Durante a semana, fui assistir o X-men First Class. Foi numa segunda-feira à tarde, coisa de desocupado. Como estamos em semana de prova, existe um respiro antes do mergulho para professores. Os alunos se matam fazendo as provas, nós ficamos folgados. Depois inverte, com a expectativa dos alunos e o estresse frenético das correções de provas. Aproveitei e paguei a promoção de três reais pelo ingresso.
Depois do fracasso de Wolverine: Origins, um novo filme da série apareceu. Como muitos, pelo que eu li, fiquei cético em relação ao filme. Mais uma tentativa desesperada de continuar uma boa série de heróis da Marvel (embora eu não goste do X-Men 3), que inevitavelmente não vai agradar os leitores dos quadrinhos no Brasil, muito menos daqueles que acompanham a história dos X-Men da década de 60 e 70. Provavelmente somente aqueles que conheceram o enredo pelos filmes dos anos 2000 vão se interessar pelo assunto.
No fim do filme, pude constatar porque tinha lido tantas críticas elogiando o filme. Longe de ser uma apelação de franquia, os roteiristas do filme conseguiram apresentar a temática mutante de forma madura e surpreendente. O filme recupera muitos elementos dos anos 60 e 70, inclusive com a geração nascida no pós segunda guerra mundial, às voltas com novos problemas e m relação aos traumas do nazismo e a reconstrução do mundo democrático.
Não vou entrar em minúcias de personagens e diferenças de detalhes entre os quadrinhos originais da década de 60 e como os personagens são retratados no filme. Não é esse o objetivo nem do filme nem da franquia, que começou em 2000. O que chama atenção é esse jogo de significados presentes tanto nos filmes como nos quadrinhos. É legítima a apropriação dos roteiristas do fundamento dos quadrinhos, o drama democrático e da diversidade, justamente porque o que era um prenúncio se consolidou nos filmes.
Essa temática entre o heroísmo e a justiça na democracia é uma constante nas obras de Stan Lee e Jack Kirby, criadores dos X-Men. Ambos lutaram na segunda guerra mundial, tem raízes judaicas e vivenciaram a reconstrução dos países envolvidos na guerra e as conseqüências que esta trouxe.
Fazendo um paralelo com o Thor, também criação deles e recentemente lançado em filme também, os X-Men possuem a temática da segregação e a da comunidade. Enquanto Thor busca humanizar o principal guerreiro da mitologia nórdica, seja através da punição à prisão numa forma humana ou pela jocosidade e comicidade nos quadrinhos e no filme, em contraponto a elevação dos arianos nazistas à condição de divindade, pela apropriação da mitologia de Odin aos interesses do terceiro reich, X-Men trata da convivência com o diferente.
Inicialmente comparados à discussão dos anos sessenta sobre o racismo, os mutantes são capitaneados pelo professor X, Charles Xavier, mais próximo ao líder pacifista e religioso Martin Luthter King, e Magneto, Eric Lensheer, identificado pelo líder combativo e guerrilheiro Malcom X. A temática do racismo, tão sensível aos sobreviventes do nazismo, se consolidava de forma contundente no drama mutante.
E enfim chegamos ao filme X-Men First Class. É curioso perceber a movimentação histórica entre o significado dos quadrinhos e como o filme aborda essas questões. Bryan Singer, diretor dos dois primeiros filmes e diretor corroteirista do X-Men First Class é a grande orientação nesses significados. Nasceu em 1965, justamente quando lançavam os quadrinhos, e provavelmente teve contato com eles durante sua adolescência. De qualquer forma, a sensibilidade democrática está presente em sua leitura de X-Men, e ainda o terceiro filme, sem sua participação, segue a mesma linha.
No First Class, retornamos à década de 60, onde Charles Xavier um jovem professor doutor, desenvolve sua pesquisa sobre mutação e sobre o próximo passo da evolução do Homo Sapiens. Em contraponto pesquisa a evolução e extinção do Neardental, em coexistência com o Homo Sapiens, que ocorreu há 30 mil anos.
Todavia o personagem principal é Magneto. O filme mostra sua traumática prisão no campo de concentração, em 1944, devido a sua origem judaica, onde é descoberto mutante e vê sua mãe ser morta por isso. Torturado e disciplinado por Sebastian Shaw, um mutante nazista com poderes de absorção de energia e reutilização dessa energia em forma de ataque, Magneto é apresentado como a grande vítima do nazismo. O discurso de Shaw quando o garoto judeu entra em seu escritório no campo é de desprezo pelas teorias nazistas de racismo, porém porque visam o alvo errado. A raça suprema não são os arianos, mas sim os mutantes, o próximo passo da evolução.
