação, quando uma criança de qualquer raça humanóide é vítima de uma maldição, magia negra ou algum efeito similar, ainda no ventre da mãe, nasce um caliban. Deformados e execrados, eles usam os mesmos modificadores de habilidade do meio-orc, mas partem de uma lógica de criação de personagem diferenciada.
Outra raça nova é o meio-Vistani. Em Ravenloft, os Vistani são ciganos, um povo misterioso, temido, odiado ou respeitado, conforme o local onde surgem. Incapazes de fixarem residência, os Vistani viajam por quase todo o Semiplano. Em muitas ocasiões, rápidos encontros amorosos com habitantes locais têm como resultado um giogoto, ou meio-Vistani. Visto com desconfiança pelos moradores e nunca totalmente aceito pelos Vistani, o giogoto deve achar ou criar seu próprio lugar no mundo.
O capítulo segue explicando as diferenças entre as classes de personagem do Livro do Jogador e suas versões em Ravenloft. A seguir, as perícias são mostradas de uma forma nova: como usar Blefar para seduzir ou “ler a sorte”, por exemplo, ou como usar Alquimia para criar pólvora. Outro destaque é a perícia de Hipnose, que pode ser usada no processo de cura de insanidade. Há também uma lista de novos talentos, com características próprias dos Domínios do Medo: por exemplo, ter o corpo frio e enganar os mortos-vivos sem inteligência; a capacidade de ver fantasmas; uma sintonia mística com as fases da lua, dando vantagens e desvantagens conforme o ciclo lunar; e ainda, a capacidade de conjurar diariamente duas magias de druida de nível 0, ou uma magia de 1o nível – mas somente ruivos podem ter esse talento.
No Capítulo 3: Os Caminhos do Mundo estão as explicações sobre como funcionam as mudanças na magia, , os infames “sorvedouros do mal” que envolvem os Lordes Negros e lugares de grande maldade, e ainda os três conjuntos de regras que ajudaram a destacar Ravenloft® dos demais cenários de D&D: (1) como lidar com Medo, Horror e Loucura, com dicas de interpretação e tabelas de referência para auxiliar os jogadores e DMs a entender esse aspecto inerente do Semiplano do Terror; (2) maldições, suas causas, tipos e efeitos; e (3) os temidos Testes de Poder, destinados a recompensar/punir aqueles que se deixam seduzir, mesmo que infimamente, pelo Mal. Em um cenário como Ravenloft®, o personagem pode ser seu pior inimigo.
O Capítulo 4: Os Domínios do Medo traz descrições dos Domínios que compõem o Núcleo – o continente principal – e os mares que o circundam, as Ilhas do Terror e os Aglomerados, conjuntos de duas ou mais Ilhas do Terror que se reuniram por alguma razão. O texto informa como é a geografia, o povo, a moeda, as relações comerciais, um pouco da cultura e da história do local, oferecendo ferramentas para o DM preparar sua campanha e para o jogador criar um personagem nativo. Destaque para os Caminhos das Brumas, formas místicas de se navegar através das brumas de um local para outro a uma distância absurdamente grande, às vezes viajando do Núcleo para as Ilhas do Terror ou Aglomerados ou vice-versa. A viagem é perigosa e não é totalmente confiável, mas caravanas mercantes e exploradores corajosos se dispõem a seguir a rota.
Cabe chamar a atenção para dois detalhes importantes, relativos a produtos futuros:
(1) o livro básico não traz fichas nem informações detalhadas sobre os Lordes Negros, porque o intuito da série de produtos é, diferente de produtos anteriores, afastar as campanhas desses personagens centrais e dirigi-las mais para o ambiente do cenário como um todo. Os principais Lordes serão detalhados em um suplemento – “Secrets of the Dread Realms” – que se seguir a mesma lógica de tradução, poderá se chamar “Segredos dos Reinos Assombrados” ; os próprios responsáveis pela cenário informaram que esse suplemento é perfeitamente dispensável (a menos que o DM tenha pressa em saber algo específico sobre algum Lorde) o que nos remete à segunda observação:
(2) A linha editorial de Ravenloft® está lançando, com intervalos médios de dois a três meses, os Gazetteers, uma série de suplementos, na maioria muito bem feitos, que detalham de três a quatro domínios cada, incluindo segredos que não apareciam em outros livros, organizações secretas, novos talentos, classes de prestígio locais, monstros, modelos, magias, fichas de personagens importantes e as fichas atualizadas dos Lordes Negros.
O Capítulo 5: Os Horrores da Noite, é mais voltado para o DM ter condições de criar monstros individualizados e únicos. São apresentadas modificações e extensões para os modelos de Vampiro, Fantasma, Licantropo, Lich, Construto e Múmia; também é apresentado um novo modelo, para Bruxa; e ainda há informações sobre os Abissais, diabos e demônios que entraram em Ravenloft® por caminhos diversos (destaque para as regras de transposição de um mortal por um abissal); outro ponto importante são os Vistani, o misterioso povo cigano que vaga pelos Domínios do Medo atravessando fronteiras etc. Para quem já conhecia o cenário de Ravenloft®, essas informações compõem a versão 3.0 das informações contidas nos famosos Van Richten’s Guides, livros da 2a edição que serviam de guias para aventureiros e sábios de Ravenloft®, escritos em primeira pessoa pelo famoso aventureiro, médico e explorador, Dr. Rudolph Van Richten. Os livros foram reeditados, ainda em 2a edição, na forma de coletâneas – no mundo de jogo, foram as duas aprendizes e seguidoras de Van Richten, as gêmeas Weathermay-Foxgrove, que se encarregaram da nova edição.
