Li Mortal Engines, de Phillip Reeves, na edição brasileira pela Novo Século.
O livro se passa em um futuro distante, na Terra, onde uma série de catástrofes, naturais e a tal “Guerra dos Sessenta Minutos”, que no mínimo usou artefatos nucleares, redesenhou a face da Terra, fazendo com que muito de civilização tenha-se perdido. O que restou da mesma reorganizou-se em “cidades tracionadas”,habitats com edificações sobre motores e gigantescas esteiras rolantes, indo até as fontes de suprimentos quando necessário – dentre as quais, destacando-se outras cidades móveis.
É a era do “darwinismo municipal”, onde as cidades se devoram umas às outras, atrás de recursos e escravos, para que a sociedade sobre suas esteiras possa continuar funcionando. Assim é Londres, onde o livro começa, uma das maiores cidades tracionadas, com diversos conveses dando-lhe uma forma piramidal, que também reflete o status social de seus habitante, com a elite vivendo nos níveis superiores em luxuosas villas, e o operariado próximo ao barulho, calor e gases dos motores e esteiras. Londres, nestes tempos de escassez, vive faminta.
É uma maneira interessante de se repensar as cidades, o termo “ser urbívoro” surge, e foi uma ótima sacada. Há um conto original para toda esta história (com algumas pequenas discrepâncias entre ambas as obras) chamado Urbivore. Para quem já pensava nas cidades como organismos vivos de alguma forma, bem… agora elas se movem.
Phillip Reeve compôs algo com imagens vívidas. Eu facilmente imagino não um filme – Peter Jackson está interessado -, mas uma animação, aliás japonesa. Tem horas que pareço estar lendo um animê – e não, não estou denegrindo. Metrópolis, a versão de Katsuhiro Otomo, particularmente me ocorre. Cabe, entretanto, alertar que essa é uma obra mais para um público juvenil, caso haja interessados nesta distinção, para comprá-la ou evitá-la.
E a história? Direto ao ponto. O protagonista é Tom Nateworthy, um jovem órfão insatisfeito com seu trabalho tedioso como Terceiro Aprendiz de Historiador, sonha com aventuras, sendo arremessado de forma cruel contra aquilo que sempre quis. No caminho, encontra pessoas diferentes do que já se acostumara dentro de Londres, tipos folclóricos, com histórias, propósitos e dores variadas, além do que, no final das contas, era sua grande “zona de conforto”. Os demais personagens são muito interessantes tendo ótimas descrições (Anna Fang e Thaddeus Valentine são larger-than-life), e o que chegam a sugerir sobre si mesmos apenas aumentam a sensação de já se vê-los, em filme ou animação. Tom é de uma generosidade inquebrável, junto de uma teimosia típica de quem se decepciona com o mundo que o trai ao redor, mas ainda assim, persiste. Os demais personagens já têm suas próprias histórias, Tom chega a ser quase passageiro na dos outros, ajudando (às vezes a contra gosto) como pode – destaque para Hester Shaw, aliás -, ao invés de ser o real protagonista para onde todas as histórias convergem.
Não há um segundo de descanso em sua viagem, salvo quando passa algum tempo capturado, até que algo – inesperado – aconteça e ele se ponha em marcha novamente. A trama segue por cenários inventivos e detalhados, a poderosa imaginação de Reeve segue a todo vapor, até um final apoteótico.
Desnecessário dizer que, a essa altura, fãs de steampunk terão maravilhosos momentos lendo, e formulando seus jogos. Apesar de não se limitar ao steampunk em si, as noções vitorianas de comportamento e do que é apropriado, a sociedade super-extratificada, a ciência bizarra, máquinas infernais e nossos amados dirigíveis estão todos lá! Como Castelo Falkenstein é minha única, confesso, referência do gênero em rpgs, eu sinto que poderia facilmente adaptar seu sistema e mesmo parte da ambientação para escrever uma campanha nesta ambientação ou em um misto de ambas, com grandes cidades-tracionadas andando pra cima e baixo dos dois lados do Reno e se reposicionando conforme a vantagem militar…
Agora, fica aqui um puxão de orelha. Só lamento o fato que a Novo Século, qual com Eu Sou a Lenda, continua marcando bobeira com a tradução e a revisão, e dessa vez os erros foram em maior quantidade do que neste outro livro, que comentei ano passado. Novamente, merecia um cuidado maior. Não me parece que “Salvamento” seja a melhor opção para o termo Salvaging (Recuperação poderia funcionar melhor), mas definitivamente skeleton crew não é uma “tripulação de esqueletos” (p. 278). Termos deixados em inglês talvez para uma segunda revisão – ou mera falta de vocabulário? Fora termos que ora aparecem em inglês, ora em português. E a construção de pelo menos um parágrafo estava truncada. E como isto tudo não bastasse, o próprio português: a caUda de um animal não é a caLda de pêssego (p. 24). E uma próclise marota que não deveria começar um texto formal… espero que em edições futuras isto possa ser melhor tratado.
Até porque, Mortal Engines é parte de uma tetralogia. Segurem-se, pois aí vem mais!
Por Luiz Felipe Vasques
Mortal Engines
279 p.
Editora Novo Século
Notas (de 1 a 6)
– Trama: 5
– Texto: 4
– Narrativa: 5
Nota Final: 5
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