De volta à década de sessenta, Magneto agora persegue os antigos nazistas. Como o Mossad, serviço secreto de Israel, encontra e elimina os maiores criminosos nazistas escondidos pelo mundo. Sua maior vingança, no entanto, é Shaw, que está como um grande milionário estadunidense, infiltrado nos governos dos EUA e URSS, com uma equipe de mutantes, planejando uma guerra nuclear que permitiria a sobrevivência dos mutantes diante de um destroçado mundo de sobreviventes.
A ligação com a crise dos mísseis em Cuba, fato histórico real, que aconteceu em 1962, foi utilizado como pano de fundo para a trama mutante. Uma agente da CIA consegue descobrir os planos de Shaw e entra em contato com Xavier devido às suas pesquisas de mutação. Em pouco tempo, Xavier está trabalhando para a CIA, juntamente com sua irmã adotiva Mística, mutante transmorfa
Durante uma primeira missão em busca de Shaw, Xavier e Magneto se encontram, e acabam integrando a equipe patrocinada pelo governo dos EUA. Graças ao também mutante Hank Maccoy, cientista que desenvolve a máquina de procura de mutantes, o Cérebro, conseguem reunir em pouco tempo um primeiro grupo de jovens, a então first class.
Durante um bom desenvolvimento de diálogos e cenas de trama, ambientadas em locais como a futura mansão X, que será a escola do Professor X, com discussões sobre orgulho mutante, justiça no mundo, a possibilidade de convivência, registro de governos em relação aos diferentes, de viver as verdadeiras condições, harmonizar raiva e afeto, e objetivos de vida e relações entre superiores e inferiores, em contraste com boas cenas de ação e ataques dos mutantes de Shaw, somo apresentados ás origens da personalidade tanto de Xavier quanto de Magneto, os futuros regentes do universo mutante, sempre mostrados jogando xadrez.
O filme acaba com uma grande batalha entre os mutantes de Sebastian Shaw e o grupo de Xavier e Magneto, que conseguem impedir a deflagração de uma guerra nuclear entre EUA e URSS, como a tensão de fato acontecera no episodio da crise dos mísseis em Cuba. Entre um iminente conflito entra as marinhas dos EUA e a dos soviéticos, nas proximidades de Cuba, Shaw é morto por Magneto, somente porque é ajudado por Xavier, apesar do professor X não querer a morte de Shaw.
Com todos os mutantes reunidos, tanto EUA quanto URSS, que testemunharam a capacidade dos poderes mutantes, se aliam para destruir todos na ilha. Dezenas de mísseis são lançados, pelas duas frotas, e Magneto consegue segurar e reenviar os mísseis tanto para estadunidenses quanto para soviéticos. Um ponto alto do filme acontece quando Xavier tenta impedir Magneto, afirmando que os soldados só seguem ordens, que existem homens inocentes nos navios. A resposta de Magneto, de que está farto de ficar nas mãos daqueles que só obedecem ordens, numa clara alusão aos nazistas, e o mote de nunca mais, usados por alguns grupos em relação ao nazismo.
Ao tentar impedir fisicamente, porque Magneto usava o capacete protetor contra a telepatia, que pelo filme era de Shaw, Xavier é derrubado, e a agente da Cia que ainda estava na ilha atira em Magneto, que desvia a bala para a coluna do amigo, causando a paralisia nas pernas do professor X. A natural divisão de equipe acontece. Os antigos seguidores de Shaw ficam ao lado de Magneto, assim como Mística, que se torna amante de Magneto. A first class então se divide, com a maioria ao lado de Xavier.
O filme é bom. Não existe fôlego entre os diálogos tensos e as cenas de ação vigorosas. Muito dinâmico, o diretor consegue segurar a atenção do começo ao fim do filme. A fotografia é correta, com a ambientação dos anos sessenta muito próxima de uma estética de filme de James Bond, de agentes secretos e espionagem, bem ao clima da guerra fria, com os efeitos especiais discretos quando desnecessários e em imagens impactantes quando exigidos.