Houve algumas críticas quanto a esse capítulo figurar em um livro que deveria ser voltado para os jogadores; a razão principal foi o fato de que o livro descreve o cenário de campanha como um todo, e além disso, como os autores e editores da versão 3.0 não tinham permissão contratual para reeditar nenhum produto da 2a edição, o capítulo 5 foi a saída encontrada para incluir essas informações importantes e exclusivas de Ravenloft® no livro inicial, dando assim condições ao DM de iniciar sua campanha com um “sabor local”.
No Capítulo 6: A Campanha de Ravenloft®, o leitor encontrará ferramentas para trabalhar sua própria campanha, com temas comuns ao cenário de horror gótico, estratégias de ambientação etc. O livro tem uma linguagem bastante didática e de fácil entendimento, ideal para quem está começando a se embrenhar pelos caminhos tortuosos do RPG de horror.
Agora, algumas críticas, comentários pessoais e novidades “quentinhas”:
- A tradução do livro está bastante razoável, tendo seguido uma lógica ligeiramente diferente da de Forgotten Realms®, por exemplo, e respeitando alguns nomes próprios (a tradução literal de nomes próprios em FR já causou muita polêmica entre os fãs) – de qualquer forma, esse mérito também pode ser do próprio cenário, uma vez que há muitos nomes de lugares que são em francês, alemão e outros idiomas, e justamente esses não sofreram tradução; nos nomes originalmente em inglês, há algumas traduções literais, como o sobrenome de Elena Faithhold, que ficou como “Mantenedora da Fé”, ou Shadowborn Manor, que passou a ser o “Solar Prole da Escuridão”, no “melhor” estilo de tradução de Forgotten… (a paladina Kateri Shadowborn deve ter se mexido no túmulo :) mas assim mesmo, é importante para os que não lêem em inglês (e que formam um público crescente de fãs do cenário) terem a chance de compreender a extensão do relacionamento entre um nome próprio e seu dono; por isso, mesmo torcendo o nariz para algumas traduções, elas são bastante aceitáveis e necessárias.
- Quem teve acesso ao livro em inglês sabe que personagens como Lorde Soth (originalmente de Dragonlance) e Vecna (de Greyhawk), que foram retirados do cenário, não tiveram seus nomes mencionados desde o lançamento em 3.0, seguindo a linha editorial que está cortando definitivamente os laços de Ravenloft® com outros mundos de D&D. Há menções vagas sobre os lordes desaparecidos. No início, as campanhas se concentravam em personagens caindo nos Domínios do Medo e tentando fugir; agora o foco é a criação de personagens locais.
- Com a chegada do D&D 3.5, os responsáveis pelo cenário vieram falar nos fóruns de debates do Kargatane, explicando que o recém-lançado Livro do Mestre para Ravenloft® é totalmente compatível com o 3.5, por isso o seu lançamento atrasou um pouco; além disso, o livro que atualmente serve de cenário de campanha (o mesmo que é o objeto desta resenha) será relançado em breve como Livro do Jogador, incluindo a errata do livro original e totalmente compatível com a versão 3.5 – também está previsto que as informações que eram mais importantes para os mestres (essencialmente, o conteúdo do capítulo 5) serão substituídas por outro material, mais apropriado aos jogadores;
- O livro de criaturas “Denizens of Darkness” será relançado em breve na versão 3.5, como “Denizens of Dread”; os autores informaram que os livros básicos de regras – Livro do Jogador, Livro do Mestre e o “Denizens” – serão, a princípio, os únicos livros com modificações para compatibilizá-los à versão 3.5 (fomos informados de que eles são obrigados a relançar esse material básico em 3.5, conforme os termos do contrato com a Wizards); os livros considerados “suplementos de clima e atmosfera” góticos não serão relançados, mas há um projeto para lançar web enhancements com versões 3.5 das criaturas e personagens que estão nesses livros.
- Uma novidade para os fãs de Masque of the Red Death: fomos informados em primeira mão que o cenário de Terra Gótica voltará a ser publicado em 2004, totalmente compatível com a versão 3.5 e atualizado para avançar alguns anos – o cenário original havia parado na década de 1890, enquanto que os suplementos não oficiais da internet já haviam atingido a Primeira Grande Guerra, em 1914.
E por enquanto é só; aproveitem a estada em Ravenloft®, ela promete ser muito longa… Afinal, é fácil entrar na Terras das Brumas, difícil é sair (eu estou nela há mais de 10 anos e nem cheguei perto de uma saída :)