Esse fim de semana fui assistir a pré estréia de Kung Fu Panda 2. Fui sozinho, porque minha sogra estava na quermesse da Igreja e minha mulher não confia em mais ninguém para deixar nossa filha. Depois de uma longa conversa, decidimos que eu deveria ir. Então eu fui. Sozinho. Foi curioso, porque era uma sessão de domingo às 14h40. Eu e um monte de crianças com seus pais. Seria ridículo me ver assim, mas se eu entrasse nessa de que me achar ridículo, nem o filme eu iria ver. Um panda lutando Kung Fu já é infantil demais.
E aí que está a grande incógnita do filme. Quando assisti o primeiro Kung Fu Panda me impressionei. Confesso que achei esplêndida a mistura da jocosidade ocidental infantilizada com os desenhos de inspiração chinesa tradicional, lembrando o teatro das marionetes e fantoches, com os tons de vermelho e amarelo. O roteiro demonstrava uma poética boba, com um protagonista bobo que se via enfiado no meio da busca pelo predestinado herói que salvaria a cidade, mas que encantava com sua trama de superação de suas limitações e travas que o encolhiam mais do que era.
Essa é a grande conquista de Kung Fu Panda 2. Po agora é o grande dragão guerreiro, e vive liderando seus amigos contra os bandidos de sua região. Eis que então Lorde Shen, o pavão, consegue conquistar uma grande cidade da China, eliminando o maior mestre de Kung Fu mestre Rhino, com suas recém descobertas armas de fogo. Resta a Po a missão de enfrentar e derrotar através do kung fu aquela arma que foi feita para destruir o kung fu. Tarefa aparentemente impossível.
Paralelo a isso, o drama de quem é na verdade Po, de onde ele veio e de quem foram seus pais, se apresenta. Instigado pela dúvida e por sonhos cada vez mais freqüentes ele descobre que fora adotado, porque é o único sobrevivente de uma aldeia inteira de pandas. O executor foi o filho dos soberanos da cidade, o próprio Lorde Shen, que eliminou a aldeia de pandas da região porque uma adivinha previu que ele seria morto por um guerreiro preto e branco, logo um panda.
A matança de Lorde Shen, da qual somente Po escapara, fez com que seus pais o abandonassem, exilando-o da cidade. Eis o mote de vingança de Shen, tentando recuperar a cidade que estava governada pelo conselho de mestres de kung fu depois da morte dos antigos senhores pavões.
A essas duas tramas, do confronto entre kung fu e tecnologia, a busca da identidade e dos pais de Po, e da vingança contra os pais de Lorde Shen, a temática da paz interior, tão cara ao taoísmo[1] e ao espírito das artes marciais, se manifesta ao lado de virtudes como a amizade e a confiança. Assim os temas de confronto entre tecnologia e espiritualidade, o debate sobre honrar os pais e por fim a busca da virtude pessoal e social, se entrelaçam num roteiro leve, engraçado e emocionante.
Sim, é um filme para crianças. Mas que filme para crianças! Despretensioso e profundo, às vezes cruel, como aquelas perguntas que uma criança faz: “Pai, porque vale a pena ir pra escola se meu cachorro morreu? Porque vale a pena estudar se todo mundo vai morrer?”. Ou então “Pai, porque você diz que trabalha tanto pra gente ficar bem e quando você não está trabalhando não gosta de ficar com a gente?”. Enfim, qualquer pergunta ingênua que revela a inevitável contradição humana, que a gente esconde e torna simplória porque sua verdade é terrível demais.
Uma das grandes atrações das artes marciais é a essa temática da superação de seus limites. É essa força que atrai e fascina. Desde Karate Kid, o original e mesmo a nova versão com Jackie Chan[2], dos filmes do Bruce Lee, da utilização das artes marciais no Matrix, dos velhos pastelões do Van Damme, como O Grande Dragão Branco, o filme O Último Samurai, com o Tom Cruise, e o Os Sete Samurais, do Kurosawa, o Clã das adagas Voadoras, os filmes de Jet Li, e recentemente a sequência O Grande Mestre e O Grande Mestre 2, que conta a história de Ip man, o mestre que ensinou Bruce Lee.
Todos esses filmes, e muitos outros contêm a temática da capacidade do treinamento da arte marcial não modelar somente o corpo, mas modelar o espírito. É a aprendizagem da disciplina, da ordem, do propósito, da honra, da libertação dos vícios no corpo refletirem a libertação dos vícios da mente. O condicionamento marcial em forma de arte é o condicionamento do espírito em forma de virtude. Essa sintonia, essa harmonia, esse fino enlace entre corpo e espírito é a arte marcial.
É exagero dizer que Kung Fu Panda 2 possui essa robustez em seu roteiro. É um filme para crianças. Mas é com absoluta certeza um filme de arte marcial. Ver o filme é uma montanha russa de cores, ação e emoções que vão da empolgação com as lutas, risos com as situações cômicas e comoção com as cenas dramáticas. É um filme para crianças, um dos melhores que eu já vi.