Por fim, o que mais instiga é o mote da diferença. Claramente o Magneto é o protagonista do filme. Xavier é um jovem ingênuo, com uma boa vida cheia de mordomia e recursos como aristocrata de um país rico. Nunca sofreu na vida e por isso cheio de ilusões e esperanças. Um bobo. Magneto passou pelo sofrimento e pela realidade, e por isso conhece o mal. Sabe das impossibilidades da convivência, das incapacidades da humanidade de respeitar. Sabe que é necessário ter o poder, o poder de vida e de morte, de legislar, para poder ter o mínimo de segurança. Magneto sabe que quanto você não está no absoluto comando, sempre está a mercê daqueles que estão.
Uma cena bem significativa do filme é o diálogo final de Shaw e Magneto. Muitas vezes se caracterizando como Frankstein em busca de seu criador, da arma perfeita que se vira contra seu construtor, Magneto recusa o convite feito por Shaw para se aliar a ele no domínio dos humanos. A justificativa da recusa é que é mais interessante, porque concorda com a idéia de supremacia mutante e escravização humana. Não concorda porque Shaw matou sua mãe, e porque é Magneto que deve ter o controle. Não existe uma discordância de visão, apenas uma vingança pessoal.
O judeu Magneto então herda o capacete do nazista Shaw. O judeu herda a visão nazista, apenas se julga mais capacitado para realizar a tarefa. Muitas críticas ao tratamento dado pelo estado de Israel aos palestinos, muçulmanos e cristãos, afirmam exatamente isso. A reivindicação da vingança sem limites diante de uma real injustiça nunca se encerra. A possibilidade dos eleitos se tornarem os déspotas se realiza em Magneto. Daí porque se torna o vilão perfeito, porque suscita dúvidas se o herói é mesmo o herói, ou apenas um bobo que não conhece como as coisas são.
O mote de Mística, que define sua escolha para o lado de Magneto, mutantes com orgulho, passa pela dura constatação de sua mutação física não é tão aprazível quanto uma mutação não aparente. O diálogo com Hank Maccoy, que busca uma cura para sua condição, num ato covarde que rejeita a aproximação de Mística porque afirma que sua aparência real é menos atraente que seus disfarces provoca a decisão de Mística se tornar amante de Magneto. O orgulho de se aceitar apóia então o orgulho da vítima sobrevivente da injustiça que agora que provou o doce gosto do domínio.
Essa fusão da vingança com a afirmação de identidade, tão freqüente em nossa democracia contemporânea com tantas minorias exigindo seus direitos, como os gays, negros, indígenas, mulheres, religiosos, se mostra ao lado dos vilões. Magneto e Mística são amantes em sua necessidade de justificação através da violência. O fundamentalista sempre possui uma visão inatacável de sua causa. De fato, a democracia se torna um campo de batalha patético quando a justiça, que seja divina, de casta ou de identidade, clama por sua imposição. O desejo de eliminar a corrupção moveu ditaduras de esquerda e de direito por todo o mundo, promovendo banhos de sangue e genocídios, justamente porque queria evitar tais catástrofes.
Concluindo, o fascínio de X-Men First Class é seu surpreendente roteiro. O filme não mostra somente a origem dos X-men, mas toca nas origens do debate político e ético que enfrentamos hoje no século XXI, onde a democracia vigora, mas todas as causas que não sejam do consumo egoísta e mesquinho apodrecem o próprio debate democrático, que exige noções de virtudes públicas e de bem comum para se sustentar. Somente a formação moral individual sustenta a democracia, mas essa formação moral é um risco para a própria democracia, porque pode gerar uma casta auto proclamada mais virtuosa, vanguarda ou predestinada e escolhida para conduzir as massas e as nações.
Talvez Magneto esteja certo, e no fundo ele seja o herói. Xavier apenas um garoto mimado e mal acostumado com uma vida boa de playboy com sonhos de bom moço, que acaba relegando a corruptos traiçoeiros e mesquinhos o controle da sociedade, provocando a inevitável traição e corrupção. Essa é a grande provocação do X-Men: First Class, a aliança entre o ressentido e o injustiçado explodindo em glória justa e implacável, libertando identidades e desejos e destruindo estruturas covardes e homens desprezíveis em sua pequenez destrutiva.
Tudo isso faria Hitler e os arianos muito contentes. Em seus túmulos, estariam satisfeitos em ver sua obra em tão boas mãos, mãos mutantes.
Roteiro: 5
Produção: 4
Direção: 5
Nota final: 5.
Por Diego Klautau
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