Nessa hora, sempre lembro do velho mestre Tolkien, em seu ensaio On Faury Stories de 1939, em que ele fala que as estórias de fadas são relegadas às crianças porque elas são as únicas que sabem aproveitá-las com o verdadeiro sabor. Assim como os mitos, as lendas e as narrativas sagradas e religiosas, as estórias de fadas só são aproveitadas se tivermos a crença secundária, uma suspensão da descrença, um voto de confiança para que o texto, ou no caso o filme, possa te levar a acreditar realmente naquela realidade. Somente assim o sobrenatural e o absurdo podem ser uma experiência estética, filosófica até, com grande carga de sentido e beleza.
Li em alguns periódicos de artistas chineses que reclamavam da vulgarização da cultura chinesa que o filme traz. È um filme de Hollywood, com o protagonista um gordo bobão que humilha as figuras mais tradicionais, como o mandarim, a estética do dragão, do vermelho e do trabalho duro do povo humilde chinês. Seria um desrespeito com a verdadeira arte da china, a arte que os artistas chineses, patrocinados e legitimados pelo Partido Comunista da China, fazem.
De fato consigo identificar alguns elementos Homer Simpson ou Fred Flinstone no panda Po. Não é a toa que a venda de bonecos e acessórios dos personagens podem ser encontrados no MacDonald´s. Todavia, o fundamental em Po é essa predestinação do improvável, da liberdade absoluta se convertendo em autodeterminação e destino. Se Po de fato macula a cultura chinesa com elementos ocidentais, também traz coisas boas.
Novamente, a aristocracia marcial sempre foi um problema para nossa sensibilidade democrática. Estamos presos entra a nostalgia e fascínio da virtude e excelência e a ojeriza e repulsa pelas castas e classes entre pessoas. Isso acontece com os heróis gregos, os soldados romanos, os cavaleiros medievais e também entre oes mestres chineses.
Acusar Po e seus companheiros de serem ocidentais demais é esquecer que sua simpatia é justamente por sua imperfeição, sua improbabilidade, seu ridículo. Uma aristocracia estatizante e repressiva como a chinesa contemporânea está bem longe da arte tradicional dos mandarins e do Templo Shao Lin, ao mesmo tempo em que nos lembra que toda aristocracia é excludente, por mais virtuosa e fascinante que seja. Eleger um gordo bobo ocidental como herói só poderia acontecer em nossa ridícula democracia ocidental.
Por fim, o filme não tem pruridos de mostrar como a tradição e a herança dos pais não são definidores de um destino. Po, órfão de uma aldeia destruída, criado por um cozinheiro simplório, pode se superar e se tornar o grande dragão guerreiro e encontrar a paz interior, ao mesmo tempo em que Lorde Shen, pavão de família aristocrata e virtuosa, trai sua linhagem por orgulho de se dedicar mais a tecnologia com fins de domínio do que prover alegria dos fogos de artifício como seus pais faziam.
Ao atrelar a virtude ao conhecimento e ao treinamento, o filme Kung Fu Panda 2 se insere nessa tradição de significado da arte marcial. O encantamento dessa harmonia, que é simbolizado pelo preto e branco do panda com o símbolo do Tao, do yng e yang, mostra uma busca do roteiro por uma fusão entre ocidente e oriente, entre o ridículo e o banal com os significados mais elevados da tradição. O filme pertence a uma história arquetípica do herói do cotidiano, num contexto global em que abundam tradições e rótulos que nos impõe, e a coragem de construir a nós mesmos amparados nas escolhas que fazemos.
Ao retornar pra casa, fiquei pensando no velho drama de pais e filhos, das tradições e das escolhas que devemos manter ou romper. Queria muito ter ido com minha filha, como vi tantas famílias ao meu lado no cinema. Não mais me sentia ridículo, apenas ansioso, porque queria minha filha comigo assistindo o filme. Será um desses que vou querer assistir de novo, dessa vez com ela, quando ela começar a fazer perguntas inconvenientes e ridículas, que expressam as mais sinceras e constitutivas buscas de cada ser humano, seja oriental ou ocidental, panda ou pavão.
Notas (de 1 a 6)
Roteiro: 5
Produção: 4
Direção: 4
Final: 4
Por Diego Klautau
[2] Muita gente criticou a idéia do novo Karate Kid, principalmente por se tratar de kung fu e ser na china. Disseram que era um enlatado que o Will Smith pagou para o filho pdoer brincar de artes marciais. Tudo bem, até concordo. Apenas uma cena se salva do filme. Quando o velho mestre, bêbado, realiza seu ritual de culpa por ter provocado o acidente que matou seu filho e sua esposa é convocado pelo aprendiz, órfão e estrangeiro na china, a reconstruir o kung fu, e ambos recomeçam o treino. Dois párias, excluídos, que reconstroem o espírito e a virtude pela arte marcial.
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